por Marcelo
Barros
Esse título
não contém nenhuma referência ou alusão à bancada que se diz “evangélica” no
Congresso Nacional. Nem aos deputados que pertencem à “bancada da bala”, que propõe
facilitar a venda de armas para todo brasileiro que deseje. A expressão é de
Guimarães Rosa no “Grande Sertão Veredas”. Ela cabe bem ao Brasil e ao mundo
desse início de 2016. Em uma publicidade norte-americana, até Papai Noel tem
uma arma na mão. Isso parece natural em um mundo no qual só se fala em
terrorismo e necessidade de segurança.
É
importante lembrar isso nesse começo de ano novo, quando ainda os nossos votos
de “feliz ano novo” ecoam pelo ar. Infelizmente, para muitos brasileiros, esse
ano não será feliz, principalmente por causa da facilidade com que se vendem e
se compram armas e essas são usadas para matar. Como podemos pensar em um ano
novo feliz para os brasileiros, se, conforme dados do Ministério da Saúde,
entre 2013 e 2015, no Brasil, quase 750 mil pessoas foram assassinadas. E a
maioria dessas mortes (74%) se deu com armas de fogo. Uma pesquisa nacional
mostra uma estreita relação entre disponibilidade de armas de fogo e elevação
das taxas de homicídio. Em números absolutos, em nenhum país do mundo, as
pessoas matam mais do que no Brasil.
A lei
federal 10.286 de dezembro de 2003, também chamada de “Estatuto do Desarmamento”,
estabeleceu controles rigorosos para o registro de armas de fogo e de munição. O
cumprimento dessa lei teve como consequência uma boa diminuição no número de
mortes violentas no país. No entanto, em outubro de 2015, inesperadamente, uma
comissão especial da Câmara aprovou, de forma apressada, um texto que relaxa os
controles estabelecidos pela lei. Essa comissão é composta, em sua maioria, por
parlamentares que foram eleitos com campanhas financiadas pela indústria de
armas e munições, Se esse novo texto for aprovado pelo plenário do Senado,
teremos praticamente a revogação do Estatuto do Desarmamento. Mais ainda do que
a redução da idade penal e do que outras medidas igualmente retrógradas e
cruéis, aprovadas pelo atual Congresso, essa medida representará um retrocesso
incalculável para a segurança e a defesa da vida em nosso país.
A cultura
da violência e do uso de armas de fogo está em alta no mundo inteiro. De acordo
com a ONU, o armamentismo é a indústria que mais rende no mundo, junto com o
tráfico internacional de drogas e o mercado da pornografia e comercialização do
sexo. A maioria dos países da África vive uma situação de pobreza e de desigualdade
social que se agrava a cada dia, No entanto, nos últimos dez anos, as despesas
militares na África foram de 50 bilhões de dólares. Atualmente, nos mais de 50 países da África, o
cálculo é que cem milhões de armas ligeiras estão nas mãos de qualquer pessoa
que as compre ou as roube. Parece que esse é o ideal que esses deputados querem
para o Brasil.
A indústria
mundial de armas faz segredo sobre os seus lucros e opera quase clandestinamente.
No entanto, sabe-se oficialmente que trinta grandes empresas fabricam armas e
as vendem não apenas a governos, mas a grupos armados que praticam todo tipo de
violência. Dessas 30 indústrias, mais da metade são norte-americanas e têm sua
sede nos Estados Unidos, o maior vendedor de armas no mundo (Cf. Revista
Nigrizia, dez 2015, p.49 ss). “Em 2014, essa venda atingiu 10 bilhões de
dólares. O Brasil aparece como terceiro maior comprador de armas, sendo que
somente em 2014, fechou contratos da importância de US# 6 bilhões com a Suécia,
EUA e outros países vendedores” (Cf. Folha de São Paulo, 26/12/ 2015).
Ao
contrário dessa cultura que vem apregoada pelo Cinema norte-americano desde os
antigos filmes de faroeste, as antigas religiões orientais pregam que a vida é
sagrada em si mesma. Todo ser vivo merece respeito, principalmente o ser humano.
Algumas tradições o veem como jardineiro da criação divina, a serviço da vida e
da fraternidade de todas as criaturas. A cultura judaico-cristã herdou essa
visão. Infelizmente, ao se inserir na cultura greco-romana, o Cristianismo se
tornou uma religião guerreira. Muitas vezes compactuou e mesmo promoveu armas e
violência. Na segunda metade do século XX, a maioria das Igrejas cristãs se
arrependeu dos erros do passado e se comprometeu em serem artífices da paz e da
não violência. Junto ao Mahatma Gandhi e a pensadores de outras tradições
religiosas, pastores cristãos como Martin Luther-King nos Estados Unidos, o
bispo Desmond Tutu, na África do Sul e aqui no Brasil, um profeta como Dom
Helder Camara e outros, consagraram-se a essa causa. Com eles somos chamados à
urgente tarefa civilizatória de construir uma democracia de tipo novo,
participativa e não violenta. É importante que as pessoas e grupos que buscam
uma espiritualidade ligada à vida protestem contra essa nova proposta de lei,
surgida na Câmara, a serviço das empresas de armas e de munições. As
celebrações desse tempo do Natal nos fazem retomar nossa fé no ser humano e em
sua capacidade de viver em paz e em uma sociedade não violenta. Assim,
estaremos realizando a palavra de Jesus: “Bem-aventuradas as pessoas que
promovem a paz porque serão chamadas de filhas de Deus”, isso é, elas realizam
uma função divina.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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