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domingo, 27 de fevereiro de 2011

A ARTE DE SEDUZIR


por FREI BETTO

Toda ditadura é megalômana. E a que governou o Brasil sob botas e fuzis, de 1964 a 1985, não foi diferente. A construção da rodovia Transamazônica simboliza a arrogância do regime militar.

Rasgou-se a selva de leste a oeste. Abriu-se a estrada em paralelo a caudalosas vias fluviais. Em vez de aprimorar o sistema de navegação pelo rio Amazonas e seus afluentes, a ditadura preferiu obrigar a floresta a ajoelhar-se a seus pés. Possantes máquinas puseram abaixo árvores milenares encorpadas de madeiras nobres, destruíram ecossistemas preciosos, alteraram o equilíbrio ecológico da região.

Tudo em nome de uma palavra tão propalada e, no entanto, vazia de significado: desenvolvimento. Leia-se: exploração predatória da maior floresta tropical do mundo, aberta à voracidade de mineradoras, madeireiras e, sobretudo, do latifúndio predador, quase sempre movido a trabalho escravo.

“No meio do caminho havia uma pedra”, repetiria Drummond. Povos indígenas. Como impedir que oferecessem resistência? Simples: através da arte de seduzir. A Funai ergueu tapini

Detalhe: o mato, não o gato, comeu a Transamazônica, fonte de riqueza e poder de umas tantas empreiteiras.
(cabanas de folhas). Dentro, utensílios de caça e cozinha, ferramentas etc. Os índios, encantados com os objetos, acolhiam gentilmente os caras-pálidas. E ingenuamente eram cooptados pelas relações mercantilistas. Em troca de bugigangas perdiam saúde, terras, liberdade e vida. Hoje, os índios somos todos nós. Os tapini, os shopping, a publicidade, as veneráveis bugigangas que nos agregam valor. O inumano imprime sentido ao humano, como faziam os deuses de ouro denunciados pelos profetas bíblicos: tinham boca, mas não falavam; olhos, mas não viam; ouvidos, mas não escutavam; pés, mas não andavam...

Estamos todos somos sob o efeito hipnótico do consumismo. Não importa se o produto é frágil ou de má qualidade. Seu design nos cativa. Sua publicidade nos faz acreditar que estamos comprando a oitava maravilha do mundo! E, ingenuamente, que se trata de um produto durável, mesmo conscientes de que o capitalismo não se importa com o direito do consumidor, e sim com a margem de lucro do produtor.

Como se livrar do labirinto consumista que, na verdade, se consuma nos consumindo? Não vejo outra porta de saída fora da espiritualidade, somada a uma nova visão do mundo. Sem espiritualidade corremos o risco – sobretudo os mais jovens – de dar importância àquilo que não tem. Imbuídos da baixa autoestima que nos incute a publicidade (“você não é ninguém porque não possui este carro, não veste esta roupa, não faz esta viagem...”) encaramos a mercadoria como algo que nos agrega valor. Não basta a camisa, a bolsa ou o tênis. Têm que ser de grife, com a etiqueta exibida do lado de fora. Assim, todos à nossa volta haverão de reconhecer o nosso status. E quiçá invejar-nos. E aquele ser humano que, ao lado, carece de produtos refinados, é visto como não tendo nenhuma importância. Pois não se enquadra no atual princípio pós-cartesiano: “Consumo, logo existo.”

É espiritualizada toda pessoa cujo sentido de vida deita raízes em sua subjetividade e cujas opções são movidas por ideais altruístas. Ela não faz do que possui – conta bancária, títulos, casa, carro etc. – seu fator de autoestima. Sabe que tem valor em si, que não é nutrido pela posse de bens e sim por sua capacidade de fazer o bem aos outros. Sua autoestima se funda na generosidade, solidariedade e compaixão. Ela é feliz porque sabe fazer outras pessoas felizes.

O mercado tudo oferece. Todos os seus produtos nos chegam embrulhados em papel de presente: se compramos este carro, seremos felizes; se bebemos aquela cerveja, nos sentiremos alegres; se adquirimos tal roupa, ficaremos joviais. O único bem que o mercado jamais oferta é justamente este que mais buscamos: a felicidade. No máximo, o mercado tenta nos convencer de que a felicidade é o resultado da soma de prazeres.

Ora, a felicidade é um bem do espírito, jamais dos sentidos, da cobiça ou da arrogância. É feliz quem ousa destampar o próprio ego e conectar-se com o Transcendente, o próximo e a natureza. Esse irromper para fora de si mesmo tem nome: amor. E se manifesta nas dimensões pessoal, no dom de si ao outro, e na social, no empenho de construir um mundo melhor.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
www.freibetto.org - twitter:@freibetto

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A POETISA, A MÍSTICA E A GATA


por LEONARDO BOFF

A Igreja Católica italiana apresenta em sua história uma contradição fecunda. Por um lado há a presença forte do Vaticano, representando a Igreja oficial com sua massa de fiéis mantidos sob vigilante controle social pelas doutrinas e especialmente pela moral familiar e sexual. Por outro, há a presença de cristãos leigos e leigas não alinhados, resistentes ao poder monárquico e implacável da burocracia da Cúria romana mas abertos ao evangelho e aos valores cristãos sem romper com o Papado embora críticos de suas práticas e do apoio que dá a regimes conservadores e até autoritários.

Assim temos a figura de Antônio Rosmini no século XIX, fino filósofo e crítico do antimodernismo dos Papas. Modernamente identificamos figuras como Mazzolari, Raniero La Valle, Arturo Paoli, a eremita Maria Campello. Entre todos destaca-se Adriana Zarri, eremita, teóloga, poetisa e exímia escritora. Além de vários livros, escrevia semanalmente no diário Il Manifesto e quinzenalmente na revista de cultura Rocca.

Era duríssima contra o atual curso da Igreja sob os Papas Wojtyla e Ratzinger a quem acusava diretamente de trair os intentos de reforma provados pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e voltar a um modelo medieval de exercício de poder e de presença da Igreja na sociedade. Veio a falecer no dia 18 de novembro de 2010 com mais de 90 anos.

Visitei-a por algumas vezes em seu eremitério perto de Strambino no norte da Itália. Vivia só num enorme e vetusto casarão, cheio de rosas e com sua gata de estimação Arcibalda. Tinha uma capela com o Santíssimo exposto para onde se recolhia várias horas por dia em oração e profunda meditação.

Na conversa com ela, queria saber tudo das comunidades eclesiais de base, do engajamento da Igreja na causa dos pobres, dos negros e dos indígenas. Tinha um carinho especial pelos teólogos da libertação por causa da perseguição que sofriam por parte das autoridades do Vaticano que os tratavam, segundo ela, “a bastonadas”enquanto usavam luvas de pelica aos seguidores do cismático Mons. Lefebvre.

Seu último artigo, publicado três dias antes de sua morte, dedicou-o à gatinha de estimação Arcibalda. Com ela, como pude testemunhar pessoalmente, possuía uma relação afetuosa como de íntimos amigos. Aquilo que a nossa grande psicanalista junguiana Nise da Silveira descreveu em seu livro Gatos, a emoção de lidar o confirmou Zarri:”o gato tem a capacidade de captar o nosso estado de alma; se me vê chorando, logo vem lamber minhas lágrimas”. Contam que a gata esteve junto dela enquanto expirava. Ao ver os amigos chegarem para o velório, se enrolava, nervosa, na cortina da sala. Como se soubesse a hora, discretamente, pouco antes de fecharem o féretro, entrou discretamente na capela.

lguém, sabendo do amor da gatinha por Adriana Zarri, pegou-a no colo e a aproximou ao rosto da defunta. Fixou-a longamente e parecia que lacrimejava. Depois colocou-se debaixo do féretro e aí permaneceu em absoluta quietude.

Isso me reporta à nossa gata, a Branquinha. Parece uma menina frágil e elegante. Apegou-se de tal maneira à minha companheira Márcia que sempre a acompanha e dorme a seus pés, especialmente, quando passa por algum aborrecimento. Ela capta seu estado de alma e procura consolá-la roçando-se nela e miando suavemente.

Adriana Zarri deixou uma epígrafe que vale a pena ser reproduzida: ”Não me vistam de preto: é triste e fúnebre. Nem me vistam de branco porque é soberbo e retórico. Vistam-me de flores amarelas e vermelhas e com asas de passarinho. E Tu, Senhor, olhe minhas mãos. Talvez tenham colocado um rosário, talvez uma cruz. Mas se enganaram. Nas mãos tenho folhas verdes e sobre a cruz, a tua ressurreição. E sobre minha tumba não coloquem mármore frio com as costumeiras mentiras para consolar os vivos. Deixem que a terra escreva, na primavera, uma epígrafe de ervas. Ali se dirá que vivi e que espero. Então, Senhor, tu escreverás o teu nome e o meu, unidos como duas pétalas de papoulas”.

A escritora e mística dos olhos abertos, Adriana Zarri, nos mostrou como viver e morrer bela e docemente.

PENA DE MORTE OU O ASSASSINATO DA INOCÊNCIA


por MARIA CLARA BINGEMER




Kenny e Betty Anne Waters tiveram uma infância dura e difícil. Pai ausente, mãe problemática, dificuldades várias. Isso os fez ficarem mais unidos, em uma aliança que significava para os dois a sobrevivência psicológica. A ponto de quem os conhecia em sua pequena cidade do estado de Massachussets (EUA) dizer nunca ter visto dois irmãos que se gostassem tanto e fossem tão companheiros.
Ao mesmo tempo nunca se viu dois irmãos tão diferentes. Enquanto Betty Anne era a estátua da responsabilidade e do bom comportamento, Kenny era impossível. Travesso em criança, insubordinado quando adolescente e jovem, continuou com um perfil transgressor, protegido pela irmã, que sempre encobria e resolvia as trapalhadas em que se metia.

Casaram-se ambos e tiveram filhos. O casamento de Kenny não deu certo e isso o fez voltar a uma vida boêmia. Quando a solidão batia forte, ia procurar a irmã, que sempre o acolhia de braços abertos. Um dia, uma senhora que habitava a cidade foi barbaramente assassinada e Kenny acusado de ter cometido o crime. Sem recursos para contratar um bom advogado, foi condenado por unanimidade a prisão perpétua. O caso parecia encerrado. Seu tipo sanguíneo era o mesmo que aparecia nas provas misturado ao da vítima. Todos acreditavam que era culpado.
Todos, menos Betty Anne, que estudou Direito e formou-se para poder provar a inocência do irmão. Kenny já estava preso há 16 anos quando aconteceu a descoberta do DNA, que revolucionou o mundo jurídico. Filas de pessoas presas injustamente por crimes não cometidos batiam às portas dos advogados a fim de fazer os testes e comprovar inocência.

Encontrando toda sorte de obstáculos à sua frente, Betty Anne investigou os arquivos em custódia para rever as provas, pediu a reabertura do processo. Feitos os testes nas amostras colhidas, comprovou-se a inocência de Kenny, que foi libertado após longos vinte anos de reclusão injusta. Seis meses depois morria de uma queda, ao subir em um parapeito de janela. O casamento de Betty Anne desfez-se, pois o marido não suportou sua dedicação em tempo integral no encalço da comprovação da inocência do irmão. Seus dois filhos decidiram morar com o pai pelo mesmo motivo.

À filha de Kenny, que ele ficou impedido de ver por vinte anos, a mulher forte e destemida que era Betty Anne Waters disse, após comunicar a libertação do pai: “Se o estado de Massachussets tivesse pena de morte em sua legislação, hoje seu pai estaria morto.” Kenny escapou da pena da pena capital que lhe ceifaria a vida inocente pelo acaso feliz de haver nascido em Massachussets e não no Texas ou outro estado qualquer que tenha a pena de morte em sua legislação.
No dia 2 de maio de 1960, Caryl Chessman – conhecido como o “bandido da luz vermelha”- não teve a mesma sorte. Afirmando e reafirmando até o fim sua inocência, Chessman – que estudou Direito para fazer sua própria defesa - esgotou os recursos de apelação à Suprema Corte e morreu na câmara de gás do presídio de San Quentin, Califórnia. O mundo inteiro se comoveu, houve intercessões de todas as partes, até do Papa, pedindo clemência para o condenado. Caryl Chessman, que provavelmente era inocente, foi executado.

Aí repousa o centro da reflexão sobre a justiça retributiva e a pena de morte. Todo aquele ou aquela que comete um crime ou viola a lei deve, sim, ser extraído do convívio da sociedade a fim de poder refletir, ser rehabilitado e reintegrado à mesma sociedade que feriu com sua transgressão. No entanto, o que vemos, mesmo em países desenvolvidos? Cárceres que são, na verdade, fábricas de criminosos e não escolas de reabilitação. Homens e mulheres inocentes - em geral pobres e sem recursos – que inflam a população carcerária e pagam por crimes que não cometeram.

Toda essa situação se torna mais degradante e terrível em níveis exponenciais se aí entra a pena de morte. Quem tem o direito de condenar outro ser humano à morte? Nas mãos de quem está o juízo sobre o fim de uma vida cuja origem foi dom gracioso e inefável do Criador?

A partir da acessibilidade dos testes por DNA, mais de 240 pessoas puderam ser libertadas depois de passarem amargos anos na cadeia embora inocentes. Apesar de haverem perdido os melhores anos de suas vidas, puderam talvez desfrutar ainda de algum tempo em liberdade, junto a seus seres queridos. E os que foram executados? Quem lhes devolverá a vida que perderam injustamente? Tomara que o exemplo de Betty Anne Waters possa inspirar a outros e outras a não poupar esforços a fim de que a inocência não seja penalizada e a vida humana ceifada injustamente.

Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)

Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

O ENCANTO DAS TELAS E A MAGIA DA VIDA


por MARCELO BARROS




Nestes dias, os meios de comunicação propagam previsões para os filmes candidatos ao Óscar 2011. No próximo domingo, 27, os prêmios da Academia serão anunciados. As premiações de Hollywood não ocultam um lado comercial. Mesmo assim, a transmissão do Óscar nos recorda sempre o encanto do Cinema e como a sétima arte pode contribuir para fazer emergir no ser humano o que há de melhor e confirmar os valores da paz e da fraternidade universal.


Dos filmes que passam atualmente nas telas do Brasil, Santuário é uma produção de James Cameron. Depois de Titanic e Avatar, ele nos leva a uma imensa caverna da Nova Guiné, onde uma equipe de exploradores tem de mergulhar sempre mais profundamente para escapar de uma inundação inesperada. Apesar dos clichês comuns a este gênero de aventura, o filme recorda a vocação de todo ser humano para “ir sempre mais às suas profundezas interiores” e arriscar a própria vida, até onde o mistério o chama e o aguarda.

Outros filmes também tocam em pontos sensíveis. Nem todo mundo tem estômago para curtir um filme com cenas violentas de lutas corporais e do mundo do Box, como “O Vencedor”. Mas, para além das competições e da ganância de uma família controladora, vislumbra-se o sonho de uma vida melhor e o papel do amor na vida de cada pessoa. O Cisne Negro nos remete ao mundo do espetáculo e as pressões terríveis que sofre uma artista para se manter no foco de sua carreira. A protagonista diz claramente que “busca a perfeição”. Muitas vezes, esta busca foi vista de forma fundamentalista como um ideal espiritual. De fato, Deus nos quer como somos. Um bom caminho espiritual é nos aceitar como somos e, a partir de nossa fragilidade, nos deixar conduzir pelo Espírito. No Cisne Negro, a bailarina precisa deixar-se conduzir pelo coreógrafo exigente. Sua ambição é se manter no topo do corpo de balé (ser a rainha). Isso provoca nela um desequilíbrio interior e a confusão entre realidade e fantasia. Nós também temos de distinguir o que em nós é personagem e o que é verdadeiramente a essência do nosso ser mais profundo e pessoal.

A Rede Social é um filme que fala mais a linguagem da geração face-book. Entretanto, é genial a história do jovem analista de sistemas que constrói uma rede que proporciona a amizade virtual de 500 milhões de pessoas do mundo todo. Muitas vezes, a relação virtual não se torna aproximação real. Mas, seja como for, enquanto outros fazem guerra e apostam no conflito de civilizações, este filme descortina uma grande conexão de amizade.

O Discurso do Rei tem o estilo de alguns filmes ingleses conhecidos nossos. A mistificação da monarquia parece de outros tempos, mas as interpretações dos atores são contemporâneas. Apesar da aparente proposta elitista, é um filme que acentua como a palavra é importante nas relações humanas e na ordem social.

Lixo Extraordinário é um documentário brasileiro, inscrito na Academia como sendo norte-americano. Ele chama a atenção para a realidade de tantos brasileiros que tiram seu sustento no lixo e moram nos lixões urbanos. Filmado no Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, maior aterro sanitário da América Latina, o filme mostra a vida dos catadores e como o lixo pode ser transformado em obra de arte nas mãos do artista plástico Vik Muniz. O filme transformou Tião Santos, líder dos catadores de lixo em Gramacho, em personagem internacional.

Outros filmes de hoje nos fazem relembrar clássicos de outrora. Assim Bravura Indômita dos irmãos Cohen não nos deixa esquecer do imortal John Wayne e de seus faroestes clássicos. Também nesse, o delegado que representa o sistema americano tem um dos olhos vendados. A crítica da Carta Capital (16/ 20/ 2011) comenta que na versão dos anos 60, o xerife tinha o olho esquerdo vendado para significar um sistema incapaz de olhar o mundo do lado da esquerda. Agora, na nova versão, o tapume é no olho direito. Pode ser que esta crítica proceda, mas o importante é perceber que a ilegalidade criminosa pode ser de direita ou de esquerda. A direita adquiriu maior profissionalismo no assunto e deixa menos rastros, mas a violência é negativa, venha de onde vier. Ao deixar isso claro, evita-se a glamourização dos faroestes antigos ou atuais.

Para desenvolvermos uma verdadeira espiritualidade humana, temos de aprimorar a visão crítica e, ao mesmo tempo, a capacidade de sonhar. Para isso, o Cinema pode ser uma boa janela de esperança. O grande diretor Ingmar Bergmann afirmava: “Creio que todas as qualidades que comumente vinculamos a Deus – amor, ternura, graça, podem se encontrar nos próprios seres humanos. Isso é o grande milagre. (...) Penso que a arte só pode ser feita com uma espécie de obsessão espiritual”. Já Charles Chaplin, ao comentar um de seus filmes sobre o imortal Carlitos, dizia: “Ao sair de um bom filme, a gente fica com a impressão enervante e desalentadora de que alguém esteve espiando por dentro a nossa alma”.



sábado, 19 de fevereiro de 2011

OS SONHOS DE KEPLER


por FREI BETTO

No século XX, o ser humano conquistou o "impossível". Sabemos voar como os pássaros, navegar sob as águas como os peixes, correr mais rápido do que os coelhos e somos capazes de nos comunicar a distâncias outrora inimagináveis. Somos a geração automotiva. O relógio mede cada segundo do nosso tempo, cavalos e carruagens cederam lugar a carros e aviões, trovadores invisíveis cantam através de nosso equipamento de som, arautos sem rosto divulgam os fatos pelo rádio, o circo e o teatro irrompem em nossa sala nas dimensões de uma pequena tela eletrônica.

Melhor do que dividir a história em antiga, medieval, moderna e contemporânea, é distingui-la pelas eras agrícola, que durou 10.000 anos; industrial, nos últimos 100 anos; e, agora, cibernética. Johannes Kepler, nascido na Alemanha em 1571, atraído pelo faro estético dos gregos - que acreditavam ter o Universo uma natural simetria - descobriu a arquitetura do sistema solar e levou quatro anos para calcular a órbita de Marte, uma elipse perfeita. Com um computador, bastariam quatro segundos.

Kepler, que escreveu um livro intitulado O Sonho, teria invejado a nossa geração se imaginasse quanto tempo poderíamos poupar. Daria asas à imaginação, sonhando em fazer tudo aquilo que o trabalho exaustivo não lhe permitia: desfrutar da vida campestre, perder tempo com os amigos, ficar na igreja ouvindo o som inebriante do órgão, contemplar o céu noturno para captar a música das estrelas. O que ele jamais poderia supor é que, com tanta tecnologia, a nossa geração dispõe cada vez mais de menos tempo.

Somos incorrigivelmente vorazes. Queremos processar o máximo de informações no mínimo de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Ansiamos por estar lá - não no caminho - e, por isso, afundamos o pé no acelerador do carro possante e afugentamos os pedestres, disputando com o motorista ao lado um palmo de asfalto, como se à frente não houvesse sinais vermelhos contrários à nossa sofreguidão. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operações digitais no computador.

Ainda que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a "coleira eletrônica" impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma flexão abdominal e outra, uma decisão e outra no trabalho, controlamos os filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos frágeis e mortais.

Porque precisava pensar, Kant nunca saiu de Königsberg, onde construiu uma obra filosófica monumental. Ora, para que livros se há milhares de vídeos interessantes? Basta saber que o patrimônio cultural da humanidade se encontra armazenado nas bibliotecas. Relaxados, passamos horas, dias, meses e anos de nossas vidas vendo um punhado de homens correrem atrás de uma bola e carros velozes desafiando as curvas da morte. Nossos heróis estão distantes da arte musical de Mozart, da física de Planck ou da literatura de Machado de Assis. Veneramos aqueles que quebram limites. O Evangelho da "pós-modernidade" são os índices do mercado financeiro. A Bíblia, o Guiness Book of the Records. Pelé fez 1.000 gols. Michael Jackson coloriu de branco sua pele negra. Ayrton Senna andou mais depressa grudado ao solo que qualquer outro mamífero.

Só não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que mais procuramos? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das estrelas.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto

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A IGREJA ERETA RUI




por ASSUERO GOMES

Muitos de nós, sobreviventes do desmonte pós-conciliar, assistimos, a maioria passivamente, outros com resmungos e muxoxos entre quatro paredes, ruir a Igreja dos sonhos libertários, como um castelo construído sobre nuvens de areia à beira mar do oceano do céu.

Frustrados e atônitos, viu-se a (re)ereção do modelo tridentino como paradigma de uma Igreja perpétua, triunfante e única possível, como último bastião de uma civilização gloriosa, fora da qual não haveria salvação. Última barca de fiéis a se salvar boiando acima das águas turbulentas e das cabeças de uma humanidade perdida, num derradeiro e apocalíptico dilúvio.

Muitos se apegam ao que seriam sinais de renovação desse modelo de Igreja, tais como a ordenação de mulheres, a aceitação de padres casados exercendo plenamente o ministério, à eleição dos bispos através de voto direto do povo católico da diocese, e assim por diante. É preciso, no entanto, olhar esses sinais tão ansiados, com um olhar bem mais profundo. Até que ponto eles seriam estruturadores de um novo modelo de Igreja ou seriam apenas conjunturais e revelam simplesmente uma mudança de quem estaria no poder? Uma mulher ordenada padre seria mais democrática que um padre homem? Os padres casados não estão apenas com saudosismo do altar? Um bispo escolhido diretamente pela vontade dos fiéis, mas com a estrutura centralizadora de poder, mudaria tanto assim a face administrativa da Igreja?

Creio firmemente que estamos no limiar de uma nova Igreja. O modelo atual rui. Há que se pensar mais além. E o Espírito nos foi soprado para nos dar liberdade de pensamento, ação e desejo, pois tudo podemos naquele que nos fortalece.

O modelo atual nos dá uma imensa ‘segurança espiritual’ pois nos indica as missas dominicais, os sacramentos regulares, as contribuições pecuniárias, os ritos salvíficos, a organização do corpo social, padres formados em seminários fechados livres do mundo. Porém os templos estão vazios, as vocações para este modelo estão escassas e os escândalos, principalmente de origem sexual e monetária, explodem na base dessa construção.

Para onde, então, nos sopra o Espírito?

É necessário abrir o coração para escutar o novo, como um ‘epheta’. Lembrar que para servir aos necessitados não se precisa ser obrigatoriamente um padre ou uma freira, nem para celebrar o amor de Deus para com a humanidade ser um bispo ou uma mulher ordenada, nem se ter um templo suntuoso, nem de tantos doutores nem de tantos sábios, para que a glória de Jesus se manifeste na nossa limitação através da força de seu amor, no serviço. É hora de se pensar em erigir uma Igreja de carne e afeto, de acolhimento e partilha. Essa não rui jamais.


por LEONARDO BOFF









Muitos estranham o fato de que, sendo teólogo e filósofo de formação, me meta em assuntos, alheios a estas disciplinas como a ecologia, a política, o aquecimento global e outros.

Eu sempre respondo: faço, sim, teologia pura, mas me ocupo também de outros temas exatamente porque sou teólogo. A tarefa do teólogo, já ensinava o maior deles, Tomás de Aquino, na primeira questão da Suma Teológica é: estudar Deus e sua revelação e, em seguida, todas as demais coisas “à luz de Deus”(sub ratione Dei), pois Ele é o princípio e o fim de tudo.

Portanto, cabe à teologia ocupar-se também de outras coisas que não Deus, desde que se faça “à luz de Deus”. Falar de Deus e ainda das coisas é uma tarefa quase irrealizável. A primeira: como falar de Deus se Ele não cabe em nenhum dicionário? A segunda, como refletir sobre todas as demais coisas, se os saberes sobre elas são tantos que ninguém individualmente pode dominá-los? Logicamente, não se trata de falar de economia com um economista ou de política como um político. Mas falar de tais matérias na perspectiva de Deus, o que pressupõe conhecer previamente estas realidades de forma critica e não ingênua, respeitando sua autonomia e acolhendo seus resultados mais seguros. Somente depois deste árduo labor, pode o teólogo se perguntar como elas ficam quando confrontadas com Deus? Como se encaixam numa visão mais transcendente da vida e da história?

Fazer teologia não é uma tarefa como qualquer outra como ver um filme ou ir ao teatro. É coisa seríssima pois se trabalha com a categoria”Deus” que não é um objeto tangível como todos os demais. Por isso, é destituída de qualquer sentido, a busca da partícula “Deus” nos confins da matéria e no interior do “Campo Higgs”. Isso suporia que Deus seria parte do mundo. Desse Deus eu sou ateu. Ele seria um pedaço do mundo e não Deus. Faço minhas as palavras de um sutil teólogo franciscano, Duns Scotus (+1308) que escreveu:”Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. Quer dizer, Deus não é da ordem das coisas que podem ser encontradas e descritas. É a Precondição e o Suporte para que estas coisas existam. Sem Ele as coisas teriam ficado no nada ou voltariam ao nada. Esta é a natureza de Deus: não ser coisa mas a Origem das coisas.

Aplico a Deus como Origem aquilo que os orientais aplicam à força que permite pensar:”a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. A Origem das coisas não pode ser coisa.

Como se depreende, é muito complicado fazer teologia. Henri Lacordaire (+1861), o grande orador francês, disse com razão:”O doutor católico é um homem quase impossível: pois tem de conhecer todo o depósito da fé e os atos do Papado e ainda o que São Paulo chama de os ‘elementos do mundo’, isto é tudo e tudo”. Lembremos o que asseverou René Descartes (+1650) no Discurso do Método, base do saber moderno:” se eu quisesse fazer teologia, era preciso ser mais que um homem”. E Erasmo de Roterdam (+1536), o grande sábio dos tempos da Reforma, observava:”existe algo de sobrehumano na profissão do teólogo”. Não nos admira que Martin Heidegger tenha dito que uma filosofia que não se confrontou com as questões da teologia, não chegou plenamente ainda a si mesma. Refiro isso não como automagnificacão da teologia mas como confissão de que sua tarefa é quase impraticável, coisa que sinto dia a dia.

Logicamente, há uma teologia que não merece este nome porque é preguiçosa e renuncia a pensar Deus. Apenas pensa o que os outros pensaram ou o que o que disseram os Papas.

Meu sentimento do mundo me diz que hoje a teologia enquanto teologia tem que proclamar aos gritos: temos que preservar a natureza e harmonizarmo-nos com o universo, porque eles são o grande livro que Deus nos entregou. Lá se encontra o que Ele nos quer dizer. Porque desaprendemos a ler este livro, nos deu outro, as Escrituras, cristãs e de outros povos, para que reaprendêssemos a ler o livro da natureza. Hoje ela está sendo devastada. E com isso destruímos nosso acesso à revelação de Deus. Temos pois que falar da natureza e do mundo à luz de Deus e da razão. Sem a natureza e o mundo preservados, os livros sagrados perderiam seu significado que é reensinarmos a ler a natureza e o mundo. O discurso teológico tem, pois, o seu lugar junto com os demais discursos.

Leonardo e Clodovis Boff escreveram Como fazer teologia da libertação Vozes 2010

O FIM DAS CERTEZAS



por Maria clara Bingemer







Nossa época é um tempo feito de incerteza, de insegurança: a respeito da própria identidade, de uma posição estável e sólida na sociedade, da visão de mundo que realmente é a minha. Segundo Zygmunt Bauman, isto é um passivo antes que um ativo, um peso que constrange o movimento. E Bauman especifica aquilo que chama de líquido e aparece em todas as suas obras. Não é tanto o líquido da água pura e cristalina, que lava e desaltera, mas um líquido pegajoso, viscoso, que gruda na pele e do qual não se consegue ficar livre.

A “viscosidade” de que fala Bauman vai significar um novo” habitat” para aquilo que entendemos como verdade, certeza, crença, identidade. A disputa sobre a veracidade ou falsidade de certas crenças é sempre simultaneamente a discussão sobre o direito de alguns de falar com autoridade o que alguns outros devem obedecer. A disputa, na verdade, é sobre o estabelecimento ou reafirmação das relações de superioridade e inferioridade, de dominação e submissão entre os detentores das crenças.

Por isso o que é ou não certo, o que é ou não verdadeiro hoje se pluralizou... e os filósofos disputam isto, construindo não uma teoria da verdade, mas uma teoria das verdades, no plural. E porque a pluralidade das verdades cessou de ser instigante e contestável radicalmente, será cedo deixada para trás. E devido à possibilidade de diferentes crenças poderem ser não apenas consideradas e julgadas verdadeiras simultaneamente, mas serem de fato verdadeiras, a teoria da verdade situada no centro da atenção do pensar contemporâneo parece haver perdido muito de sua função de disputa com relação ao status de conhecimento não só filosófico mas transdisciplinar, relativo a várias áreas do saber.

Um dos grandes desafios da tardo modernidade em que vivemos, talvez sem precedentes, seja a diversidade e pluralidade em que estamos mergulhados, diversidade esta situada no interior de uma fraca, negligente e impotente institucionalização de diferenças, com suas resultantes de fugacidade, maleabilidade e curta sobrevida.

Se antes o desafio para a questão da identidade era como construí-la consistentemente e dar-lhe uma forma que recebesse reconhecimento universal, hoje o problema da identidade emerge sobretudo da dificuldade de sustentar qualquer identidade por um prazo mais longo, da virtual impossibilidade de encontrar uma forma de expressão da identidade que tenha uma boa chance de ser reconhecida por toda a vida, e a resultante necessidade de não abraçar nenhuma identidade muito estreitamente, a fim de poder abandoná-la da maneira mais rápida possível.
A medida do pensar e do conhecer não é mais o logos, mas a imagem fugaz e brilhante que cativa a vista e impacta sensorialmente o ser humano, impedindo uma interpretação e uma assimilação livre e profunda daquilo que vê e recebe como estímulo para poder realizar sua síntese própria.
Não é à toa que no universo bíblico o sentido humano privilegiado para viver plenamente é o ouvido, a escuta. O ver está sempre sob suspeita, pelos grandes riscos que corre de ser idolátrico. O deserto, lugar de conversão por excelência para o povo bíblico e, por isso mesmo, o lugar da escuta absoluta, é o lugar onde a verdade pode manifestar-se, livre dos riscos de um ver banalizado e fechado, idolátrico. O que está circunscrito a meu campo de visão pode ficar confinado aos meus limites e ser, portanto, manipulado por mim. A escuta é propiciada pelo Espírito que, sopro divino vivificante, se comunica livremente e não se deixa agarrar nem dizer de onde vem nem para onde vai.

A verdade que emerge dessa escuta se deixa, então, encontrar, em experiências profundas de sentido que a fé denomina experiência de Deus e que não seriam objeto de reflexão apenas da teologia, mas também de todas as ciências que se dizem humanas e se interessam pelo destino do ser humano neste mundo e neste momento histórico.
A religião reduzida a um mero ato humano, natural, sem transcendência não daria conta deste desafio. Explica-se humanamente e aí se esgota. Há que voltar às fontes, ou seja, à Palavra Reveladora cuja origem misteriosa ensina ao ser humano qual sua verdadeira origem, sua autêntica morada e se manifesta como verdade que emerge das entranhas da história para brilhar epifanicamente na alteridade do rosto do outro.


Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape


Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL



por Marcelo barros







Nestes dias, milhares de pessoas de todo o mundo voltam de Dakar, no Senegal, onde na semana passada (de 06 a 10 de fevereiro), se encerrou o 9º Fórum Social Mundial. Desde os anos 70, a cada ano, os homens mais ricos do mundo se reúnem em Davos, na Suiça, para um Fórum Econômico Mundial. Há dez anos, educadores e militantes de direitos humanos tiveram a idéia de promover um encontro diferente. Para mostrar que o dinheiro é importante, mas não é tudo, propuseram um encontro no qual as pessoas se encontrassem como cidadãs do mundo e para pensar a possibilidade de um mundo mais justo e de paz. Os grandes meios de comunicação, ligados aos proprietários do Capital, não aprovaram a idéia e a ridicularizaram de todos os modos que puderam. Os promotores do 1º Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre (2001), pensaram em reunir umas cem pessoas. A surpresa foi que, espontaneamente, sem convites e sem maior estrutura econômica, chegaram mais de três mil. No 2º Fórum, já eram mais de 20.000 e nos fóruns seguintes, várias vezes, o número ultrapassou cem mil. O regulamento do fórum o mantém como espaço aberto à participação de toda a humanidade. Não tem vínculos religiosos, nem político-partidários. Nos fóruns, nenhuma autoridade política é maior do que qualquer outro cidadão. Nele participam índios, comunidades afro-descendentes, lavradores e pessoas sem teto, discutindo de igual para igual com doutores de universidade e políticos profissionais. Desde o 4º Fórum Mundial, ocorrido em Bangladesh na Índia, centenas de dalits, considerados impuros por muitos de seu país, têm o direito de falar e propor outro modo de organizar a sociedade. Em 2009, o fórum aconteceu em Belém e assumiu a preocupação maior da defesa da Amazônia e da solidariedade aos povos indígenas. Neste ano, de 06 a 13 de fevereiro, o Fórum se reuniu pela segunda vez na África, desta vez no Senegal, um dos países mais pobres do continente.

Se comparamos o mundo de 2001, quando ocorreu o primeiro fórum social e a realidade atual, constatamos mudanças imensas e nem sempre para melhor. Ao mesmo tempo que o sistema econômico capitalista vive uma crise estrutural imensa que já dura mais de dois anos, a maior parte dos governos não busca alternativas. Simplesmente investem somas de dinheiro para salvar bancos e concentrar mais ainda as grandes multinacionais, enquanto exigem dos pobres sacrifícios maiores e mais insegurança social. Em países antes equilibrados, as taxas de desemprego sobem às alturas e o número de pobres aumenta assustadoramente. Ao mesmo tempo, além das vítimas asiladas de regimes políticos opressores, agora se multiplicam também as vítimas de catástrofes naturais, cada vez mais freqüentes e descontroladas. Na Austrália, às mais fortes inundações dos últimos anos, se sucederam tufões e tempestades destruidoras. Assim mesmo, diferentemente do Brasil, o poder público organizou o povo e não houve vítimas fatais. Isso não impede que milhares de pessoas estejam desabrigadas e carentes. Os governos do Congo e da Austrália, assim como os governantes brasileiros prometem ajudar as vítimas da natureza, mas não revêem seus programas que continuam a destruir o planeta e provocar tais catástrofes. Para a sociedade dominante, ganhar dinheiro continua o objetivo fundamental, mesmo com métodos que, a médio prazo, incidem contra a própria vida e provocam mais gastos. Afinal, quem vai devolver aos desabrigados do Congo, da Austrália, do Brasil e tantas outras partes do mundo o que estas pessoas perderam, em termos humanos, emocionais e materiais?

O Fórum Social de Dakar retomou estas questões, procurou formas novas de apoiar os movimentos sociais organizados e fortalecer o processo de descolonização de países africanos e latino-americanos. Certamente, o sucesso deste fórum repercutirá em fóruns locais e temáticos que se espalharão pelo mundo todo. Apesar de todas as dificuldades e desafios, como dizia Dom Hélder Câmara: “Há mil razões para acreditar no futuro e apostar no melhor”. Para quem participou de algum dos fóruns sociais, certamente ainda ressoa o refrão da música mais cantada nos fóruns que ocorreram no Brasil: “Aqui, um outro mundo é possível, se a gente quiser!”.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

AS FLORESTAS E O FUTURO DO PLANETA


por Marcelo Barros




Nesta época do ano, em várias regiões do Brasil, multiplicam-se as queimadas. Os jornais falam em milhares de focos de incêndio que devastam florestas, campos e cerrados. A maioria destes focos é provocada por proprietários rurais. Tanto o governo, como grupos ecológicos têm dificuldade de impedir este crime ambiental. O quadro ainda se agrava mais agora, quando o Congresso Nacional discute e vota um novo Código Florestal. Para compreender melhor o conteúdo e as conseqüências de tal lei para as florestas brasileiras, basta perceber quem o defende e quem o ataca. Apesar de proposto por um deputado que se diz socialista, o novo Código está sendo defendido pela bancada rural do Congresso e por grandes latifundiários. Contra ele, estão o Ministério do Meio Ambiente, todas as entidades que trabalham com a defesa da natureza, as organizações de trabalhadores rurais e os povos indígenas. Só por isso, já é possível alguém saber que posição deve tomar a respeito deste assunto. Entretanto, alguns dados publicados pelo sociólogo Rafael Cruz ainda nos alertam mais: “A proposta de revisão do Código Florestal abre margem para novos desmatamentos, na ordem de 85 bilhões de hectares de terra, uma área maior do que os estados de São Paulo e Minas Gerais juntos” (Cf. Le Monde Diplomatique Brasil, julho 2010, p. 20).

Muita gente lamenta as inundações ocorridas no início do ano em Santa Catarina e São Paulo e o verdadeiro Tsunami fluvial, provocado pelas chuvas, que, há um mês, devastou várias cidades de Alagoas e Pernambuco. Entretanto, poucos ligam estes fatos com a destruição das florestas e a degradação do ambiente. Conforme os órgãos internacionais da ONU, o Brasil é o quarto maior poluidor do clima no mundo e o é por causa das queimadas. A ONU adverte que a destruição das florestas brasileiras é responsável por 75% das emissões de gases estufa do país. O governo brasileiro assumiu compromissos internacionais de conseguir até 2020, reduzir a emissão de CO2 em até 38, 9 % e diminuir em 80% o desmatamento da Amazônia. Ora, quem estuda o assunto sabe que já foram derrubados 73 milhões de hectares de floresta amazônica, dos quais, segundo dados do governo, 80% são ocupados com criação de gado. Da imensa Mata Atlântica que se espalhava por toda a região próxima do litoral brasileiro, restam apenas sete por cento. E o Cerrado que se estende por vários estados e no qual nascem quase todas as grandes bacias hidrográficas do Brasil é o mais ameaçado de todos os biomas.

“O novo Código Florestal está sendo chamado “a lei da motosserra”. Parte da premissa que as preocupações ecológicas não são importantes e que a concentração da propriedade rural brasileira deve ainda aumentar. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, em 2006, o Brasil tem 5, 2 milhões de estabelecimentos rurais. Destes, 84% são de agricultura familiar. São 4, 4 milhões de pequenas propriedades que, juntas, ocupam apenas 24% da área agrícola brasileira, ou seja, um total de 80 milhões de hectares e abrigam 74% dos trabalhadores no campo. Enquanto isso, 16% de grandes propriedades rurais ocupam 86% das terras agrícolas brasileiras. É um total de 250 milhões de hectares, área equivalente às regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, juntas. O tamanho médio destas propriedades é de 300 hectares, enquanto o agricultor que, de fato, abastece a maioria de nossas feiras livres é de sete hectares. Como os ruralistas acham pouco essa escandalosa concentração de terra, querem mais. Com a anuência da Comissão do Congresso que quase só escutou proprietários rurais e com o descaso das pessoas desinformadas, pretendem tomar mais espaço de nossas reservas florestais e de áreas de proteção ambiental” (Cf. Le Monde Diplomatique Brasil, idem, p. 21).

O Mahatma Gandhi já dizia que a terra, com suas florestas e suas áreas verdes preservadas, é suficientemente grande e maternal para alimentar toda a humanidade, mas nunca bastará para saciar a ambição da pequena porção de seres humanos que faz do lucro e da ganância a sua divindade. A quem é cristão, o Evangelho adverte: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).

CIDADE E QUALIDADE DE VIDA


por Frei Betto

Se considerarmos que o ser humano surgiu há cerca de 200 mil anos, a cidade é uma invenção relativamente recente. Durante milênios nossos ancestrais viveram como nômades coletores e, aos poucos, as técnicas de reprodução dos alimentos os fixaram como agricultores e pecuaristas. Havia, naquele longo período – como ainda hoje nas comunidades indígenas tribalizadas – relação direta, e até venerável, entre o ser humano e a natureza. Nossos antepassados se alimentavam sem alterar ecossistemas, biomas, biodiversidade.

Essa relação se altera com o advento das cidades. E um dos relatos mais significativos de como isso ocorreu é o episódio bíblico da Torre de Babel (Gênesis 11, 1-9), joia literária em menos de dez versículos.

Babel é semantema de Babilônia. Deriva da raiz hebraica “bil”, que significa “confundir”. Narra o texto bíblico que Javé, ao observar Babel, convenceu-se de que os humanos se fechavam em seus próprios e ambiciosos projetos, deixando de acolher os desígnios divinos. “Isso é o começo de suas iniciativas!” – disse o Senhor. “Agora nenhum projeto será irrealizável para eles.”

Segundo o autor bíblico, após o Dilúvio “todos se serviam da mesma língua e das mesmas palavras.” Não havia diversidade de enfoques e opiniões. O ponto de vista de um – o cacique, o chefe do clã, enfim, o poderoso -, era o ponto de vista de todos. E a atividade agropastoril igualava as pessoas.

A invenção do tijolo e da argamassa provoca um movimento migratório do campo para a urbe. Os humanos decidem “construir uma cidade” – Babel.

O versículo 4 registra as propostas de construção da cidade e da torre, e destaca o principal motivo de tal empreitada: “Para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela face da Terra.” Não se tratava de obter felicidade, bem-estar, bênçãos divinas. Importava a fama, possuir um nome sobreposto aos demais, e permanecer segregado, seguro.

A revolução tecnológica representada pelo tijolo (insuperado até hoje) imprime aos humanos a consciência de que não estão mais condicionados pela natureza. A relação se inverte. Agora é o ser humano que condiciona a natureza. Transforma-a em artefato.

Desprendido do ciclo da natureza, o ser humano já não funda sua identidade nos vínculos comunitários da sociedade agrária. Sua consciência se personaliza, ele se torna senhor do próprio destino, livre das mutações ecológicas que antes criavam nele a sensação de fatalidade e de temporalidade cíclica.

Tais avanços enchem os humanos de orgulho. Não satisfeitos de “construir a cidade”, decidem abrir a “porta do deus”, ou seja, erguer “uma torre cujo ápice penetre nos céus”. Aqui o relato expressa duas ambições: a de edificar uma montanha artificial (a torre), repositório da divindade, e a de “penetrar nos céus”, quebrar o limite entre o humano e o divino, o profano e o sagrado, a Terra e o Céu. Já não é a divindade que desce à Terra, é o ser humano que invade o Céu, graças à obra de suas mãos.

Antes que a soberba humana se inflasse ainda mais, Javé confundiu a linguagem dos habitantes de Babel e os dispersou. “Eles cessaram de construir a cidade.” Portanto, Babel não foi maldição. Foi dádiva. Delimitou a ambição humana e revelou ser obra de Deus a diversidade de pontos de vista e opiniões, contrária à identificação entre autoridade e verdade.

Toda essa sabedoria explica a arrogância decorrente, ainda hoje, de avanços científicos e tecnológicos. Queremos ser deuses. Nossa busca de endeusamento e imortalidade se reflete na babel ou confusão reinante em nossas cidades. Não pensamos no comunitário ou coletivo, pensamos no individual e no lucrativo.

Assim, nos gabamos de que o Brasil vendeu, em 2010, mais de 3 milhões de veículos automotores, embora isso agrave a congestão metropolitana, a poluição, os acidentes, pela impossibilidade de fiscalizar tantos veículos e abrir tantos espaços urbanos para que se locomovam e estacionem. Não se investe o suficiente em transportes coletivos, assim como não se planeja o espaço urbano, alvo de especulação imobiliária e vulnerável a fenômenos climáticos decorrentes de desequilíbrios ambientais, o que causa enchentes, desabamentos e secas prolongadas.

Hoje em dia, ganha cada vez mais espaço a proposta de bem viver dos povos indígenas andinos, conhecida como sumak kawsay. Sumak significa plenitude e kawsay viver. Não se trata de viver melhor ou viver cercado de conforto. Trata-se de viver em plenitude.

Plenitude implica fazer da felicidade um projeto comunitário, coletivo. É saber construir relações de solidariedade, não de competição; de harmonia, não de hostilidade; e estabelecer com a natureza vínculos de parceria cuidadosa.

Para a sociedade capitalista, a natureza é objeto de propriedade e temos o direito de explorá-la e até destruí-la em função de nossas ambições. O capitalismo se norteia pelo paradigma riqueza-pobreza, enquanto o sumak kawsay rompe esse dualismo para introduzir a de sociabilidade e de sustentabilidade, bases fundamentais de um projeto civilizatório. Fora disso, caminharemos para a barbárie.



Frei Betto é escritor, autor, com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo (ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros.

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jTATIC


por Maria Clara Bingemer

Há luto e orfandade em San Cristobal, Chiapas. E no coração de todos os indígenas e povos nativos da América que há séculos sofrem as consequências da opressão imposta pelos colonizadores brancos. Faleceu seu jTatic, dom Samuel Ruiz.
A palavra jTatic quer dizer “pai” em língua tzotzil e foi o carinhoso nome que os indígenas de São Cristobal deram a seu bispo. Com isso, desejavam expressar reconhecimento pelo desvelo de dom Samuel para com eles, por sua paternal proteção em relação a todas as perseguições e sofrimentos, pela coragem inquebrantável dele em defesa de seus direitos.
Nascido há 86 anos na cidade mexicana de Irapuato, no centro do país, dom Samuel foi designado, em 1959, bispo de San Cristobal de las Casas, em Chiapas. Encontrou uma diocese extremamente pobre, na sua maioria, indígena e profundamente golpeada por abusos e injustiças. Seus olhos de profeta se indignaram com a visão do dorso chagado dos indígenas sob o chicote dos proprietários de terras. Seu coração de pastor derramou lágrimas de compaixão diante do sofrimento das jovens indígenas submetidas ao ignóbil “direito de pernada”, que permitia ao patrão deitar-se com elas para constatar sua virgindade antes do casamento.
Logo compreendeu que se fazia necessária uma teologia e uma pastoral corajosas para agir contra esse tipo de situação. Tomou posições de extrema coragem na defesa dos indígenas e não temeu assumir publicamente que via na libertação dos pobres - constitutiva do Evangelho e prioridade iniludível de todo cristão - sua opção principal como bispo.
Durante as quatro décadas em que esteve à frente da diocese de San Cristobal, e até sua morte, o jTatic, como foi chamado carinhosamente pela população indígena de Chiapas que seguia maciça e devotamente suas homilias e pronunciamentos, lutou incansavelmente pela defesa dos direitos humanos. Seu compromisso o levou a aprender quatro idiomas originários da região. Além disso, ali fundou um excelente e prestigioso centro de direitos humanos em 1989.
Foi também um construtor da paz. Fez a mediação entre o Exército Zapatista de Libertação Nacional e o governo, após o levantamento armado da guerrilha de 1994, em Chiapas. O governo do então presidente Ernesto Zedillo o acusou de incitar à violência por seu trabalho com as comunidades, das quais surgiu a guerrilha do subcomandante Marcos, e apoio às reivindicações sociais por ele apresentadas.
Porém, foi graças à mediação do bispo que as partes conseguiram chegar a um acordo em 1996, obtendo do governo a promessa de atender as demandas do grupo rebelde. Pelo extraordinário papel que desempenhou nesse conflito, dom Samuel foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Já como bispo emérito, retirado em Queretaro, continuou colaborando com a ONG por ele fundada e mediando outros conflitos, como o de 2008 entre o governo e o Exército Popular Revolucionário.
Na missa de seu funeral, o bispo de Saltillo, dom Raul Vera, recordou a vida admirável de seu companheiro de episcopado, que tinha como lema de seu ministério a frase do profeta Jeremias: “Para construir e plantar”. Como o profeta, dom Samuel provocava contradição: amado e abençoado pelos pobres e condenado por outros setores da sociedade que não aceitavam suas fortes e interpeladoras palavras e seus proféticos gestos.
Hoje os indígenas choram a ausência de seu jTatic, ao mesmo tempo em que celebram sua ressurreição. Perseguido e incompreendido enquanto vivia, dom Samuel não deixou de ser misericordioso e de dar-se inteiro à luta pela justiça e ao amor desvelado pelos pobres. Atacado e ameaçado de todas as maneiras possíveis por aqueles a quem sua pastoral incomodava, respondeu com perdão e mansidão, sem mitigar em nada a força de sua palavra e sua atuação profética. Construiu e plantou! Bem-aventurado e predileto de Deus, entra agora no gozo de seu Senhor.

Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape


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\UMA ESPERANÇA: A ERA DO ECOZÓICO


Lboff/ ecozoicopor Leonardo Boff

Quem leu meu artigo anterior O antropoceno:uma nova era geológica deve ter ficado desolado. E com razão, pois, quis intencionalmente provocar tal sentimento. Com efeito, a visão de mundo imperante, mecanicista, utilitarista, antropocêntrica e sem respeito pela Mãe Terra e pelos limites de seus ecossistemas só pode levar a um impasse perigoso: liquidar com as condições ecológicas que nos permitem manter nossa civilização e a vida humana neste esplendoroso Planeta.

Mas como tudo tem dois lados, vejamos o lado promissor da atual crise: o alvorecer de uma nova era, a do Ecozóico. Esta expressão foi sugerida por um dos maiores astrofísicos atuais, diretor do Centro para a História do Universo, do Instituto de Estudos Integrais da Califórnia: Brian Swimme.

Que significa a Era do Ecozóico? Significa colocar o ecológico como a realidade central a partir da qual se organizam as demais atividades humanas, principalmente a econômica, de sorte que se preserve o capital natural e se atenda as necessidades de toda a comunidade vida presente e futura. Disso resulta um equilíbrio em nossas relações para com a natureza e a sociedade no sentido da sinergia e da mútua pertença deixando aberto o caminho para frente.

Vivíamos sob o mito do progresso. Mas este foi entendido de forma distorcida como controle humano sobre o mundo não-humano para termos um PIB cada vez maior. A forma correta é entender o progresso em sintonia com a natureza e sendo medido pelo funcionamento integral da comunidade terrestre. O Produto Interno Bruto não pode ser feito à custa do Produto Terrestre Bruto. Aqui está o nosso pecado original.

Esquecemos que estamos dentro de um processo único e universal – a cosmogênese – diverso, complexo e ascendente. Das energias primordiais chegamos à matéria, da matéria à vida e da vida à consciência e da consciência à mundialização. O ser humano é a parte consciente e inteligente deste processo. É um evento acontecido no universo, em nossa galáxia, em nosso sistema solar, em nosso Planeta e nos nossos dias.

A premissa central do Ecozóico é entender o universo enquanto conjunto das redes de relações de todos com todos. Nós humanos, somos essencialmente, seres de intrincadíssimas relações. E entender a Terra com um superorganismo vivo que se autoregula e que continuamente se renova. Dada a investida produtivista e consumista dos humanos, este organismo está ficando doente e incapaz de “digerir” todos os elementos tóxicos que produzimos nos últimos séculos. Pelo fato de ser um organismo, não pode sobreviver em fragmentos mas na sua integralidade. Nosso desafio atual é manter a integridade e a vitalidade da Terra. O bem-estar da Terra é o nosso bem-estar.

Mas o objetivo imediato do Ecozóico não é simplesmente diminuir a devastação em curso, senão alterar o estado de consciência, responsável por esta devastação. Quando surgiu o cenozóico (a nossa era há 66 milhões de anos) o ser humano não teve influência nenhuma nele. Agora no Ecozóico, muita coisa passa por nossas decisões: se preservamos uma espécie ou um ecossistema ou os condenamos ao desaparecimento. Nós copilotamos o processo evolucionário.

Positivamente, o que a era ecozóica visa, no fim das contas, é alinhar as atividades humanas com as outras forças operantes em todo o Planeta e no Universo, para que um equilíbrio criativo seja alcançado e assim podermos garantir um futuro comum. Isso implica um outro modo de imaginar, de produzir, de consumir e de dar significado à nossa passagem por este mundo. Esse significado não nos vem da economia mas do sentimento do sagrado face ao mistério do universo e de nossa própria existência.Isto é a espiritualidade.

Mais e mais pessoas estão se incorporando à era ecozóica. Ela, como se depreende, está cheia de promessas. Abre-nos uma janela para um futuro de vida e de alegria. Precisamos fazer uma convocação geral para que ela seja generalizada em todos os âmbitos e plasme a nova consciência.

Leonardo Boff é autor de Cuidar da Terra-Proteger a vida. Record 2010.