Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Ainda sob a ressaca da morte de Ettore Scola, recordo aqui um filme que ele não
dirigiu, mas fez o roteiro. A direção era do grande Dino Risi e Scola foi
o responsável pelo belíssimo roteiro da viagem de dois dias dos improvisados
amigos Bruno e Roberto. Vittorio Gassmann jovem, belo e esbanjando talento era
Bruno, enquanto Jean Louis Trintignant, ainda mais jovem e antes de ser
guindado ao sucesso e ao reconhecimento com “Um homem, uma mulher”, é Roberto.
A palavra italiana que dá título ao filme, “Il Sorpasso”, prestou-se a
confusões de compreensão e interpretação. Traduzida como “Aquele
que sabe viver”, “sorpasso” significa ultrapassagem. E assim, Dino Risi e
Scola remetem ao final inesperado e doloroso do filme, preparado ao longo de
toda a trama com a corrida louca e, no fundo, desesperada do protagonista Bruno
na tentativa de um ultrapassar permanente.
O que pretende o personagem ultrapassar? O tempo, a idade, o fracasso
profissional, o matrimônio que acabou, o desprezo maternal que a ex-mulher lhe
dedica, a falência da paternidade que leva a linda filha – Catherine Spaak no
esplendor de sua beleza e juventude – a buscar um relacionamento afetivo e um
matrimônio com um homem mais velho, para substituir o pai que nunca teve?
Correndo loucamente em seu carro esporte conversível, o personagem de Bruno
deseja, na verdade, ultrapassar a vida que jamais é curtida, degustada,
saboreada, sempre ultrapassada em uma pressa feroz e um apetite voraz. E
nessa corrida sem trégua, coisas, objetos, pessoas vão ficando pelo caminho,
mais ou menos quebradas, esquecidas, danificadas, parcial ou irreversivelmente.
A seu lado, o contido, reprimido e estudioso Roberto entra na aventura por
acaso. Um atraso, uma porta fechada, o verão quente e o feriado de 15 de agosto
– o famoso “ferragosto”, - quando toda Roma para. O filme capta
bem esse espírito das férias, que na Itália do pós-guerra (o filme é de 1962)
são sacratíssimas e esvaziam as cidades. É nesse clima
que o irrepreensível Roberto
abandona sua rotina previsível e comportada de estudante de Direito que se
prepara com afinco para os exams e embarca em uma louca aventura ao lado do não
menos louco Bruno. Até então, o máximo de transgressão da sua vida era
espiar e desejar timidamente a vizinha do apartamento em frente, sem
jamais ter a coragem de abordá-la.
E se Bruno vive correndo atrás daquilo que ele mesmo não chega a identificar,
Roberto se coíbe e se proíbe de viver plenamente segundo a idade que tem.
Permanece aquém da despreocupação cativante da juventude que, além de estudar,
inclui ir a festas, dançar, namorar. Rapaz tímido e provinciano,
que sequer sabe dirigir, não fuma, não bebe, não dança, de repente se vê ao
lado de Bruno em uma viagem que durará 48 horas, sem rumo certo e sem
planejamento. Road movie da melhor qualidade, “Il Sorpasso” nos
mostra a viagem desses dois inesperados companheiros pelas estradas
italianas. Na verdade, será uma viagem pela vida.
A estadia de algumas breves horas durante aqueles dois dias em casa dos tios de
Roberto, no campo, onde o rapaz passava férias em sua infância, traz elementos
de fundamental importância para que perceba o futuro que lhe está reservado se
continuar naquele estilo de vida: medíocre, frustrada e hipócrita. No íntimo
começa a surgir um movimento de recusa daquele porvir pré-determinado que
lhe parecia tão natural horas antes.
Entre esses dois jovens tão diferentes surge um sentimento de amizade e
recíproca gratidão. Bruno sente que encontrou em Roberto o amigo que não
tem. E Roberto sente que passou com Bruno os momentos mais felizes de sua
vida, fora da rotina incolor e insipida que havia sido a sua até então. A
câmera de Dino Risi passa a mostrar um Roberto que não tenta mais chamar o
companheiro à razão, e, eufórico, o incita a ir mais longe, a arriscar tudo na
corrida louca ao volante de seu carro.
É neste momento que acontece o “sorpasso”, a ultrapassagem final, derradeira,
fatal. Acabam-se para Bruno o carro esporte, o sucesso com as mulheres, o
ócio permanente e frenético. Para Roberto, é o fim do futuro e a
possibilidade de escolhas entre uma profissão tradicional, um casamento
tranquilo, uma família, ou uma juventude mais prolongada e divertida.
As ultrapassagens sucessivas e arriscadas terminam por desembocar em macabro
final que ao mesmo tempo em que selava a inocência um tanto infantil de Roberto
era igualmente o final de seu caminho nesta vida. Os dois rostos que o
espectador acompanhou desde o princípio agora se reduzem a um só. Do
outro só resta o abismo onde o “sorpasso” imprudente o atirou.
Um clássico do cinema italiano, o filme conheceu sucesso estrondoso e até hoje
é considerado uma das obras-primas da produção cinematográfica do século XX.
Qual o segredo desse êxito? Trata-se de uma narrativa na qual qualquer
ser humano que não passa ao largo da própria vida encontrará profunda reflexão
existencial, além de uma excelente realização cinematográfica.
Salve Dino
Risi! Salve Ettore Scola! Obrigada por nos ajudarem a sermos mais
humanos.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A
teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos
compartilhados (Ed. Vozes)
Copyright 2016 –
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário