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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

FELIZ ANO NOVO


Frei Betto

Feliz Ano Novo aos que acordam em 2021 sem a ressaca da culpa, plenos de vida na qual a paixão sobrepuja a omissão e o encanto tece luzes onde a amargura costuma bordar teias de aranha.

Feliz ano a quem não sonega afetos, arranca de si fontes onde borbulham transparências e não mira os que lhe são próximos como estranhos passageiros de uma viagem sem pouso, praias ou horizontes.

Felizes aqueles que abandonam no passado seus excessos de bagagem e, coração imponderável, recolhem à terra a pipa do orgulho e ousam a humildade.

Ano Novo a todos que despertam ao som de preces e agradecem o tido e não havido, maravilhados pelo dom da vida, malgrado tantas rachaduras nas paredes, figos ressecados e gatos furtivos.

Bom ano a quem gosta de feijão e se compraz nos grãos sobrados em prato alheio; a vida é dádiva, contração do útero, desejo ereto, espírito glutão insaciado de Deus.

Novo seja o ano àqueles que nunca maldizem, poupam palavras e semeiam fragrâncias nas veredas dos sentimentos.

Seja também feliz o ano de quem se guarda no olhar e, se tropeça, não cai no abismo da inveja nem se perde em escuridões onde o pavor é apenas o eco de seus próprios temores.

Novo ano a quem se recusa a ser tão velho que ambiciona tudo novo: corpo, carro e amor; viver é graça a quem acaricia suas rugas e trata seus limites como cerca florida de choupana montanhês.

Tenham um feliz ano todos que sabem ser gordos e felizes, endividados e alegres, carentes de afago mas repletos de vindouras fortunas em seus anseios.

Feliz Ano Novo aos órfãos de Deus e de esperanças, aos cavaleiros da noite e às damas que jamais provaram do leite que carregam em seus seios.

Felizes sejam, neste novo ano, os homens ridiculamente adornados, supostos campeões de vantagens; aqueles que nada temem, exceto o olhar súplice do filho e o sorriso irônico das mulheres que não lhes querem.

Felizes sejam também as mulheres que se matam de amor e dor por quem não merece, e que, no espelho, se descobrem tão belas por fora quanto o sabem por dentro.

Seja novo o ano para os bêbados que jamais tropeçam em impertinências e para quem não conspira contra a vida alheia e respeita os protocolos sanitários.

Feliz Ano Novo para quem coleciona utopias, faz de suas mãos arado e, com o próprio sangue, rega as sementes que cultiva.
            Sejam muito felizes os velhos que não se disfarçam de jovens e os jovens que superam a velhice precoce; seus corações tragam a idade alvíssara de emoções férteis.

Muitas felicidades aos que trazem em si a concha do silêncio e, à tarde, oferecem em suas varandas chocolate quente adocicado com sorrisos de sabedoria.

Um ano feliz aos que não se ostentam no poleiro da própria vaidade, tratam a morte sem estranheza e brincam com a criança que os habita.

Um Ano Novo muito feliz a todos nós que juramos sequestrar os vícios que carregamos e não pagar o resgate da dependência; o futuro nos fará magros por comer menos; saudáveis, por tragar oxigênio; solidários, por partilhar dons e bens.

Feliz 2021 ao Brasil que circunscreve a geografia do paraíso terrestre, sem terremotos, tufões, furacões, maremotos, desertos, vulcões, geleiras, tornados e montanhas inabitáveis. Conceda-nos Deus a bênção de tantos dons e nos livre de governos necrófilos.


Frei Betto é escritor, autor de O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

ÚLTIMA CRÔNICA DE NATAL EM TEMPOS DE CORONAVIRUS"

 


 

Frei Aloísio Fragoso


 

    Terminado o tempo litúrgico do Natal, permanece a sua Verdade essencial: "Nasceu-nos um Menino. Um Filho nos foi dado. Seu nome é Conselheiro Admirável, Deus Forte, Príncipe da Paz" Is.9,5

     A partir deste anúncio do profeta, só nos cabe fazer uma leitura do presépio original, com a visão transparente da Fé. Descartem-se teologias, filosofias, tecnologias, porque nenhuma ciência possui a força sobrenatural do olhar de uma criança pedindo para viver ou dos braços de uma mãe imolando-se a si mesma para dar-lhe vida. Reste apenas a pura contemplação.

 

    O Natal é a festa da simplicidade de Deus, só acessível aos simples de coração. Na simplicidade podemos desobstruir nosso espírito da sobrecarga de medos, rancores, ressentimentos, e lutar e até sofrer sem perder o gosto da festa da vida. Como as crianças. Precisamos de combatentes capazes de combater cantando. Necessitamos de bons contadores de lendas e anedotas, da mesma forma como necessitamos de inteligências lúcidas. Todo nascimento é, por si mesmo, uma festa. Dar e receber retomam cores novas.

 

    A singeleza do Natal, retratada na figura do Menino Jesus, condena todo cinismo e insensibilidade, bem como toda ideologização do seu mistério, que busca saídas cômodas. Deus não está por trás dos sofrimentos humanos. Deus não é provedor das riquezas acumuladas por ínfimas minorias sob o olhar mendicante dos excluídos. Ao nascer pobre, Jesus deixa claro de que lado Ele está.

 

     A  simplicidade dos pastores em torno ao presépio denuncia a cobiça dos falsos  pastores. Hoje em dia eles voltam a proliferar convertidos  em mercenários da Fé. Tentam convencer os simplórios de que Deus mandou o seu Filho porque não precisa de nós para nos redimir. Basta que lhe paguemos em dinheiro e submissão a conta de seus milagres televisivos. Como se Deus, em troca de ouro e prata, tivesse desistido de nossa parceria para construir a salvação.

 

     A despeito de tudo isso, o Natal é a festa do perdão de Deus. Além de enviar seu Filho Unigênito, Ele o mandou com este recado: "eu não vim para julgar, vim para salvar." Ele não nos condena, é a própria consciência que nos condena, se fazemos uso dela; se dela não fazemos uso, então que nos condene o olhar do pobre!

     Desde então, o que de melhor temos a fazer é acolher o dom que se oferece: o dom desta fraqueza aparente do Menino Deus, que transforma em força nossa fraqueza real. E assim matar nossa fome do Absoluto. Nossa fome é uma só e é indivisível: fome-de-pão-fome-de-vida-fome-de-Deus.

 

     Era uma vez uma aldeia perdida no meio de montanhas. Engastada ao pé de um imenso rochedo. A natureza tinha esculpido neste rochedo uma gigantesca figura, muito semelhante à figura de um homem. Por causa de suas dimensões enormes, por causa também de sua expressão real e grandiosa, aquele rochedo reinava sobre toda a região. Os habitantes olhavam para ele como se fosse um ser vivo. Com o tempo criou-se uma lenda que passava de boca em boca, de geração em geração e dizia o seguinte: um dia um homem de maravilhosa bondade, assemelhando-se, traço por traço, à figura da montanha, vai aparecer em nosso povoado, vai derramar suas virtudes, espalhar seus grandes benefícios. Ele será o nosso Redentor.

     Um adolescente da aldeia ficou tão impressionado com essa estória, que não parava mais de refletir e levantar os olhos para a montanha. Todo momento que tinha livre corria para perto da figura e se punha a contemplar e a pensar: como será ele? O que dirá? O que fará? Como vai nos libertar?  Nesse estado de espírito, perseverou, ano após ano, até chegar à idade de homem feito.

     Eis que, um belo dia, ao dirigir-se ele para a praça da aldeia, os moradores ergueram os olhos e tiveram uma grande surpresa. Os traços da figura da montanha resplandeciam  nele. Ele era o Libertador.

     De tanto contemplar o objeto de seus sonhos e da esperança do seu povo, ele acabou incorporando suas formas e fazendo a lenda virar realidade.

     É assim que devemos contemplar o mistério do Natal.

 Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

APESAR DE TUDO, FELIZ ANO NOVO

 


Marcelo Barros


A maioria das previsões e perspectivas feitas para 2021 aponta para um ano difícil e desafiador para a humanidade. No entanto, seja como for, nesses dias, as pessoas sempre transmitem umas às outras os votos de feliz ano novo. Há quem faça isso por mero costume. Deseja  feliz ano novo como costuma dar “bom dia” a quem encontra. Outros acreditam que, pelo fato de se falar, quase automaticamente, o desejo se torna realidade.

Em todo final de dezembro, deseja-se que o próximo ano seja melhor. No entanto, neste ano, quem quiser concretizar seus votos para o ano novo, não pode se satisfazer apenas em expressar desejos de paz, saúde e realização dos melhores sonhos para pessoas individuais. Sabe que ninguém poderá ter paz, saúde e bem-estar se a realidade social do Brasil e do mundo continua afundando na penumbra das incertezas. Como alguém pode se sentir em paz, seguro e tranquilo, enquanto a humanidade não superar essa pandemia e souber evitar outras? Ninguém terá realmente paz se não se efetivar uma sociedade mais justa. E não haverá justiça no mundo enquanto uma ínfima minoria de privilegiados concentrar em suas mãos riqueza equivalente a mais da metade de toda a humanidade. Ninguém terá saúde e paz se a terra, as águas e a natureza continuarem sendo destruídas na proporção que vimos acontecer neste fatídico 2020.

Na América Latina, o sonho de uma pátria grande solidária exige cada vez mais esforços. A guerra dos meios de comunicação contra qualquer transformação do mundo a favor dos empobrecidos continua implacável. A Venezuela, a Bolívia e outros países que o digam.

No mundo inteiro, movimentos sociais organizam as bases para uma aliança de toda a humanidade pela Paz, Justiça e Comunhão com o Universo. Grupos da sociedade civil trabalham pelo Conselho de Segurança dos Bens Comuns, principalmente, a água, as sementes e o conhecimento. No Brasil, grupos de base tentam retomar o esforço de educação popular que permita as pessoas interpretar criticamente o que está acontecendo e tomar posições mais justas e solidárias.

No mundo inteiro, os ritos de ano novo expressam esses desejos de renovação. Alguns povos tradicionais ainda guardam costumes como, na noite do ano novo, queimar toda a roupa usada e iniciar o 1º  de janeiro com vestimentas novas, símbolo de vida renovada. Na madrugada do primeiro dia do ano, fieis dos cultos afrodescendentes vão às praias e rios com flores e oferendas aos espíritos do céu e da terra. Em nome de todos os seres humanos, cantam sua disposição de amor e de comunhão universal.

Para 2021, movimentos sociais de todo o Brasil realizam um “Chamado para uma transição ecossocialista no Brasil”. Um coletivo denominado “Todos pelo bem comum” propõem nova dinâmica para os trabalhos de base, principalmente, retomando o processo de educação popular. Já para janeiro, movimentos sociais e a sociedade civil internacional preparam virtualmente um novo Fórum Social Mundial. Na Amazônia, se inicia o processo para um novo Fórum Panamazônico.

Cada vez mais fica claro o que os movimentos sociais já expressavam no fórum social ocorrido em Túnis, na África, em 2015: "A humanidade precisa de uma verdadeira revolução. Só a nossa ousadia pode torná-la possível". Essa ousadia comunitária parte da convicção de que o amanhã pode ser diferente. As organizações sociais brasileiras sustentam que, para isso, não podemos aceitar "nenhum direito a menos".  No plano mundial, entram na campanha internacional para 1 – reconhecer as vacinas contra vírus como bens comuns da humanidade e, assim como a água, não possam ser privatizadas e vendidas.  2 - organizar a sociedade de modo que a economia e as finanças sirvam para a vida da humanidade e não para o lucro de 60 famílias mais ricas do mundo.  3 - desarmar o mundo e impedir a guerra como negação da vida e da convivência humanas.

Sabemos que estas propostas vão na contramão de todos os poderes do mundo. Se insistimos em lutar por estes objetivos é porque cremos na vida e muitos de nós ligamos esta fé à fé em Deus. Se você está neste caminho conosco, pode se sentir feliz em testemunhar que trabalha para que, apesar de tudo, 2021 seja um ano novo mais feliz para toda a humanidade.

Para os cristãos, nos alegra mais ainda a fé de que, nesse caminho, estamos sempre acompanhado por Jesus ressuscitado que disse a seus discípulos/as: "Eu estarei com vocês todos os dias, até que esse tempo se complete" (Mt 28, 20).

 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

NATAL: E O VERBO SE FEZ CARNE...

 


  Maria Clara Lucchetti Bingemer


            Estamos em plena celebração do mistério do Natal, uma das festas máximas do Cristianismo e por que não dizer do Ocidente? Por toda parte e em todas as cidades do lado de cá do mundo há ruas enfeitadas, ornamentos festivos, músicas apropriadas tocando.  Por isso mesmo o agravamento da pandemia do novo coronavírus traz uma dor a mais: impedir ou restringir as alegres celebrações familiares com muitas pessoas.

As famílias numerosas terão que subdividir suas festas.  As menos numerosas se reunirão cheias de cuidados.  Crianças não poderão beijar, abraçar ou subir no colo dos avós. As manifestações de carinho serão coibidas em prol da saúde. Há que cuidar de toques, superfícies, gestos e, sobretudo, da proximidade.  Tudo para que não se espalhe ainda mais a Covid que já vem causando tantos estragos e ceifando um número considerável de vidas humanas. 

Talvez essas restrições nos ajudem a voltarmos os olhos para o centro do mistério que celebramos: a encarnação do Verbo de Deus.  Natal é a festa de Deus,  que não se aferrou a suas prerrogativas e se fez carne. Carne humana como a nossa, capaz de viver, suspirar, amar, sofrer, morrer.  Portanto, trata-se da festa da humanidade, do gênero humano, da espécie humana.  Embora Criador de tudo que existe, foi em um ser humano que o Verbo, o Filho de Deus tomou carne e habitou entre nós. 

O Natal nos convida a celebrar e alegrarmo-nos com nossa dignidade, que é grande, pois somos a única espécie criada capaz de conter o Salvador, de recebê-lo e com ele nos identificarmos. Foi com corporeidade semelhante à nossa que Jesus de Nazaré, o filho de Maria, conhecido como o filho do carpinteiro, andou pelo mundo e foi reconhecido por seus contemporâneos como alguém que estava em meio a eles, a quem viram crescer e aprender as coisas que os meninos aprendem: falar, andar, correr.  

Por isso, tantos se admiraram de que esse que viram pequeno e depois jovem, se haja manifestado a Israel anunciando a boa nova da chegada do Reino de Deus na sua pessoa.  Muitos creram nele e depois de sua morte o experimentaram vivo e ressuscitado, proclamando-o Senhor e Filho de Deus. 

Há mais de dois mil anos celebramos essa divina e humana festa.  Muitas vezes obscurecendo seu brilho com presentes excessivos e jantares suntuosos.  Este ano, as restrições nos dão uma oportunidade de contemplar mais de perto a inefável simplicidade que faz a grandiosidade infinita deste mistério: Deus se fez carne, assumiu a carne humana.  E fez do seu Natal a festa da humanidade. 

O Natal, embora seja evento divino, acontece na cotidianidade mais real e por isso mais terna: uma mulher grávida, uma família pobre tendo que se deslocar por força da lei de um tirano, um parto a termo, mas sem lugar apropriado para acontecer, o nascimento de uma criança que envolve dor, choro e maravilhamento.  Nasceu o menino de Maria, a quem ela pôs o nome de Jesus, no estábulo onde se aqueciam os animais porque não havia lugar em nenhuma das hospedarias da cidade.  Mas o menino nasceu e seu choro rompeu o silêncio da noite.  O milagre da vida aconteceu no estábulo de Belém, como acontece todos os dias nos caminhos, nas ruas, nos ônibus, nos trens, nas casas...e também nos hospitais desinfetados e limpos. Não deixa de ser milagre pelas circunstâncias em que acontece.  O milagre é a própria vida, tão frágil, mas ao mesmo tempo tão forte, capaz de vencer, acontecer e mudar a face da terra. 

E como esse nascimento muda a face da terra? A criança sendo limpa e acalentada por sua mãe ajudada pelo marido; o bebê sentindo fome e sendo levado ao seio túrgido de leite da mãe; a mulher dormindo exausta, mas feliz porque o que nascera de seu ventre era bendito, apesar da dor, da dificuldade e da pobreza.  Este é o mistério que se dá na história humana e a faz girar sobre seus gonzos. Esta é a luz invicta que brilhou para todo homem e mulher que já nasceu e nascerá sobre esta pobre e combalida terra. 

Diante dessa criança, dessa mulher, dessa família, a Igreja convida: “Vinde adoremos!” Não há nada de excessos nem de pompas.  Apenas um menino envolto em faixas deitado numa manjedoura.  Apenas a bela e comum experiência desta humanidade tão amada por Deus, que é criada à sua imagem e semelhança. Apenas a encarnação de Deus no ventre de uma jovem mulher. Apenas uma vida humana mostrando o caminho da salvação: ser humano, sempre mais, profundamente, alegremente.  Feliz Natal!

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

 

Copyright 2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

PROFETAS

 


Profetas são sisudos, são sérios, são graves. Profetas choram, clamam, anunciam, denunciam. Profetas enxergam onde ninguém vê, pois têm com eles o olho de Deus.

 Os profetas escutam o clamor do povo oprimido, os profetas escutam a resposta de Deus, os profetas falam. Mas os profetas não precisam ser todos Jeremias, nem Amós, nem Elias. Podem ser Francisco, podem falar com peixes e pássaros, podem ficar loucos de amor e sair dançando e cantando enquanto falam da misericórdia de Deus para com suas criaturas e especialmente pelos pobres. Os profetas podem até ser poetas, ou dançarinos. Loucos, podem enxergar música e ouvir dança onde há números e números e estatísticas e movimento de coordenadas e abscissas.

 Profetas podem perceber a dança dos astros como um carrossel mágico de uma festa de interior, podem vê-la com os olhos da criança simples da roça que se encanta com o movimento dos cavalinhos azuis de todas as cores, rodopiando na música mágica do carrossel, nas cores mágicas do carrossel.

 Os profetas sabem que reis e rainhas são verdadeiros, apesar das fantasias, quando servem na alegria os irmãos e irmãs e se encantam também com as cores do caboclo guerreiro de lança rural, que sabe extrair alegria e cor de uma vida sofrida. É a fita colorida, é o sorriso, é a sensação de pertença a um povo, a uma comunidade. Uma imensa alegria que só os filhos e as filhas de Deus podem experimentar, sem remorso, sem culpa, sem ter que pedir perdão.

 Os profetas podem perceber a folia de Deus, que embriagado de amor, criou o universo em movimento, como uma evolução rítmica de um bloco de caboclinhos ou o ribombar dos tambores do maracatu, ou ainda como um desfile de uma escola que organiza o caos da multidão em instantes de frevo.

 Os profetas percebem que Deus abençoa os que brincam, os que amam, os que tornam a vida mais bela, os que aliviam o fardo do outro, mesmo por alguns dias apenas.

 Há profetas que nascem em tempo de carnaval, esses são mais lúdicos, mais humanos. Esses percorrem as ladeiras da vida, junto ao povo, distribuindo doces em forma de palavras e de carinho, aspergindo água de cheiro, confetes e serpentinas multicores, abençoando, bendizendo, cuidando.

 Há profetas que nascem em fevereiro.

Assuero Gomes

sábado, 26 de dezembro de 2020

NATAL EM TEMPOS DE CORONAVIRUS - UM LUGAR PARA O MENINO NASCER

 

Frei Aloísio Fragoso


 

    Em alguma região da terra, um casal pobre, em ansiosa calma, procura um lugar seguro para seu filho nascer. Cansados, sentam-se em um banco da praça, sobre o qual alguém deixara aberto o jornal do dia. Então aquela que estava grávida falou:

 

    - José, a Criança se mexe em meu útero. Onde encontraremos um lugar para ela nascer em paz e segurança?

    - Bendito seja o nome de Javé! Que tal repetirmos o cenário da primeira vez: Belém!  Que achas, Maria?

    - Não. Não dá. Veja o que está escrito aqui na primeira página: "Governo de Israel proíbe visitas de migrantes aos Lugares Sagrados". Se apresentarmos nosso filho como pacificador, "o que vem transformar espada em arado", eles dirão que somos traidores".

 

    - Vamos então apostar naquelas terras que por primeiro foram cristianizadas. Roma, por ex.

    - Esqueçamos Roma, José;  ali, como em outros países do continente europeu, seremos proibidos de deitar nosso filhinho  sobre palhas,  numa manjedoura. Não deixarão que entrem no recinto a vaca, o jumentinho e os cordeiros. Trarão um berço de ouro cravejado de pedras preciosas. E eu me sentirei uma péssima atriz.

 

    - Pensemos em um lugar bem mais distante, habitado por gente pobre igual à gente: a África negra, que dizes?

    - Maria silencia um momento, folheando o jornal, e se depara com uns versos, na "Coluna Cultural": "pintor de santos de alcova / pintor sem pátria no peito / que quando pintas teus santos / não te lembras do teu povo / que quando pintas tuas virgens / pintas anjinhos bonitos / porém nunca te lembraste / de pintar um anjo negro". Mostra os versos a José e diz: trata-se de um justo protesto. Aquelas terras foram escravizadas, durante séculos, pelos que tem a cor do nosso filho. Quem garante que não seremos odiados?

 

    - Em meio a tantos perigos, Maria, proponho que nos refugiemos na nação mais poderosa da terra, governada por um homem imensamente poderoso. Com certeza eles nos protegerão, os Estados Unidos...

    - Cala-te, José! Malditas sejam tuas palavras, elas me fazem lembrar Herodes, o assassino de crianças. Maria acabara de ler outra manchete do jornal,  "Presidente dos Estados Unidos decreta expulsão de migrantes mexicanos, separando crianças de seus pais". Apressemo-nos, José, estão voltando as dores de parto.

 

    - Estou pensando numa melhor solução: um país do hemisfério sul; ali habita o maior número de pessoas que acreditaram na Palavra do nosso Filho. A fé deles nos dará segurança. O Brasil, o Brasil. Desta vez José mesmo avistou, no jornal, em mãos de Maria, esta notícia: "Caos no Brasil, 180.000 mortos de coronavirus".

     Os dois se olharam assustados e rezaram em silêncio uma oração pelos mortos da pandemia. A seguir, tendo invocado o nome do Altíssimo, decidiram: vamos dar à luz o nosso filho em um lugar que ninguém saiba onde seja,  nenhum jornal noticie, os orgulhosos jamais cheguem lá e os simples da terra procurem até encontrá-lo.

    E saíram caminhando à  procura de uma manjedoura. Maria se pôs a cantar: "O Senhor fez

em mim maravilhas..."

 

    E sobre o banco da praça, o jornal do dia estampava sua principal manchete: "Lojas e supermercados temem fracasso de vendas neste Natal".

 Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

A Estrela de Belém

 

Goretti Santos


 

Sou de uma família de Guerreiras,

Guerreiras porque são mulheres.

A primeira que conheci a história

Teve a ousadia de dizer:

" Com esse não caso! Caso com aquele!"

Trancada em seu quarto,

Escrevia bilhetes a seu eleito,

Um dia descobertos os escritos na anágua da mucama...cansou seu algoz…

Casou com aquele que escolheu.

 

Sou de uma  família de Guerreiras,

Guerreiras Mulheres

A segunda, levantou-se da mesa,

E seguiu aquele que viria a ser meu Avô…

Casaram-se depois,

Antes enfrentou todos os preconceitos…

 

Sou de uma família de Guerreiras,

Mulheres,

A terceira ousou estudar…

Estudo era proibido para mulheres…

Iriam escrever cartas para supostos namorados…

Agarrada à grade da escola,

Só largou depois de matriculada. 

 

Sou feita de partes de histórias de Guerreiras,

Mulheres, Marias…

E a primeira Maria,

Teve a ousadia maior,

Sem pedir permissão a ninguém,

Porque ninguém era seu dono,

Disse Sim à Vida,

Ficou grávida,

Grávida de Liberdade e Vida,

E pariu Deus !

 

 ( 24/12/2020)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

ACOLHER A FRAGILIDADE: UMA MEDITAÇÃO SOBRE O NATAL

 



Kinno Cerqueira [1]

 

Um dos principais sustentáculos do atual cristianismo brasileiro é a imagem mental de um Deus todo-poderoso assentado sobre um trono de glória, majestade e poder. A consequência homilética dessa imagem é a prevalência de sermões/homilias em cujo centro está a censura da fragilidade humana, do inacabado e do caminho por fazer que somos.

Para quem está habituado ao Deus todo-poderoso, soa desconcertante esta afirmação de Jesus: “Quem vê a mim, vê o Pai” (Jo 14,9). Com estas palavras, Jesus apresenta-se como espelho no qual podemos contemplar aquela imagem de Deus em geral encapada por nosso desejo de poder: o Deus frágil, pobre, nu, indigente, mendigo.

A fragilidade de Jesus interpela-nos a que nos libertemos dessa imagem mental em que Deus é a divinização da negação de nossa fragilidade. Na manjedoura, não encontramos outra imagem senão a do menino carente, nem outra voz a não ser seu choro, nem outro assombro que não seja sua pequenez, sua dependência, sua absurda fragilidade.

No corpo do menino, tocamos nosso próprio corpo, esse corpo habitado por carências, medos, faltas. E na sua voz, escutamos nossa própria voz, os sussurros mais secretos de nossa alma, os soluços de nosso existir aportados no cais de lágrimas de nosso íntimo mais invernal.

O caminho rumo à manjedoura inaugura o encontro com a imagem do Deus frágil, interpelação a libertarmo-nos de imagens de Deus repressoras do que nos constitui, possibilidade de reconciliação com a fragilidade que somos. A manjedoura não pode acolher-nos a não ser que acolhamos, antes de tudo, nossa própria fragilidade.

 

[1] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.

O AMOR EM JESUS

 Frei Betto


          Jesus não nos pediu que não tenhamos inimigos, e sim que os amemos. O que é amar o inimigo? Lutar para que ele também se torne aberto ao projeto do Reino. Não se trata de libertar somente a classe trabalhadora, mas toda a sociedade, incluindo os opressores.    


            Uma característica interessante do amor de Jesus aparece no episódio do encontro com o homem rico (Marcos 10,17-22). Este indaga o que fazer para ganhar a vida eterna (só os que já têm assegurada esta vida perguntam a Jesus como ganhar a outra...). Jesus respondeu: "Você conhece os mandamentos", e recitou-os. O homem confirmou que, desde pequeno, cumpria todos. São Marcos sublinha que "Jesus o amou" para, em seguida, acrescentar que ele recomendou ao homem: "Vai, vende os teus bens, distribui aos pobres e depois vem e me segue". Diz o Evangelho que "o homem foi embora triste e aborrecido porque era muito rico".
           O amor de Jesus não o impediu de ser exigente. Eis o conceito de amor de Jesus: quem ama é verdadeiro com o outro. Amar é fazer bem ao outro, ainda que isso doa muito. Jesus, ao amar, levava as pessoas a encontrarem a verdade, mesmo que isso criasse nelas antipatia por ele, como foi o caso dos fariseus.
           É indisfarçável nos evangelhos o lado irônico da personalidade de Jesus. Na parábola do bom samaritano (Lucas 10, 25-37), o doutor da lei lhe perguntou: "O que devo fazer para ganhar a vida eterna?" Jesus devolveu-lhe a questão: "O que está escrito na lei?" Como se dissesse: "Você não é doutor, formado? Por que pergunta isso a mim?" O doutor recitou de cor o texto bíblico: "Amarás o Senhor teu Deus..." Jesus apenas retrucou: "Faça isso e viverá".

        Percebe-se claramente, pelo relato de Lucas, que o doutor ficou sem graça. Serrou o galho e ele mesmo caiu. Por isso, devolveu a pergunta a Jesus: "Mas quem é o meu próximo?" Jesus deu uma resposta factual, qualitativamente muito diferente da resposta conceitual que o doutor da lei havia dado.
         Jesus não nos pediu que não tenhamos inimigos, e sim que os amemos. O que é amar o inimigo? Lutar para que ele também se torne aberto ao projeto do Reino. Não se trata de libertar somente a classe trabalhadora, mas toda a sociedade, incluindo os opressores. Libertá-los da vida indigna, dos falsos valores, da condição de exploradores, das concepções monstruosas que trazem na cabeça sobre a divisão social. Porém, acreditamos que o sujeito da libertação são aqueles que têm interesse na conquista de uma nova ordem social. Os pobres são os bem-aventurados. Pois os que já desfrutam de privilégios não querem abrir mão de seu conforto. Querem perpetuar o presente, jamais buscar um futuro melhor para todos.
         Muitos imaginam que, sendo Deus, o homem Jesus teria a visão beatífica do Pai, como quem carregasse dentro de si a contemplação direta da face de Deus. Ora, tal ideia é condenada pela Igreja como herética, por negar a união hipostática Deus-homem em Jesus. Não se pode aceitar que ele era Deus por dentro e homem por fora. Era totalmente Deus e totalmente homem, por dentro e por fora. E tinha fé como nós temos. E até passou por crises de fé, como nós passamos, a ponto de se sentir abandonado por Deus.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

OS DEZ NOTÁVEIS

  


Prof. Martinho Condini

 

Pelé estaria expulso escrete canarinho brasileiro de todos os tempos?

Pixinguinha não estaria na banda dos dez notáveis músicos brasileiros?

Milton Santos não comporia o grupo dos dez notáveis cientistas brasileiros?

Milton Nascimento não apareceria entre os dez notáveis cantores brasileiros?

Grande Otelo não comporia a trupe dos dez notáveis atores brasileiros?

Aleijadinho não constaria do panteon dos dez notáveis escultores brasileiros?

Carlos Drumond de Andrade seria defenestrado  dos dez notáveis do poetismo brasileiro?

Chacrinha não comporia o rol dos dez notáveis animadores de TV brasileira?

Chico Buarque de Holanda estaria excluído do palco dos dez notáveis letristas brasileiros? 

Fernanda Montenegro não integraria o elenco das dez notáveis atrizes brasileiras?

Elis Regina não ingressaria no estrelato das dez notáveis cantoras brasileiras?

Stanislau Ponte Preta estaria fora da redação dos dez notáveis jornalistas brasileiros?

E Paulo Freire ficaria de fora da sala de aula com os dez notáveis educadores brasileiros?

Penso, que dificilmente alguns desses brasileiros não estariam entre os dez notáveis.

         Pois é, no site do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para incentivo a pesquisa ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, na página inicial do site nos apresentam uma relação dos principais cientistas brasileiros da nossa história, denominados por eles de notáveis. É uma relação de mais de sessenta cientistas e pesquisadores.

         E qual é a surpresa para quem abrir essa página onde estão historiadores, geógrafos, sociólogos e educadores ilustres, como Anísio Teixeira e Florestan Fernandes? A ausência do patrono da educação brasileira, o pesquisador, educador e pensador Paulo Freire.

          Por que Paulo Freire não está nesta lista de notáveis? Coincidência ou não está ausência se dá no período desse desgoverno, que desde seu início, adotou uma política de desmonte da educação brasileira e um processo de desconstrução da obra e da imagem de Paulo Freire. Sem contar com os desqualificados ministros da educação que já passaram pelo ministério e os que estão por vim.

         O educador Paulo Freire é o único brasileiro que consta na lista dos 100 autores mais importantes nas universidades de língua inglesa. O livro “Pedagogia do Oprimido” está entre os três livros mais citados na área de ciências humanas no mundo. Freire é o brasileiro que mais recebeu títulos de “doutor honoris causa’ na nossa história.

         A grandeza do legado da práxis freiriana é demonstrada por meio das 8 cátedras Paulo Freire, 1 Instituto Paulo Freire e 46 grupos de pesquisa existentes no Brasil, como também em outros países da América Latina e Central, Estados Unidos, Canadá e Europa.

         Por isso, a indignação de Paulo Freire não constar na relação dos notáveis de uma instituição de fomento a pesquisa em nosso país.

         Penso que apesar desse desrespeito com o educador Paulo Freire, sabemos que há uma considerável rede de Educadoras e Educadores no Brasil e no mundo que têm na práxis freiriana uma bandeira de luta e resistência para se construir por meio da educação uma sociedade libertária e igualitária.

   O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com         

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

É NATAL, APESAR DA PANDEMIA

 


Marcelo Barros 



As notícias nos alertam sobre o repique da Covid 19 no Brasil e uma nova onda com mutação diferente do vírus em alguns países do mundo. Enquanto aumenta o número de pessoas contaminadas e a cada dia é maior a taxa de mortalidade, empresas internacionais e governos disputam quem pode lucrar mais com a venda de vacinas e equipamentos para a proteção da vida. Por conta da pandemia, quase um terço da humanidade afunda no desemprego e na pobreza. Enquanto isso, afirma Ladislau Dowbor em seu livro “A era do capital improdutivo”: 42 pessoas possuem uma riqueza maior do que a metade de toda a humanidade. Um relatório da OXFAM prova que 3, 7 bilhões de seres humanos não conseguem alcançar a renda da qual desfrutam 42 grandes bilionários do mundo. Só Jeff Bezos, o dono da Amazon.com possui uma riqueza pessoal estimada em 200 bilhões de dólares. 

Neste quadro da pandemia, governos cancelam festas de finais de ano e limitam ao máximo a possibilidade de concentrações humanas. No entanto, neste contexto, mais do que nunca é necessário que os cristãos celebrem o Natal. E devolvam a esta celebração o sentido original da festa. Não se trata de festejar aniversário do menino Jesus. Desde que no século IV, as comunidades cristãs decidiram celebrar o Natal, o objetivo era lembrar que Deus assume a realidade humana e vem fazer do mundo inteiro um novo presépio de sua inserção no meio de nós.

O Espírito Santo, como Mãe de Ternura, vem inspirar novas testemunhas, encarregadas de lembrar ao mundo que o projeto divino é contrário à sociedade do desvínculo e da indiferença social. Mais do que qualquer pregação religiosa, celebrar o Natal é expressar a amorosidade da vida, traduzida em solidariedade, como expressão de que o Cristo se faz carne neste mundo atual. Lembramos o natal de Jesus em Belém para testemunharmos hoje o Natal do Cristo cósmico que nos faz ver a presença divina na natureza, nos seres vivos e na história do nosso povo.

No Brasil, vamos viver este  Natal, solidários aos quase dois milhões de pessoas infectadas e chorando a morte de mais de 180 mil pessoas. Desta, muitas podiam não ter morrido se o governo brasileiro não insistisse em uma política que parece aproveitar o vírus para dizimar comunidades indígenas, quilombolas e populações de periferia. Tudo se torna mais difícil porque não adianta culpar apenas o presidente. Atrás dele, há uma elite escravagista e uma mídia interesseira que fazem qualquer coisa para garantir os seus privilégios. E o pior de tudo é que em nome de  Jesus e gritando Deus acima de todos, católicos e evangélicos apoiam e sustentam esta iniquidade.

  Esta celebração do Natal de Jesus vem nos dizer algumas coisas boas e outras desafiadoras. A boa é que o Senhor vem sim, está no meio de nós. É fonte de libertação e de vida nova para nós e para a humanidade.  O aspecto desafiador é que é um Deus que vem a nós como veio no Natal, isso é como recém-nascido pobre em uma manjedoura. O Natal nos lembra que o nosso Deus é um Deus impotente. Não adianta termos as reações de Pedro e de muitos dos discípulos que sempre imaginavam que o Cristo viesse impor o seu poder e transformar o mundo. Não adianta das nossas prisões de hoje, fazer como o profeta João Batista que da prisão mandou perguntar a Jesus: É você mesmo, ou temos de continuar esperando outro que venha para resolver essa realidade? Ele só pode nos salvar através da cruz nossa de cada dia, Cruz dos irmãos e irmãs que aceitam assumir essa missão do Natal de uma humanidade nova.

Podemos sim, como Maria, receber o anúncio de que estamos todos/as grávidos e grávidas de um novo modo de ser. Esse novo modo de ser transforma-nos interiormente. Deve criar um modo novo de ser Igreja e um modo novo de ser humanidade. E aí, apesar de todos os Bolsoneros da vida, feliz Natal! Teremos então luz e força para encontrar as vacinas eficazes para as muitas pandemias que precisamos vencer: além a da Covid 19, as do desamor, da indiferença, do individualismo e de uma economia que mata. Na Argentina, nos anos 80, cantava Mercedes Sosa em sua Canción de cuña navideña: “

Todos tan alegres, llegó Navidad

y en mi rancho pobre, y en mi rancho pobre

tristeza sonó igual.

 

No llores mi niño, ya no llores más

que nadie se acuerda, que nadie se acuerda

que no tienes pan.

 

Allá en un pesebre, dicen que nació

un niñito rubio, rubio como el sol.

 

Dicen que es muy pobre, pobre como tú,

destino de pobre, destino de pobre

destino de cruz”.

 

Quem quiser ouvir a música no you tube:

 

https://youtu.be/iRoc1WBmNrk -  Canción de cuña navideña - Mercedes Sosa

 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br