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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

ULTRAPASSAGEM SEM VOLTA


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            Ainda sob a ressaca da morte de Ettore Scola, recordo aqui um filme que ele não dirigiu, mas fez o roteiro.  A direção era do grande Dino Risi e Scola foi o responsável pelo belíssimo roteiro da viagem de dois dias dos improvisados amigos Bruno e Roberto. Vittorio Gassmann jovem, belo e esbanjando talento era Bruno, enquanto Jean Louis Trintignant, ainda mais jovem e antes de ser guindado ao sucesso e ao reconhecimento com “Um homem, uma mulher”, é Roberto.

            A palavra italiana que dá título ao filme, “Il Sorpasso”, prestou-se a confusões de compreensão e interpretação.  Traduzida  como “Aquele que sabe viver”, “sorpasso” significa ultrapassagem.  E assim, Dino Risi e Scola remetem ao final inesperado e doloroso do filme, preparado ao longo de toda a trama com a corrida louca e, no fundo, desesperada do protagonista Bruno na tentativa de um ultrapassar permanente. 

            O que pretende o personagem ultrapassar?  O tempo, a idade, o fracasso profissional, o matrimônio que acabou, o desprezo maternal que a ex-mulher lhe dedica, a falência da paternidade que leva a linda filha – Catherine Spaak no esplendor de sua beleza e juventude – a buscar um relacionamento afetivo e um matrimônio com um homem mais velho, para substituir o pai que nunca teve? 

            Correndo loucamente em seu carro esporte conversível, o personagem de Bruno deseja, na verdade, ultrapassar a vida que jamais é curtida, degustada, saboreada, sempre ultrapassada em uma pressa feroz e um apetite voraz.  E nessa corrida sem trégua, coisas, objetos, pessoas vão ficando pelo caminho, mais ou menos quebradas, esquecidas, danificadas, parcial ou irreversivelmente.

            A seu lado, o contido, reprimido e estudioso Roberto entra na aventura por acaso. Um atraso, uma porta fechada, o verão quente e o feriado de 15 de agosto – o famoso “ferragosto”, -  quando toda Roma para.  O filme capta bem esse espírito das férias, que na Itália do pós-guerra (o filme é de 1962) são sacratíssimas e esvaziam as cidades. É nesse clima          que o irrepreensível Roberto abandona sua rotina previsível e comportada de estudante de Direito que se prepara com afinco para os exams e embarca em uma louca aventura ao lado do não menos louco Bruno. Até então, o máximo de transgressão da sua vida era  espiar e desejar timidamente a vizinha do apartamento em frente, sem jamais ter a coragem de abordá-la.

            E se Bruno vive correndo atrás daquilo que ele mesmo não chega a identificar, Roberto se coíbe e se proíbe de viver plenamente segundo a idade que tem. Permanece aquém da despreocupação cativante da juventude que, além de estudar,  inclui ir a festas, dançar, namorar.  Rapaz tímido e provinciano, que sequer sabe dirigir, não fuma, não bebe, não dança, de repente se vê ao lado de Bruno em uma viagem que durará 48 horas, sem rumo certo e sem planejamento. Road movie da melhor qualidade, “Il Sorpasso” nos mostra a viagem desses dois inesperados companheiros pelas estradas italianas.  Na verdade, será uma viagem pela vida. 

            A estadia de algumas breves horas durante aqueles dois dias em casa dos tios de Roberto, no campo, onde o rapaz passava férias em sua infância, traz elementos de fundamental importância para que perceba o futuro que lhe está reservado se continuar naquele estilo de vida: medíocre, frustrada e hipócrita. No íntimo  começa a surgir um movimento de recusa daquele porvir pré-determinado que lhe parecia tão natural horas antes.

            Entre esses dois jovens tão diferentes surge um sentimento de amizade e recíproca gratidão.  Bruno sente que encontrou em Roberto o amigo que não tem.  E Roberto sente que passou com Bruno os momentos mais felizes de sua vida, fora da rotina incolor e insipida que havia sido a sua até então. A câmera de Dino Risi passa a mostrar um Roberto que não tenta mais chamar o companheiro à razão, e, eufórico, o incita a ir mais longe, a arriscar tudo na corrida louca ao volante de seu carro.
            É neste momento que acontece o “sorpasso”, a ultrapassagem final, derradeira, fatal.  Acabam-se para Bruno o carro esporte, o sucesso com as mulheres, o ócio permanente e frenético.  Para Roberto, é o fim do futuro e a possibilidade de escolhas entre uma profissão tradicional, um casamento tranquilo, uma família, ou uma juventude mais prolongada e divertida. 

            As ultrapassagens sucessivas e arriscadas terminam por desembocar em macabro final que ao mesmo tempo em que selava a inocência um tanto infantil de Roberto era igualmente o final de seu caminho nesta vida.  Os dois rostos que o espectador acompanhou desde o princípio agora se reduzem a um só.  Do outro só resta o abismo onde o “sorpasso” imprudente o atirou. 
            Um clássico do cinema italiano, o filme conheceu sucesso estrondoso e até hoje é considerado uma das obras-primas da produção cinematográfica do século XX. Qual o segredo desse êxito?  Trata-se de uma narrativa na qual qualquer ser humano que não passa ao largo da própria vida encontrará profunda reflexão existencial, além de uma excelente realização cinematográfica. 

 Salve Dino Risi!  Salve Ettore Scola! Obrigada por nos ajudarem a sermos mais humanos.

       Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)    
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

FRADES DOMINICANOS NA AMÉRICA LATINA



por Frei Betto



      Este ano, a Ordem Dominicana completa 800 anos de sua fundação. Na América Latina, a teologia produzida pelos frades dominicanos tem como ponto de partida os valores evangélicos e a realidade marcada pela pobreza e a opressão.

      Teologia se faz desde a fé das comunidades cristãs, e aqui a maioria é integrada por vítimas das injustiças sociais. Por isso se fala em Teologia da Libertação (TdL), fruto da práxis libertadora de cristãos comprometidos com os valores do Reino de Deus, contrários a tudo o que significa “reino de César”.

      Uma teologia dominicana a partir do nosso contexto leva em conta que todos nós, cristãos, somos discípulos de um prisioneiro político. Jesus não morreu doente na cama. Como tantos mártires latino-americanos, foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e condenado à morte na cruz. Em uma realidade de injustiças e desigualdades como o nossa, a “perseguição por causa da justiça” se evidencia como bem-aventurança, pois define de que lado os discípulos de Jesus se situam no conflito social.

      Um dos desafios que se impõem à família dominicana na America Latina é ter a fé de Jesus, e não apenas fé em Jesus. A fé de Jesus se centrou na fidelidade ao projeto do Reino de Deus, que é assegurar “que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10), cujos protagonistas são, por excelência, os pobres e excluídos, com quem Jesus se identificou (Mateus25, 31-46), como tanto insiste o papa Francisco.

      Uma teologia dominicana desde a América Latina deve servir de instrumento e luz para fortalecer a nossa pregação e o nosso testemunho evangélico, tendo em conta os três compromissos que definem a nossa vocação e o nosso carisma: 1) lutar por justiça e por uma sociedade de partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano (pobreza); 2) fidelidade ao carisma de São Domingos (obediência); 3) gratuidade na entrega amorosa e solidária de nossas vidas a todos, e em especial aos que carecem de condições dignas de vida (castidade).

      Nossa teologia não terá credibilidade se não refletir os testemunhos de nossos irmãos que nos precederam na missão evangelizadora da América Latina, assumindo evangelicamente a defesa dos direitos e da dignidade de indígenas, escravos, camponeses, operários e excluídos, como Antonio de Montesinos, Antonio de Valdivieso, Bartolomeu de las Casas, Pedro de Córdoba, Rosa de Lima, Martinho de Porres, frei Tito de Alencar Lima e tantos que marcaram com seu sangue e evangelismo a história de nosso continente.

     É nessa fidelidade a Jesus como caminho, verdade e vida, que os frades dominicanos se inseriram no Brasil, a partir do século XIX. Primeiro, centraram sua missão apostólica lá onde havia menos vida, devido ao genocídio constante e à falta de uma política que os protegesse – entre povos indígenas.

     Mais tarde, em meados do século XX, o apostolado dominicano priorizou o meio estudantil, através dos movimentos da Ação Católica (JEC e JUC). Se a paz virá apenas como fruto da justiça, urgia investir nas novas gerações que, desprovidas de bens patrimoniais e responsabilidades familiares, seriam capazes de se engajar no projeto de implantação da justiça.

     A ótica da teologia do pecado se deslocou do pessoal para o social. O método adotado – Ver, Julgar, Agir – correspondia perfeitamente ao carisma dominicano: adequar-se à realidade; avaliá-la à luz da Palavra de Deus; atuar para transformá-la, de modo a desconstruir o mundo da injustiça, da desigualdade e da opressão, e edificar o da justiça, capaz de engendrar as condições para o florescimento da paz.

     Com a ditadura militar e o agravamento das condições sociais do povo brasileiro, somados à renovação da Igreja Católica suscitada pelo Concílio Vaticano II, os dominicanos assumiram, como prioridade missionária, a defesa dos direitos dos mais pobres e a conquista da liberdade democrática.

     Enquanto alguns frades se engajaram na resistência direta à ditadura e, por isso, padeceram longos anos nos cárceres, outros se inseriram no meio popular, na linha da “opção pelos pobres”, de modo a fazer das classes populares protagonistas na implantação do direito à justiça e das condições de paz.

     Assim, no Brasil, a Comissão Dominicana de Justiça e Paz tornou-se uma expressão “sacramental” das prioridades definidas pela Ordem, pelas congregações femininas, e do compromisso de frades, religiosas e leigos dominicanos com os movimentos populares comprometidos com a busca de “outros mundos possíveis”.
      
Frei Betto é escritor, autor de “Fome de Deus” (Fontanar), entre outros livros.
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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

ESPERANÇA PARA O BRASIL



Por Marcelo Barros




Nesse início de 2016, em meio à onda de pessimismo e prognósticos de desesperanças que inundam o Brasil, temos uma boa notícia: nesses dias (de 19 a 23 de janeiro) aconteceu em Porto Alegre um Fórum Social que celebrou os 15 anos dos fóruns sociais. A meta era fazer um balanço desse processo, analisar os desafios e apontar perspectivas para o futuro. Dentro desse fórum mundial, realizou-se o Fórum Social da Educação Popular.  Nele, universidades,  organizações de governo e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra partiram da convicção de que “uma verdadeira e profunda democratização das sociedades passa necessariamente pela democratização do conhecimento”.

De fato, devemos reconhecer que, nos últimos 12 anos, no Brasil, a Universidade se tornou mais acessível às camadas mais pobres. Há mais de 25 anos, a secretária de uma universidade pública acompanha as matrículas. Ela garante que, até alguns anos, era raro uma família pobre conseguir colocar seu filho ou filha na Universidade. Atualmente, programas como PROUNI e outros têm ajudado a democratizar o acesso ao ensino universitário. Isso não basta. Essa conquista deve ser valorizada, mas ainda há um longo caminho a percorrer. É preciso abrir a universidade ao saber popular. A metodologia acadêmica garante  seriedade na pesquisa. Entretanto, quando se fecha no racionalismo erudito, se torna árido e empobrece.

É preciso abolir o muro de divisão que separa as universidades e as organizações e comunidades populares. A educação popular que nasce nas comunidades negras e indígenas, na sabedoria do povo da roça e nas tradições urbanas das diversas regiões do Brasil começa a ser visto como algo que interessa às universidades não apenas como objeto de pesquisa antropológica e sim como uma sabedoria que tem muito a nos dizer para enfrentarmos as crises da sociedade atual. Na luta dos lavradores em defesa da terra e das raízes crioulas, na caminhada dos operários e dos sem-teto nas cidades e na organização dos povos indígenas, os princípios da educação popular têm sido fundamentais e têm garantido muitos avanços e conquistas. Dessas experiências, brota um modo de ver a vida que envolve teoria e prática. Contém uma metodologia de educação que articula diversos saberes e experiências. Assume as formas musicais e artísticas das culturas regionais e comunitárias. Assim, procura sempre servir ao protagonismo das classes populares no trabalho de transformação da sociedade.

Um dos pioneiros em elaborar uma teoria da educação que uniu ciência e saber popular foi Paulo Freire. Esse grande mestre nos ensinou o caminho: partir da realidade do educando e fazer todo o processo da educação através do diálogo crítico e amoroso. E ter como meta a transformação do mundo e concretamente da vida do povo. A alfabetização de adultos iniciada por Paulo Freire e sua equipe conseguiu resultados maravilhosos no Brasil, em Cabo Verde na África e em todos os países onde foi experimentada. Sem dúvida, é um método a ser sempre atualizado e aprimorado, mas seus princípios são até hoje válidos e fecundos. Através de elementos como cânticos, danças, expressões artísticas e costumes, a educação popular nos mostra que o comunitário tem prioridade sobre o individual, embora nunca passe por cima das pessoas e dos direitos de cada um. A educação popular nos ajuda a analisar a realidade social e a situação política brasileira. Essa passa a ser vista, não pelos olhos da elite interessada em manter seus privilégios e sim a partir dos interesses das camadas mais pobres do povo. E alimenta a confiança de que outro modelo de sociedade é possível e urgente.

Esse fórum social, realizado em Porto Alegre, colaborou para que se removam os muros que separam a cultura acadêmica da educação popular. O diálogo das Igrejas cristãs e de outras tradições religiosas com pessoas e organizações de base também têm se servido muito dos princípios da educação popular. A metodologia do diálogo e a horizontalidade nas relações devem estar nos processos de formação de jovens e adultos para viverem uma fé amadurecida e crítica, inserida no mundo. Também no serviço social das Igrejas aos lavradores e pobres das periferias urbanas, o diálogo aberto nos aproxima da proposta de Deus. Na maioria das tradições, o Espírito Mãe se revela a nós como Amor e nos indica o caminho da vida comunitária como sendo meio de comunhão com o divino em nós e no universo.

 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY, A VIDA DO ESPÍRITO E A ÉTICA DA TERRA


Por Leonardo Boff


Se é verdade que os transtornos climáticos são antropogênicos, quer dizer, possuem sua gênese nos comportamentos irresponsáveis dos seres humanos (menos dos pobres e muito mais das grandes corporações industriais), então fica claro que a questão é antes ética do que científica. Vale dizer, a qualidade de nossas relações para com a natureza e para com a Casa Comum não eram e não são adequadas e boas.

Citando o Papa Francisco em sua inspiradora encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “ Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”(n.53).

Esse outro rumo implica, urgentemente, uma ética regeneradora da Terra. Esta ética deve ser fundada em alguns princípios universais, compreensíveis e praticáveis por todos. É o cuidado essencial, que é uma relação amorosa para com a natureza; é o respeito por cada ser porque possui um valor em si mesmo; é a responsabilidade compartida por todos pelo futuro comum da Terra e da humanidade; é a solidariedade universal pela qual nos entreajudamos; e, por fim, é a compaixão pela qual fazemos nossas as dores dos outros e da própria natureza.

Esta ética da Terra deve devolver-lhe a vitalidade vulnerada afim de que possa continuar a nos presentear com tudo o que sempre nos presenteou durante todos os tempos de nossa existência sobre este planeta.

Mas não é suficiente uma ética da Terra. Precisamos fazê-la acompanhar por uma espiritualidade. Esta lança suas raízes na razão cordial e sensível. De lá nos vem a paixão pelo cuidado e um compromisso sério de amor, de responsabilidade e de compaixão para com a Casa Comum.

O conhecido e sempre apreciado Antoine de Saint-Exupéry, num texto póstumo, escrito em 1943, Carta ao General “X” afirma com grande ênfase: ”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano”(Macondo Libri 2015, p. 31).

Num outro texto, escrito em 1936, quando era correspondente do “Paris Soir”, durante a guerra da Espanha, leva como título “É preciso da um sentido à vida”. Aí retoma o tema da vida do espírito. Para isso, afirma, “precisamos nos entender reciprocamente; o ser humano não se realiza senão junto com outros seres humanos, no amor e na amizade; no entanto, os seres humanos não se unem apenas se aproximando uns dos outros, mas se fundindo na mesma divindade. Temos sede, num mundo feito deserto, sede de encontrar companheiros com os quais condividimos o pão” (Macondo Libri 2015, p.20). E termina a Carta ao General “X”: ”Temos tanta necessidade de um Deus”(op.cit. 36).

Efetivamnte, só a vida do espírito satisfaz plenamente o ser humano. Ela representa um belo sinônimo para espiritualidade, não raro identificada ou confundida com religiosidade. A vida do espírito é mais, é um dado originário de nossa dimensão profunda, um dado antropológico como a inteligência e a vontade, algo que pertence à nossa essência.

Sabemos cuidar da vida do corpo, hoje um verdadeiro culto celebrado em tantas academias de ginástica. Os psicanalistas de várias tendências nos ajudam a cuidar da vida da psique, de como equilibrar nossas pulsões, os anjos e demônios que nos habitam para levarmos uma vida com relativo equilíbrio.

Mas na nossa cultura, praticamente, esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas. A vida do espírito se alimenta de bens não tangíveis como é o amor, a amizade, a compaixão, o cuidado e a abertura ao infinito. Sem a vida do espírito divagamos por aí, desenraizados e sem um sentido que nos oriente e que torna a vida apeticida.

Uma ética da Terra não se sustenta sozinha por muito tempo sem esse supplément d’ame que é a vida do espírito. Ela nos convoca para o alto e para ações salvadoras e regeneradoras da Mãe Terra.


Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra, Vozes 1999.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O CINEMA SEM ETTORE SCOLA


por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            Dizem que a idade, na medida em que avança, vai nos tornando nostálgicos.  Passamos a sentir-nos exilados, fora de lugar, estrangeiros em toda parte.  Nossa sensibilidade se exacerba, fazendo com que cada perda, cada ausência, cada distância seja maior, mais ameaçadora, mais sentida e, sobretudo, sofrida. A cada partida de alguém querido, admirado, amado, abre-se uma clareira que parece que nos vai deixando a nu e solitários em um mundo que não mais reconhecemos como sendo nosso.

Assim me senti hoje com a notícia da morte do grande cineasta italiano Ettore Scola.  Jamais o vi nem o conheci pessoalmente.  Mas vi seus filmes, pelo menos alguns deles, e isso foi suficiente para senti-lo próximo, identificado, quase um amigo.  E sentir-me igualmente um tanto órfã e desamparada com sua morte.

Parece que o mundo se empobrece e obscurece quando um gênio assim deixa de povoa-lo. Andamos tão machucados com tanto horror e brutalidade que perder alguém sensível como o grande Scola nos arranha a alma e faz o coração envelhecer. Na era dos Matrix, Jogos Vorazes, Guerra nas Estrelas 1, 2, 3, 4, 5 etc., seus filmes lidavam com a cotidianidade e a simplicidade da vida.  E com esses simples elementos, tão humanos e frágeis, sem efeitos especiais, sem violência, sem barulho e 3D, inundava de emoção e beleza olhares, corações, sentidos.

Aliando a ironia com a profundidade, o sentimento com o humor, a crítica inteligente com a capacidade de maravilhar-se e provocar maravilhamento, Ettore Scola criou cenas imortais, como aquela em que uma Sofia Loren ainda jovem e muito bela estende lençóis lavados no terraço de casa e, de repente, o vento a cobre com os lençóis expulsos do varal.  Abraçada pelo vizinho Marcello Mastroiani, riem os dois, reencontrando alegria na profundeza de suas infelicidades.  Ela é mãe de seis filhos, cativa de um casamento infeliz com um fascista fanático.  Ele é um homossexual perseguido pelo fascismo.  Encontram-se sozinhos em casa porque Hitler, o Fuhrer, estava na cidade visitando seu comparsa Mussolini, o Duce.

A situação não pode ser mais negativa e, no entanto, a ternura da cena é de apertar a garganta e molhar os olhos.  A câmera de Scola afaga a humanidade tão machucada pela barbárie do nazi-fascismo, pela infelicidade de uma mulher sozinha em meio ao machismo de uma sociedade que a responsabiliza por uma família carregada no ventre e nas costas em profunda solidão, pela marginalização em que se encontra um homem correto e bom pelo simples fato de ser diferente.  O filme, Una giornata particolare (no Brasil lançado como  Um dia muito especial) é uma das obras- primas de Scola.

E, pensando bem, o que há de tão extraordinário em seu conteúdo?  Nada de excepcional, nem que fuja aos padrões da simples condição humana.  Alegria, dor, sentimentos.  Olhares, gestos, movimento.  E sempre, infalivelmente, ao fundo, uma trilha sonora bela, cheia de talento, harmonia e simplicidade comoventes.  É essa a receita do melhor cinema italiano, do qual Scola é representante mais que autorizado.
Ele constitui um elo de grande e respeitável tradição, à qual pertencem grandes nomes como Vittorio de Sica (por ele homenageado no filme C'eravamo tanto amati (Nós que nos amávamos tanto), Federico Fellini, Roberto Rosselini e outros.

Não digo que não haja hoje em dia sucessores à altura dessa geração que se vai e da qual já restam muito poucos.  De Sica, Fellini, todos esses já povoam nosso panteão de admiradas celebridades que nos fizeram rir, chorar, vibrar e sentir-nos honrados de sermos pessoas humanas capazes de tão rica gama de sentimentos e experiências. Hoje podemos identificar, entre outros, Nani Moretti, Paolo Sorrentino.  Porém, constatamos tristemente que são minoria em meio à floresta inexpugnável das ficções mais ou menos bem-sucedidas que Hollywood derrama incessantemente em nossas salas de projeção, locadoras e sites “on demand”.

Paciência comigo, leitor.  Avisei no princípio que a idade se fazia sentir.  Gostaria de estar menos nostálgica.  Mas a notícia da partida de Scola me fez parar para sentir, chorar e perguntar-me: por que a vida humana não interessa mais como tema?  Por que deixamos de lado a maravilha da subjetividade para ir buscar assunto em outras galáxias e esferas?  Por que até a coisa mágica e inebriante do cinema foi tomada de assalto e transformada em indústria de consumo, esterilizada e esterilizante?

Fico, no entanto, com a esperança de que a herança bendita de Scola e outros a ele semelhantes não se perca.  Alenta-me ver as mulheres entrando mais e mais na sétima arte e produzindo obras primas como o nosso Que horas ela volta?.  Nem tudo está perdido.  Foi só um acesso de nostalgia.  Pertinente ou não, só o tempo dirá.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

USAR O INGLÊS SOA CHIQUE


 Por Frei Betto



      As palavras dançam, trocam de par e de país, andam de sandálias de dedo ou salto alto. Gabriel García Márquez dizia que, ao escrever, espalhava sobre a mesa vários dicionários, de modo que as palavras brigassem umas com as outras.

      Pelo que se observa, há palavras chiques e banais. Em qualquer aeroporto, se você viaja de classe econômica, a indicação da fila está assim mesmo, em português. Porém, se embarca em classe executiva, então a palavra se veste em Londres: business class. Ainda que viaje apenas por lazer, sem nenhum propósito de fazer negócios.

      Se tomar um café com uma fatia de bolo em casa, às quatro da tarde, isso é um lanche. Se à mesma hora o lugar do café for em uma empresa, então muda de figura – coffee break. Soa mais elegante, embora não necessariamente mais farto e saboroso.

      Todo idioma se gasta pelo uso e, também, pela submissão colonialista. Soa mais charmoso o colonizado empregar termos proferidos pelo colonizador. A moda hoje é o inglês, como foi o grego na Antiguidade e será, com certeza, o mandarim no futuro.

      Assim, há quem diga que trabalha full time. Jamais a faxineira usará essa expressão. Dirá apenas que trabalha o dia todo, inclusive sem tempo para aprender o que significa full time. E jamais ouvi quem trabalha meio período dizer part time.

      O anglicismo pega fundo. Liquidação virou sale. Ora, se a intenção do lojista é vender o estoque, melhor anunciar isso em bom português, considerando que apenas 5% da população brasileira domina fluentemente o inglês.

      Outrora se dizia que fulano era diretor de vendas ou gerente comercial. Agora a bossa é qualificá-lo de diretor de marketing. Se isso aumenta o volume de vendas, dou a mão à palmatória. E sugiro aos novos escritores se qualificarem como writers na tentativa de fazerem suas obras se tornarem best sellers.

      Se você se hospeda em um hotel estrelado certamente encontrará no apartamento um kit de higiene. Só um hotel de baixa categoria ousa anunciar: “Utensílios de higiene”.

      Nos estádios, nos teatros, nas cerimônias, costuma ter uma ala vip. Destinada a very important person – pessoa muito importante. Às vezes, quem tem direito ao acesso à ala privilegiada nem tem alguma importância, mas o dinheiro ou a função fala mais alto. “Ala das autoridades” ou “ala das celebridades” seria adequado, desde que uma multidão pernóstica, que nem é autoridade nem celebridade, não se considerasse tão importante.

      Uma área que sofre de anglicismo crônico é a da informática. Mouse significa rato. Mas soa menos repulsivo manipular um mouse que um rato.

      E há expressões com prazo de validade. Meu pai se referia ao chato dizendo que era um “sujeito pau”. Imbecil era tratado de boçal. Hoje em dia já não convém dizer que me senti incomodado. Soa mais in falar que deixei minha zona de conforto.

      Muito eu teria a escrever sobre isso, mas como o jornal me impõe um deadline, prazo para a entrega do texto, melhor parar por aqui.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.



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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O SONHO DA PAZ


Por Marcelo Barros



Nessa semana, o mundo inteiro recorda a memória do pastor Martin-Luther King. Nos Estados Unidos, há mais de 50 anos, através de uma ação não violenta, ele conduziu a luta da população negra pela igualdade social e por direitos civis. Enquanto ele vivia, a grande mídia norte-americana tentou destruí-lo de todos os modos possíveis. Depois que foi assassinado, o mundo fez dele um herói e o governo dos Estados Unidos teve de assumi-lo como um dos cidadãos norte-americanos mais importantes do século XX. Atualmente, o dia do aniversário de seu nascimento, 15 de janeiro, é consagrado como feriado nacional e celebrado sempre na terceira segunda feira do mês de janeiro.

Martin-Luther King afirmava: “Uma pessoa que não descobriu nada pela qual aceitaria morrer, não está ainda pronta para viver”. Ele  expressou essa causa maior pela qual viver e lutar no  discurso, considerado o mais importante feito nos Estados Unidos, durante o século XX. Em Washington, no 28 de agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, ao encerrar a marcha por direitos civis, diante de mais de 200 mil pessoas, o pastor Martin- Luther King afirmou: “Eu tenho um sonho”. Apesar de ter proferidas há mais de 50 anos, suas palavras ainda se mantêm atuais e proféticas. O sonho era viver em um mundo no qual os seus filhos negros pudessem andar de cabeça erguida. Que eles pudessem conviver de igual para igual com seus colegas brancos, frequentar os mesmos colégios e participar dos mesmos ambientes sociais. “Sonho com um mundo no qual meus filhos sejam julgados por sua personalidade e não pela cor de sua pele”. Era o sonho de superar as divisões raciais e sociais que fazem desse mundo um vale de lágrimas.

Apesar das lutas do pastor Martin-Luther King nos Estados Unidos e do bispo Desmond Tutu na África do Sul, a discriminação e a desigualdade continuam a imperar. O racismo contra negros e principalmente se são negros pobres (e a maioria é), continua a ferir o mundo como uma chaga dolorosa. Além do apartheid social e econômico, a discriminação racial ainda continua forte. Nos Estados Unidos, de vez em quando, um policial de raça branca atira friamente em um rapaz pobre, simplesmente pelo fato dele ser negro. Seus familiares choram e os amigos protestam. Mas, a justiça permanece cega e surda. Em Los Angeles, ou outras cidades dos EUA, o ano de 2015 foi marcado por manifestações de massa em protesto contra assassinatos de rapazes negros, cometidos por policiais brancos. Na América Latina, quase sempre, ser negro é sinônimo de ser pobre. Quase diariamente, no Brasil, adolescentes e jovens são assassinados, simplesmente por serem negros e moradores de periferia. Em geral, a polícia tenta justificar esses assassinatos pelo tráfico de drogas. Quase sempre não há nenhuma prova disso. E se fosse, por isso, a polícia teria direito de atirar friamente para matar?  Agora, no dia 30 de dezembro, na rodoviária de Imbituba, SC, o pequeno Vítor Pinto, de dois anos, era alimentado no colo de sua mãe, quando foi assassinado por uma pessoa que se aproximou com uma lâmina que o degolou. A imprensa quase não denunciou esse crime, porque Vítor era um simples índio Kaingang.

Com relação a essa iniquidade, ainda ressoam as palavras do pastor Martin-Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Mais do que a violência de poucos, me assusta a omissão de muitos”. Em nossas cidades, onde bairros de classe alta convivem tão proximamente com casas pobres e barracos, um imenso muro de segregação e desamor separa uns dos outros. E muitas mães órfãs de seus filhos choram a crueldade do mundo. Nessa semana, a memória do pastor Martin-Luther King e o apelo do papa Francisco para um ano da misericórdia deveriam tocar em nossas vísceras mais profundas e criar em nós um sentimento de indignação profética e de mobilização social para que cesse o extermínio de jovens em nossas periferias.

A consagração de Luther King à causa da justiça e da paz veio de sua fé cristã. Para quem vive uma busca espiritual, seja em alguma religião, seja de forma independente, a espiritualidade é a capacidade de sonhar e lutar para que aquilo que sonhamos aconteça. Toda a Bíblia pode ser lida a partir da revelação de um projeto divino de paz, justiça e comunhão entre os seres humanos e com a natureza. O apóstolo Paulo escrevia aos cristãos de Roma: “Não se conformem com esse mundo. Procurem transformá-lo a partir da transformação interior de suas mentes” (Rm 12, 1).


 Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

COMO TRATAS A HÉSTIA: O TEU CORAÇÃO, O TEU LAR E A TERRA COMO CASA COMUM?


Por Leonardo Boff



Atualmente há toda uma nova forma de interpretar os velhos mitos gregos e de outros povos. Ao invés de considerar os deuses e deusas como entidades subsistentes, agora cresce a hermenêutica, especialmente, após os estudos do psicanalista C.G. Jung e seus discípulos J. Hillman, E. Neumann, G. Paris e outros, de que se trata de arquétipos, vale dizer, de ancestrais forças psíquicas que nos habitam e movem nossas vidas. Elas irrompem de forma tão vigorosa que os conceitos abstratos não conseguem expressá-las mas que o são mediante relatos mitológicos. Neste sentido o politeísmo não significa a pluralidade de divindades, mas de energias que vibram na nossa psique.

Um desses mitos que contem um significado profundo e atual é aquele da deusa Héstia. Segundo o mito, ela é filha de Cronos (o deus do tempo e da idade de ouro) e de Reia, a grande mãe, geradora de todos os seres. Héstia representa nosso centro pessoal, o centro do lar e o centro da Terra, nossa Casa comum. É virgem, não por desprezar a companhia do homem, mas para poder, com mais liberdade, cuidar de todos os que se encontram no lar. Mesmo assim ela sempre vem acompanhada por Hermes, o deus da comunicação (donde vem hermenêutica) e das viagens. Não são marido e mulher. São autônomos mas sempre reciprocamente vinculados.

Eles representam duas facetas de cada pessoa humana que é portadora simultaneamente do animus (princípio masculino, Hermes) e da anima (princípio feminino, Héstia).

Héstia significa em grego a lareira com fogo aceso:isso era entendido existencialmente como a harmonia e o ânimo do coração. Tatrefa diuturna e sempre continuada é manter sob controle dos demônios interiores e dar o mais possível espaço aos anjos bons.

Hésti era também  o lar com o fogo aceso como aquele lugar ao redor do qual todos se agrupam para se aquecerem e conviverem. Portanto, é o coração da casa, o lugar da intimidade familiar, longe do tumulto da rua. Héstia protege, dá segurança e aconchego. Além disso, a ela cabe a ordem da casa e detém a chave da despensa para que sempre esteja bem fornida para familiares e hóspedes.

Nas cidades gregas e romanas mantinha-se sempre um fogo acesso, para expressar a presença protetora de Héstia (a Vesta dos romanos). Se o fogo se apagasse, era presságio de alguma desgraça. Também não se começava a refeição sem fazer um brinde à Héstia: “para Héstia” ou “para Vesta”.

Héstia, concretamente, significava também aquele canto para onde alguém se recolhe para estar só, ler seu jornal ou um livro e fazer a sua meditação. Cada um tem o seu “lugarzinho” ou sua cadeira preferida. Para saber onde se encontra a nossa Héstia devemos nos perguntar quando estamos fora de casa: ”qual é a imagem que melhor lembra o nosso canto, onde Héstia se oculta? Aí está o centro existencial da casa. Sem a Héstia a casa se transforma num dormitório ou numa espécie de pensão gratuita, sem vida. Com Hestia há afeição, bem-estar e o sentimento de estar “finalmente em casa”. Ela era tida como uma a aranha, por tecer teias que unem a todos  e o centro que recolhe e elabora todas   as informações.

Héstia era por todos venerada e no Olimpo a primeira a ser reverenciada. Júpitér sempre defendeu sua virgindade contra o assédio sexual de alguns deuses mais assanhados.

A nossa cultura patriarcal e a masculinização das relações sociais tornaram Héstia grandemente enfraquecida. As mulheres fizeram bem em sair de casa, desenvolver sua dimensão de animus (capacidade de organizar e dirigir). Mas tiveram que sacrificar, em parte, a sua dimensão de Héstia. Nelas se mostrou a dimensão de Hermes que se comunica e se articula. Levaram para o mundo do trabalho as virtudes principais do feminino: o espírito de cooperação e o cuidado que tornaram as relações menos rígidas. Mas chega o momento de voltar para casa e de resgatar a Héstia.

Ai da casa desleixada e desordenada! Aí emerge a vontade de que Héstia se faça presente para garantir a atmosfera boa, íntima e familiar. Esta não é apenas tarefa da mulher mas também do homem. Por isso em todo homem e em toda a mulher deve se equilibrar o momento de Hermes, estar fora de casa para trabalhar com o momento de Héstia, de voltar ao centro e ter o seu refúgio e aconchego.

Hoje, por mais feministas que sejam as mulheres, elas estão resgatando mais e mais esta fina dosagem vital.

Héstia não significava somente a lareira acesa do lar ou da cidade. Também designava o centro da Terra onde está o fogo primordial. Hoje não é mais crença mas dado científico. No centro há ferro incandescente. Logicamente, quando se estabeleceu o heliocentrismo e se invalidou o geocentrismo, houve uma abalo emocional para o pensamento de Héstia, a Casa Comum. Mas lentamente ele foi reconquistado. Se a Terra não é mais o centro físico do universo, ela continua sendo o centro psicológico e emocional. Aqui vivemos, nos alegramos, sofremos e morremos. Mesmo indo aos espaços exteriores, os astronautas sempre revelavam saudades da Mãe Terra, onde tudo o que é significativo e sagrado está lá.

Hoje temos que resgatar a Héstia, dar centralidade à razão cordial, torná-la a protetora da Casa Comume  manter seu fogo vivo e conferir-lhe sustentabilidade. Não estamos rendendo-lhe as honras que merece, por isso ela nos envia seus lamentos com o aquecimento global e as calamidades naturais. Não devemos rebaixar Héstia como mero repositório de recursos mas como a Casa Comum que deve ser bem cuidada para que continue a ser nosso Lar aconchegante e benfazejo.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor e escreveu o livro Ecologoa, Ciência e espiritualidade, Mar de Ideias, Rio 2015.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

AS LÁGRIMAS DO PRESIDENTE


Por Maria Clara Bingemer 


                  
Se o machismo da nossa sociedade ensina que homem não chora, o que dizer quando esse homem é o presidente dos Estados Unidos, nação mais poderosa do mundo?  Talvez por isso mesmo tenha sido tão tocante e surpreendente ver lágrimas rolando pela face ossuda e usualmente serena do presidente Obama.

Seu choro foi de impotência, raiva, compaixão... ou todos esses sentimentos somados. Em suas palavras, enquanto pronunciava discurso pelo controle das armas de fogo, homenageava as vítimas das mesmas, sobretudo as de pouca idade: “de estudantes em Columbine a alunos da primeira série em Newton, todas as famílias que nunca imaginaram que uma pessoa querida seria tirada de suas vidas pela bala de uma arma de fogo. Fico furioso cada vez que penso nessas crianças.” 

O presidente negro enfrenta uma barreira difícil: o lobby dos fabricantes de armas estadunidenses, organização poderosa que apoia o armamento dos cidadãos do país. Por isso, Obama vai com cautela.  Pretende reforçar o controle de antecedentes dos compradores de armas de fogo nos EUA, inclusive pela internet. Deseja igualmente que nos estados da federação as autoridades locais informem ao centro de dados nacional as estatísticas criminais sobre pessoas diagnosticadas com transtornos mentais ou antecedentes de violência familiar. Quer, além disso, que os vendedores de armas informem sobre roubos e extravios, a fim de que o estado possa ter um controle das armas em circulação, onde e desde quando. Localizar e apreender armas roubadas é, sem dúvida, uma forma de reduzir tragédias  produzidas pelas mesmas.

Pretende também minimizar os riscos do porte de armas diminuindo sua periculosidade, com a obrigatoriedade de instalação de  um dispositivo para impeder que sejam ativadas quando manipuladas por usuário não  autorizado. Evitará, assim, que uma criança possa atirar e ferir ou matar alguém com armas de propriedade de seus pais. Quantos relatos já ouvimos sobre crianças que, brincando com armas dos pais, dispararam e ceifaram vidas ou provocaram danos irreparáveis a famílias e comunidades inteiras, inclusive ao futuro da própria criança.

O presidente sabe que conta com a oposição de boa parte do congresso.  Se é verdade que uma parte significativa o apoia, a outra é radicalmente contra sua posição neste sentido. O Partido Republicano não esconde seu apoio incondicional ao uso de armas no país. Mas não se limita a isso: convoca a nação a não mais ignorar a série de atentados que tem acontecido em vários lugares, mas sobretudo em escolas.

O presidente já não pretende mais recorrer “às constantes desculpas de sempre para a falta de ação.” Declara que não funcionam mais, evocando e citando o grande Martin Luther King, que morreu assassinado há 50 anos, defendendo a paz.

Porém, além de Martin Luther King, há certamente outro inspirador para a posição de Obama e seu desejo aparentemente firme e inabalável de conseguir diminuir potencialmente as mortes provocadas pelo uso indiscriminado das armas nos EUA. Recente no tempo e em nossa memória está o discurso do papa Francisco ao Congresso estadunidense. Todos recordamos as corajosas palavras do pontífice quando questionou abertamente o livre comércio de armas: “Por que há tantas armas mortais sendo vendidas àqueles que pretendem infligir sofrimento a indivíduos e sociedades?” Se corajosa foi a pergunta, mais ainda a resposta dada pelo próprio papa: “Infelizmente a resposta, como todos nós sabemos, é: simplesmente por dinheiro; dinheiro encharcado de sangue, frequentemente de sangue inocente.” Francisco declarou em alto e bom som ser dever de todos acabar com o comércio de armas. 

Obama – citando Luther King -  acrescenta que não se pode mais inventar falsas desculpas.  É preciso agir. Sacudido pela emoção, vai dando passos concretos, um após o outro.  A luta não será fácil.

  Que Deus o ajude, assim como a todos aqueles que fazem qualquer esforço, por mínimo que seja, para diminuir o assustador poder da violência que ceifa vidas e dizima o futuro de gerações.

Por Maria Clara Bingemer, professora do departamento de teologia da PUC-Rio
A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
  Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

ADEUS 2015

Por Frei Betto

                                                 

     Chego ao início do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de pedras a atulhar esperanças, e o grito alucinado frente à enxurrada de mazelas, estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de trânsito, um acaso, o esgarçamento ético, a desprovisão moral.

     A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.

     Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte. Agora, sei que acordei em 2016. Espero que não apenas do sono pós-réveillon. Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa, perdeu-se no mapa.
     Adeus 20
15. No ano que findou, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano, entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do jogador. Como em ”Tom Jones“, de Fielding, meu idealismo factício se descosturou em realidade. Desabou o céu e me vi pisando o chão de estrelas, cujas pontas ferinas em nada evocavam a canção de Orestes Barbosa. E comunguei a dor, essa dor inconsútil que dilacera silenciosamente, um por um, os fios que, em nossa subjetividade, tecem a certeza de que o sonho é o prenúncio inconsciente de que todo real é vulnerável.

     Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras brota delicado som de flauta.

Não sou dado ao absinto e sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes do mundo se não enchem um prato de comida? De que valem todos os reinos se não plenificam a alma do gosto de uva?

     Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o voo arisco enrugando ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs. Quero-os agora em 2016, sem contudo me provocarem a vertigem das alturas.

     Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de seus redutos parlamentares e tornando-a, de fato, o que sempre deveria ter sido, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a expressão pareça apenas uma redundância.

     Chega de golpes! Quero a vida despontando na cidadania inelutável, na teimosia dos inconformados, na ociosidade intemporal dos mendigos, nas mulheres condenadas a bordar dores incolores, na despossuída humilhação dos que clamam por um pedaço de terra, de chão, de casa, de direito. Tenhamos todos acesso à vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as intermitências da morte.


Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
  
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
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