Por Frei
Betto
Chego ao início do ano e constato que, entre mortos e feridos, cascatas de
pedras a atulhar esperanças, e o grito alucinado frente à enxurrada de mazelas,
estou vivo. Estar vivo é milagre constante. Por muito pouco a vida se esvai: um
coágulo de sangue no cérebro, um tropeção, o vírus, o tiro, o acidente de
trânsito, um acaso, o esgarçamento ético, a desprovisão moral.
A cada manhã se repete o renascer. Agora sei por que o bebê faz manha à hora em
que o sono começa a vencer-lhe a resistência. Teme a morte, a segregação do
aconchego, o retorno às cavernas uterinas. O sono apaga-lhe os sentidos, a
consciência, o (con)tato com mãos e olhares afetuosos.
Crescer é dormir sem medo. Confiante de que se vai acordar no dia seguinte.
Agora, sei que acordei em 2016. Espero que não apenas do sono pós-réveillon.
Também dessa letargia que me acossa, desse propósito de inconsistência que me
assalta, dessa lúgubre angústia de viajeiro que, além de perder o mapa,
perdeu-se no mapa.
Adeus 20
15. No ano que findou, por vezes me julguei um idiota dostoievskiano,
entre crime e castigo, porém como se tudo dependesse da destreza semântica do
jogador. Como em ”Tom Jones“, de Fielding, meu idealismo factício se
descosturou em realidade. Desabou o céu e me vi pisando o chão de estrelas,
cujas pontas ferinas em nada evocavam a canção de Orestes Barbosa. E comunguei
a dor, essa dor inconsútil que dilacera silenciosamente, um por um, os fios
que, em nossa subjetividade, tecem a certeza de que o sonho é o prenúncio
inconsciente de que todo real é vulnerável.
Contudo, não sucumbi. Feito bambu, envergo mas não quebro. De minhas ranhuras
brota delicado som de flauta.
Não sou dado
ao absinto e sei que a vida é uma aposta. Todas as minhas fichas estão
colocadas no tabuleiro dos deserdados. Jogo ao lado dos perdedores. É apenas
isto que me interessa: ao faminto, o pão e a paz. De que valem todos os poderes
do mundo se não enchem um prato de comida? De que valem todos os reinos se não
plenificam a alma do gosto de uva?
Não sou empalhador de pássaros. Quero-os vivos, livres, o voo arisco enrugando
ventos. Quero-os saltitantes entre as flores que cultivo em meu canteiro
íntimo. Quero-os gorjeando melodias todas as manhãs. Quero-os agora em 2016,
sem contudo me provocarem a vertigem das alturas.
Bem sei que teremos ano novo de rinhas eleitorais, disputas políticas, juras de
campanhas. Prefiro assim à ordem canhestra das ditaduras e ao genocídio da
guerra que supõe impor democracia por força das armas. Só não sei quando o meu
povo se erguerá da desolação, os jovens deixarão de ser meros espectadores, de
novo ruas e praças serão ocupadas, desalojando a política de seus palácios e de
seus redutos parlamentares e tornando-a, de fato, o que sempre deveria ter
sido, esse exercício coletivo de imprimir futuro ao futuro, por mais que a
expressão pareça apenas uma redundância.
Chega de golpes! Quero a vida despontando na cidadania inelutável, na teimosia
dos inconformados, na ociosidade intemporal dos mendigos, nas mulheres
condenadas a bordar dores incolores, na despossuída humilhação dos que clamam
por um pedaço de terra, de chão, de casa, de direito. Tenhamos todos acesso à
vida, distribuída à farta como pão quente pela manhã, sem jamais temer as
intermitências da morte.
Frei Betto é
escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros
livros.
http://www.freibetto.org/>
twitter:@freibetto.
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