O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Aprender a renascer



Por MARCELO BARROS

      No domingo passado, no Rio de Janeiro, concluiu-se a Jornada Mundial da Juventude, evento católico coordenado pelo papa Francisco que contou com a participação de milhares e milhares de jovens católicos do mundo inteiro. Ao comentar esse evento, insisti que esse encontro da juventude deveria despertar em nós a vocação para sempre nos renovar. No artigo da semana passada, citei a palavra de Jesus: “é preciso nascer de novo”. Alguém me perguntou:  “Renascer interiormente é algo possível de se aprender?”. 

     Atualmente, grupos espirituais ligados a correntes da nova consciência (new age) fazem terapias de renascimento e, através de exercícios de respiração, afirmam alcançar a consciência de vidas anteriores e de consciência mais aguda do próprio ser e da missão de cada pessoa nessa terra. Outras tradições propõem esse caminho de renovação interior no próprio cotidiano da vida e sem precisar de referências a vidas anteriores ou futuras. 

     Em primeiro lugar, é preciso se dar conta: enquanto todos os animais nascem de uma vez por todas e, se puderem, vivem de acordo com a sua natureza e seu instinto, o ser humano é diferente. Seu nascimento é incompleto. Não nascemos totalmente. A cada momento da vida, temos de enfrentar a fadiga de gerar-se de novo ou ser gerados. A água é o ambiente perfeito para o peixe. O ar é o espaço feito para os pássaros, mas nenhum mundo se adapta perfeitamente ao ser humano. Por mais que nos esforcemos, somos sempre, de alguma forma, incapazes de nos adaptar. Nenhum sistema consegue nos prender de forma absoluta. Essa é nossa riqueza maior e, ao mesmo tempo, nosso tormento. Como nunca nascemos totalmente, somos sempre chamados a criar um mundo novo e a parir incessantemente em nós um ser novo e no mundo um ambiente que acolha e favoreça essa humanidade renovada. 

     Alguns caminhos espirituais, principalmente no Oriente, desiludidos da possibilidade desse caminho novo, procuram desnascer, ou seja, anular o nascimento e atingir o nada, em uma espécie de aniquilamento do eu, fusão no Bhrama eteno e coletivo dos hinduístas, ou no Nirvana budista.  No Ocidente, Maria Zambrano, grande filósofa espanhola do século XX, afirmava: “A esperança é fome de nascer do todo, de completar aquilo que dentro de nós, de forma apenas esboçada, carregamos. Nesse sentido, a esperança é a substância da nossa vida, a sua dimensão mais profunda, como o fundo de um poço. Graças a ela, somos filhos e filhas dos nossos sonhos, daquilo que não vemos e não podemos verificar. Assim, confiamos a nossa vida a algo que não existe ainda, a uma incerteza. Por isso e para isso, temos tempo. Se fôssemos já totalmente formados e completos, não teria sentido consumir-se nesse esforço”[1].

     Essas palavras da filósofa veem a tarefa do renascimento como esforço humano de sempre renovar-se interiormente. O Judaísmo, Cristianismo e Islã creem que o renascimento é pura graça divina que a pessoa recebe pelo amor. Esse acolhimento supõe uma abertura interior e se expressa através de um esforço para se viver isso na relação consigo mesmo e com os outros. A pessoa aprende a renascer interiormente através da solidariedade e do esforço concreto em função da justiça social e da construção de um mundo novo possível. Quando nos abrimos ao outro e saímos de nós mesmos para servir e nos consagrar aos outros, dialeticamente nos encontramos a nós mesmos de forma mais profunda e realizamos essa construção a qual Jesus se referiu ao afirmar: “Quem quer salvar a sua vida para si mesmo a perderá e quem aceita perdê-la, por amor de mim, a salvará” (Lc 9, 24).
   
Marcelo Barros é monge Beneditino e peregrino de Deus.


[1] - Cf. MARIA ZAMBRANO, Verso un sapere dell´anima, Rafaello Cortina Editore, 1996, p. 90.

terça-feira, 30 de julho de 2013

O legado que o Papa Francisco nos deixou



Por LEONARDO BOFF
 

             Não é fácil em poucas palavras resumir os pontos relevantes das intervenções do Papa Francisco no Brasil. Enfatizo alguns com o risco de omitir outros importantes.

     O legado maior foi a figura do Papa Francisco: um humilde servidor da fé, despojado de todo aparato, tocando e deixando-se tocar, falando a linguagem dos jovens e as verdades com sinceridade. Representou o mais nobre dos líderes, o líder servidor que não faz referência a si mesmo mas aos outros com carinho e cuidado, evocando esperança e confiança no futuro.

             No campo político encontrou um país conturbado pelas multitudinárias manifestações dos jovens. Defendeu sua utopia e o direito de serem ouvidos. Apresentou uma visão humanística na política na economia e na erradicação da pobreza. Criticou duramente um sistema financeiro que descarta os dois pólos: os idosos porque não produzem e os jovens não criando-lhes postos de trabalho. Os idosos deixam de repassar sua experiência e os jovens são privados de construir o futuro. Uma sociedade assim pode desabar. 

      O tema da ética era recorrente, fundada na dignidade transcendente da pessoa. Com referência à democracia cunhou a expressão “humildade social” que é falar olho a olho, entre iguais e não de cima para baixo. Entre a indiferença egoista e o protesto violento apontou uma opção sempre possível: o diálogo construtivo. Três categorias sempre voltavam: o diálogo como mediação para os conflitos, a proximidade para com as pessoas para além de todas as burocracias e a cultura do encontro. Todos tem algo a dar e algo a receber. “Hoje ou se aposta na cultura do encontro ou todos perdem”.

      No campo religioso foi mais fecundo e direto. Reconheceu que”jovens perderam a fé na Igreja e até mesmo em Deus pela incoerência de cristãos e de ministros do evangelho”. O discurso mais severo reservou-o para os bispos e cardeais latinoamericanos (CELAM). Reconheceu que a Igreja, e ele mesmo se incluíu, está atrasada com referência à reforma das estruturas da Igreja. Conclamou não apenas a abrir as portas para todos, mas a sairem em direção do mundo e para as “periferias existenciais”. Criticou a “psicologia principesca” de membros da hierarquia. Eles tem que ser pobres interior e exteriormente. Dois eixos devem estruturar a pastoral: a proximidade do povo, para além das preocupações organizativas e o encontro marcado de carinho e ternura. Fala até da necessária “revolução da ternura” coisa que ele mostrou viver pessoalmente. Entende a Igreja como mãe que abraça, acaricia e beija. Essa atitude materna os pastores devem cultivar para com os fiéis. 

     A Igreja não pode ser controladora e administradora mas servidora e facilitadora. Enfaticamente afirma que a posição do pastor não é a posição do centro mas a das periferias. Esta afirmação é de se notar: a posição do bispos deve ser “ou à frente para indicar o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e neutralizar as debandadas, ou então atrás para evitar que alguém se desgarre” e dar-se conta de que “o próprio rebanho tem o seu olfato para encontrar novos caminhos”. Ademais, deu centralidade aos leigos para junto com os pastores decidirem os caminhos da comunidade.    
      
     O diálogo com o mundo moderno e a diversidade religiosa: o Papa Francisco não mostrou nenhum medo face ao mundo moderno; quer trocar e inserir-se num profundo sentido de solidariedade para com os privados de comida e de educação. Todas as confissões devem trabalhar juntas em favor das vítimas. Pouco importa se o atendimento é feito por um cristão, judeu, muçulmano ou outro. O decisivo é que e o pobre tenha acesso à comida e à educação. Nenhuma confissão pode  dormir tranquila enquanto os deserdados deste mundo estiverem gritando. Aqui vige um ecumenismo de missão, todos juntos, a serviço dos outros. 

      Aos jovens dedicou palavras de entusiasmo e de esperança. Contra uma cultura do consumismo e da desumanização convocou-os a serem “revolucionários” e  “rebeldes”. É pela janela dos jovens que entra o futuro. Criticou o restauracionismo de alguns grupos e o utopismo de outros. Colocou o acento no hoje:”no hoje se joga a vida eterna”. Sempre os desafiou para o entusiasmo, para a criatividade e para irem pelo mundo espalhando a mensagem generosa e humanitaria de Jesus, o Deus que realizou a proximidade e marcou encontro com os seres humanos.

     Na celebração final havia mais de três milhões de pessoas, alegres, festivas e na mais absoluta ordem. Desceu um aura de benquerença, de paz e de felicidade sobre o Rio de Janeiro e sobre o Brasil que só podia ser a irradiação do terno e fraterno  Papa Francisco e do Sentimento Divino que soube transmitir.

  Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis e Francisco de Roma: uma nova primavera na Igreja? Editora Mar de Ideias, Rio 2013.
           

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Francisco e a Linguagem Universal do Espírito Santo



Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER


           Entre as lindas cenas que pontilham a passagem do Papa Francisco pelo Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude está seu gesto de beijar crianças.  Com isso ele visibiliza e torna presente novamente o gesto de Jesus de Nazaré que os acolheu com amor, quando os apóstolos queriam afastar os pequenos.


  No tempo de Jesus, a criança não era prestigiada ou valorizada como nas sociedades ocidentais de hoje. Há mais de uma passagem evangélica onde as multidões que seguiam Jesus eram descritas mencionando a quantidade de homens e acrescentando: “sem contar as mulheres e as crianças”.


           A falta de cidadania das crianças, frágeis e indefesas, comove o coração compassivo do Mestre e o faz pronunciar as palavras que hoje são repetidas em todo lugar onde se anuncia o Evangelho: “ Deixai vir a mim os pequeninos porque deles é o Reino dos céus.”


         Este anúncio, o Papa Francisco o tem feito com seu gesto alegre e carinhoso, beijando e acariciando todas e cada uma das crianças que lhe são apresentadas em suas aparições públicas.  E assim anuncia que a vida frágil, pequena e desprotegida da criança encontra abrigo junto a Deus, que é Pai de todos e cuida do que é pequeno, desprezado e frágil com redobrado amor.


           Em sua chegada ao Rio de Janeiro, enquanto o veículo aberto do Papa Francisco desfilava pelo centro da cidade, Francisco repetiu esse gesto várias vezes com várias crianças.  Mas uma foi especial. Tratava-se de uma menina de um ano e oito meses, de nome Isadora,  filha da evangélica Thais Albuquerque Ramos, que acompanhava uma amiga católica na visita pontifical.


           Thais vive um momento difícil, com um casamento que não vai bem, e mora com a filha na casa do pai.  Ao caminhar perto do papamóvel foi surpreendida com o pedido do papa para segurar a menina. Francisco apontou a criança e os seguranças a levaram até ele.  A mãe emocionou-se ao ver a filha nos braços do Papa, sentindo-se trêmula e invadida por uma sensação inexplicável.


           O fato de ser filha de uma evangélica, mulher pobre e simples, da Zona Norte do Rio, marca o gesto do Papa de um selo diferente.  Thais é de uma confissão cristã diferente da de Francisco, e declarou que o gesto do Papa, apesar de toda a emoção e energia positiva para ela e sua filha, não vai fazê-la mudar de religião ou influenciar na escolha religiosa da filha.  Mas seguramente é algo de que nunca vai esquecer.


          Abraçando e beijando essa criança brasileira, evangélica e humilde, Francisco não só repete o gesto de Jesus de Nazaré, de acolher aquilo que é frágil, pequeno e vulnerável, como também e não menos mostra que o evangelho do amor e da acolhida sem discriminação é universal.


           O anúncio de que Deus é amor, amor real e concreto, independentemente de raça, cor, sexo, condição social, pertença religiosa, está registrado para sempre no gesto de Francisco de abraçar e beijar uma criança evangélica.


           A pequena Isadora, da mesma linhagem da mulher siro-fenícia, da Cananéia, da samaritana, de todos os representantes de outras religiões que se aproximaram de Jesus e foram atingidos por seu amor, é hoje sinal visível – sacramento – do que a Igreja Católica, na pessoa do bispo de Roma, o Papa Francisco quer dizer.  Não há o menor sentido em separações entre pessoas que professam credos diferentes.  Sobretudo entre aqueles que recebem o mesmo Batismo e rezam o mesmo Credo.  O Espírito Santo, artífice da comunhão universal, inspirou Francisco ao beijar na  pequena Isadora todas as outras igrejas cristãs com as quais a Igreja Católica deseja estar em unidade e comunhão.


  Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do departamento de teologia da PUC-Rio . A  teóloga é autora de “O  mistério e o mundo – Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.

Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Maria Aparecida Negra



Por FREI BETTO

       O papa Francisco passou a manhã de quarta-feira no santuário nacional de Aparecida. A liturgia da missa que celebrou girou em torno de três textos bíblicos “feministas”, extraídos do Livro de Ester (5, 1b-2; 7, 2b-3), do Apocalipse (12, 1 e 5 e 13a e 15-16a) e do Evangelho de João (2, 1-11).

     A escolha se explica por ser Aparecida um santuário mariano. Lembro de um encontro de Comunidade Eclesial de Base, na periferia de São Paulo, quando Tadeu, mecânico, comunicou que não participaria da próxima reunião porque iria com a família à Aparecida. Houve quem torcesse o nariz e estranhasse um adepto da Teologia da Libertação frequentar um santuário de religiosidade popular. Tadeu não se fez de rogado: “Sou devoto de Nossa Senhora Aparecida, porque ela é da cor de minha mãe, da minha, da minha mulher e de meus filhos.”

     Tadeu fez uma leitura libertadora da padroeira do Brasil, cuja imagem foi encontrada no Rio Paraíba, em 1717, por três pescadores. Em uma sociedade escravocrata colonizada pelo reino de Portugal, no qual reis e rainhas eram todos brancos, disseminar a devoção a uma negra, rainha do céu, mãe de Deus, constituía uma forma de afirmar a dignidade das escravas vítimas da luxúria e da crueldade de seus senhores.

     Os poderosos procuraram se “apropriar” de Nossa Senhora Aparecida. A 8 de setembro de 1822, um dia após a independência, D. Pedro I a declarou “padroeira do Brasil”. É curioso que o título tenha sido concedido pelo imperador, e não pela Igreja. E a 6 de novembro de 1888, a princesa Isabel ofertou à imagem a coroa de ouro cravejada de rubis e diamantes e o manto azul bordado em ouro e pedrarias.

     As autoridades eclesiásticas, que sempre relutam frente às devoções populares, apenas em 1894 enviaram ao santuário os padres redentoristas, 177 anos depois de a imagem de Maria “aparecer”.

     Quando Bergoglio visitou Aparecida pela última vez, em maio de 2007, para participar da reunião de todos os bispos da América Latina, ele foi o único prelado estrangeiro a comparecer à missa das Comunidades Eclesiais de Base, em um domingo pela manhã. 

       Não se pode afirmar que o novo papa é um adepto da Teologia da Libertação. Tudo indica, porém, que não fará objeção a ela, ao contrário de seus dois antecessores. Prova disso é que, em abril, tirou da gaveta o processo de canonização de Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado pelo Esquadrão da Morte em 1980 e considerado um ícone da Teologia da Libertação.

     Logo após a homilia de Francisco na missa em Aparecida, veio a Oração dos Fiéis. A primeira reforçou a “opção pelos pobres”, tão enfatizada pelos católicos progressistas: “”Pela Igreja, para que seja sempre comprometida com a vida do nosso povo, especialmente dos mais fracos, pequenos e pobres.”

     Após a celebração, Francisco abençoou, no seminário de Aparecida, a imagem de frei Galvão (1739-1822), o primeiro brasileiro a ser declarado oficialmente santo, embora a devoção popular já tenha “canonizado” padre Cícero (1844-1934), que ainda hoje não é reconhecido por Roma como cristão exemplar. A imagem de frei Galvão seguiu posteriormente para Guaratinguetá, onde ele nasceu.

     De volta ao Rio, o papa visitou o Hospital São Francisco de Assis, onde teve contato com um projeto de recuperação de dependentes químicos.

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros. http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

 Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)