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sábado, 19 de março de 2011

KADAFI E AS POTÊNCIAS OCIDENTAIS


por FREI BETTO


As potências ocidentais, lideradas pelos EUA, botam a boca no trombone em defesa dos direitos humanos na Líbia. E as ocupações genocidas do Iraque e do Afeganistão? Quem dobra os sinos por um milhão de mortos no Iraque? Quem conduz à Corte Internacional de Justiça da ONU os assassinos confessos no Afeganistão, os responsáveis por crimes de lesa-humanidade? Por que o Conselho de Segurança da ONU não diz uma palavra contra os massacres praticados contra os povos iraquiano, afegão e palestino?

O interesse dos EUA e da União Europeia não é a defesa dos direitos humanos na Líbia. É assegurar o controle de um território que produz 1,7 milhão de barris de petróleo por dia, dos quais depende a energia de países como Itália, Portugal, Áustria e Irlanda.

O caso do Iraque é exemplar: os EUA inventaram as jamais encontradas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein para exercer o controle sobre um país que é o segundo maior produtor mundial de petróleo – 2,11 milhões de barris por dia, só superado pela Arábia Saudita. E possui uma reserva calculada em 115 bilhões de barris. Soma-se a essa riqueza o fato de ocupar uma posição geográfica estratégica, já que faz fronteiras com Arábia Saudita, Irã, Jordânia, Kwait, Síria e Turquia.

No próximo dia 20 de março, completam-se oito anos que os EUA e parceiros invadiram o Iraque sob o pretexto de “estabelecer a democracia”. O governo de Maliki está longe do que possa ser considerado uma democracia. Em fevereiro último, milhares de iraquianos foram às ruas para reivindicar trabalho, pão, eletricidade e água potável. O exército os reprimiu brutalmente, com mortes, detenções arbitrárias e sequestro de ativistas. Nenhuma potência mundial clamou em favor do direitos humanos nem sugeriu que Maliki responda perante tribunais internacionais.

A ONU é, hoje, lamentavelmente, uma instituição desacreditada. Os EUA a utilizam para aprovar resoluções que justifiquem seu papel de polícia global a serviço de um sistema injusto e excludente. Quando a ONU aprova resoluções que contrariam a Casa Branca – como a condenação do bloqueio a Cuba e da opressão dos palestinos – ela simplesmente faz ouvidos moucos.

Kadafi está no poder desde 1969. São 42 anos de ditadura. Por que os EUA e a União Europeia jamais falaram em derrubá-lo? Porque, apesar de seus atentados terroristas, era conveniente manter ali um déspota que atraía investimentos estrangeiros e impedia que chegassem à Europa os imigrantes ilegais da África subsaariana, ou seja, todos os países ao sul do deserto de Saara.

Agora que o povo líbio clama por liberdade, os EUA ocupam posições estratégicas no Mediterrâneo. Barcos anfíbios, aviões e helicópteros são transportados pelos navios de guerra US Ponce e US Kearsarge. A União Europeia, por sua vez, não está preocupada com a democracia na Líbia, e sim em evitar que milhares de refugiados desembarquem em seus países combalidos pela crise financeira.

Temem ainda que a onda libertária que assola os países árabes, produtores de petróleo, elevem o preço do produto, onerando ainda mais as potências ocidentais, que lutam com dificuldade para vencer a crise do sistema capitalista.

Fala-se em estabelecer uma “zona de exclusão aérea” na Líbia. Isso significa bombardear os aeroportos do país e todas as aeronaves ali estacionadas. E exige o envio de porta-aviões às costas africanas. Em suma: uma nova frente de guerra.

O fato é que a Casa Branca foi surpreendida pelo movimento libertário no mundo árabe e, agora, não sabe como proceder. Era mais cômodo prosseguir cúmplice dos regimes autoritários em troca de fontes de energia, como gás e petróleo. Mas como opor-se ao clamor por democracia e evitar o risco de o governo de tais países cair em mãos de fundamentalistas?

Kadafi chegou ao poder com amplo apoio popular ao derrubar o regime tirânico do rei Idris, em 1969. Mordido pela mosca azul, com o tempo esqueceu todas a promessas libertárias que fizera. Em 1974, valendo-se da recessão mundial, expulsou as empresas ocidentais, expropriou propriedades estrangeiras, e promoveu uma série de reformas progressistas que fizeram melhorar a qualidade de vida dos líbios.

Finda a União Soviética, a partir de 1993 Kadafi deu boas-vindas aos investimentos estrangeiros. Após a queda de Saddam, temendo ser a bola da vez, assinou acordos para erradicar armas de destruição em massa e indenizou vítimas de seus atentados terroristas. Tornou-se feroz caçador de Osama Bin Laden. Pediu ingresso no FMI, criou zonas especiais de livre comércio, abriu o país às transnacionais do petróleo e eliminou os subsídios aos produtos alimentícios de primeira necessidade. Iniciou o processo de privatização da economia, o que fez o desemprego aumentar cerca de 30% e agravar a desigualdade social.

Kadafi mereceu elogios de Tony Blair, Berlusconi, Sarkozy e Zapatero. Como ao Ocidente, desagradou-lhe a derrubada dos governos tirânicos da Tunísia e do Egito. Agora, atira contra um povo desarmado que aspira vê-lo fora do poder.

Para as potências ocidentais, Kadafi tornou-se uma carta fora do baralho. O problema, agora, é como derrubá-lo de fato sem abrir uma nova frente de guerra e tornar a Líbia um “protetorado” sob controle da Casa Branca. Se Kadafi resistir, Bin Laden pode ganhar mais um aliado ou, no mínimo, um concorrente em matéria de ameaças terroristas.

O discurso do Ocidente é a democracia. O interesse, o petróleo. E para o capitalismo, só isto interessa: privatizar as fontes de riqueza. Enquanto a lógica do capital predominar sobre a da liberdade, o Ocidente jamais conhecerá verdadeiras democracias, aquelas nas quais a maioria do povo decide os destinos da nação.



Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

COM-PAIXÃO: A MAIS HUMANA DAS VIRTUDES


Lboff/ compaixao
por LEONARDO BOFF

Três cenas aterradoras: o terremoto no Japão, seguido de um devastador tsunami, o vazamento deletério de gases radioativos de usinas nucleares afetadas e os deslizamentos destruidores, ocorridos nas cidades serranas do Rio de Janeiro, provocaram em nós, com certeza, duas atitudes: compaixão e solidariedade.

Primeiro, irrompe a com-paixão. A compaixão talvez seja, entre as virtudes humanas, a mais humana de todas, porque não só nos abre ao outro, como expressão de amor dolorido, mas ao outro mais vitimado e mortificado. Pouco importam a ideologia, a religião, o status social e cultural das pessoa. A compaixão anula estas diferenças e faz estender as mãos às vitimas. Ficarmos cinicamente indiferentes, mostra suprema desumanidade que nos transforma em inimigos de nossa própria humanidade. Diante da desgraça do outro não há como não sermos os samaritanos compassivos da parábola bíblica.

A com-paixão implica assumir a paixão do outro. É transladar-se ao lugar do outro para estar junto dele, para sofrer com ele, para chorar com ele, para sentir com ele o coração despedaçado. Talvez não tenhamos nada a lhe dar e até as palavras nos morram na garganta. Mas o importante é estar aí junto dele e jamais permitir que sofra sozinho. Mesmo que estejamos a milhares de quilômetros de distancia de nossos irmãos e irmãs japoneses ou perto de nossos vizinhos das cidades serranas cariocas, o padecimento deles é o nosso padecimento, o seu desespero é o nosso desespero, os gritos lancinantes que lançam ao céu, perguntando, “por que, meu Deus, por que?” são nossos gritos lancinantes. E partilhamos da mesma dor de não recebermos nenhuma explicação razoável. E mesmo que existisse, ela não desfaria a devastação, não reergueria as casas destruídas nem ressuscitaria os entes queridos mortos, especialmente as crianças inocentes.

A compaixão tem algo de singular: ela não exige nenhuma reflexão prévia, nem argumento que a fundamente. Ela simplesmente se nos impõe porque somos essencialmente seres com-passivos. A compaixão refuta por si mesma noção do biólogo Richard Dawkins do “gene egoísta”. Ou o pressuposto de Charles Darwin de que a competição e o triunfo do mais forte regeriam a dinâmica da evolução. Ao contrário, não existem genes solitários, mas todos são inter-retro-conectados e nós humanos somos enredados em teias incontáveis de relações que nos fazem seres de cooperação e de solidariedade.

Mais e mais cientistas vindos da mecânica quântica, da astrofísica e da bioantropologia sustentam a tese de que a lei suprema do processo cosmogênico é o entrelaçamento de todos com todos e não a competição que exclui. O sutil equilíbrio da Terra, tido como um superorganismo que se autoregula, requer a cooperação de um sem número de fatores que interagem entre si, com as energias do universo, com a atmosfera, com a biosfera e com próprio o sistema-Terra. Esta cooperação é responsável por seu equilíbrio, agora perturbado pela excessiva pressão que a nossa sociedade consumista e esbanjadora faz sobre todos os ecossistemas e que se manifesta pela crise ecológica generalizada.

Na compaixão se dá o encontro de todas as religiões, do Oriente e do Ocidente, de todas éticas, de todas as filosofias e de todas as culturas. No centro está a dignidade e a autoridade dos que sofrem, provocando em nós a compaixão ativa.

A segunda atitude, afim à compaixão, é a solidariedade. Ela obedece à mesma lógica da compaixão. Vamos ao encontro do outro para salvar-lhe a vida, trazer-lhe água, alimentos, agasalho e especialmente o calor humano. Sabemos pela antropogênese que nos fizemos humanos quando superamos a fase da busca individual dos meios de subsistência e começamos a buscá-los coletivamente e a distribui-los cooperativamente entre todos. O que nos humanizou ontem, nos humanizará ainda hoje. Por isso é tão comovedor assistir como tantos e tantas se mobilizam, de todas as partes, para ajudar as vítimas e pela solidariedade dar-lhes o que precisam e sobretudo a esperança de que, apesar da desgraça, ainda vale a pena viver.

Leonardo Boff é autor do livro O princípio compaixão e cuidado, Vozes 2009.

OS RISCOS DE DEFENDER A VIDA




por MARCELO BARROS



No norte da África, a juventude e a sociedade civil se levantam contra ditadores e exigem mudanças sociais e políticas. Eles se unem a muita gente que, no mundo inteiro, nos dão testemunho de profunda coragem e doação da vida. Certamente muitos filhos escutam de seus pais argumentos para não irem às ruas protestar. É perigoso! Um artigo na internet ressalta a importância da participação das mulheres nas rebeliões cívicas no Egito e na Líbia. É uma verdadeira profecia de fé e confiança no futuro.

Ainda há quem continua dizendo que este mundo não muda nunca. Sempre foi injusto e sempre o será. Entretanto, cada vez é maior o número de pessoas que, em todos os continentes, se mobilizam para transformar a sociedade e tornar a vida mais feliz para todos.

Foi das aldeias indígenas e das culturas mais oprimidas e sofridas da América Latina que surgiu o conceito de viver em plenitude, ou simplesmente bom viver. Nos Andes, os índios quétchua chamam isso de sumak Kwasay; os Aymara falam em Sumak Kamana. Outros povos têm nomes diferentes para indicar o mesmo valor: o objetivo social e político de garantir uma vida feliz para todos. O Equador e a Bolívia integraram a meta indígena do “Bom Viver” em suas Constituições nacionais, elaboradas pela sociedade civil e votada recentemente por todo o povo.

A sociedade capitalista vê sempre a vida como luta, o trabalho como batalha para ganhar o pão e a relação humana como concorrência. Para uma cultura assim, procurar uma vida feliz parece ser utopia irreal. Entretanto, a maioria das tradições espirituais sempre insistiu que o ser humano tem por vocação a felicidade e a plenitude da vida. Jesus Cristo lutou e deu a vida por isso. Conforme o evangelho, ele teria dito: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

Na América Latina, muitos irmãos e irmãs deram a vida por este ideal da vida digna e justa para todos. Nesta quinta feira, 24, celebramos o aniversário do martírio de Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, assassinado em meio à missa que celebrava em uma capela de hospital (1980). Conheci e convivi com o padre Inácio Ellacuría, um dos jesuítas assassinados em 1989, na mesma cidade. Dois dias depois do assassinato do arcebispo, durante uma celebração em sua memória, o padre Ellacuria afirmou: “Com Dom Romero, a presença de Deus em El Salvador se tornou mais visível”.

Na época em que o arcebispo Oscar Romero e os jesuítas da Universidade de El Salvador foram assassinados, o país estava em uma guerra civil na qual mais de 50 mil pessoas perderam a vida. Desde os anos 80, a imensa maioria dos assassinatos, cometida por militares, nunca foi investigada nem punida. Nos últimos anos, o país começou a mudar. Os esquadrões da morte foram desbaratados, o principal suspeito do assassinato do arcebispo foi julgado e ninguém mais precisa viver exilado para não morrer. O país elegeu como presidente Maurício Funes, jornalista, ex-guerrilheiro e casado com uma brasileira. A partir do respeito à Constituição e de forma democrática, o país tem integrado o grupo de países latino-americanos que caminham para uma autonomia maior e uma libertação da influência norte-americana. Mesmo sem usar o nome de “bolivarianismo”, os salvadorenhos querem formar com todos os povos do continente uma pátria grande.

Eles tornaram Dom Óscar Romero um herói nacional, homenageado como mártir e como exemplo de humanidade. Uma palavra do arcebispo ressoa ainda hoje como apelo à humanidade: “O grande inspirador da libertação de toda humanidade e de cada pessoa humana é Jesus Cristo. Por sua vida doada e sua ressurreição, ele diz a todos os poderosos da terra: “Vocês não libertam ninguém. Só quem consegue superar o egoísmo e destruir as cadeias que aprisionam o coração humano consegue libertar a si mesmo e aos outros. Se não partir do mais profundo do interior humano, a libertação não é duradoura, nem verdadeira”.

MAURINA OU A CORAGEM DA INOCÊNCIA

por MARIA CLARA BINGEMER
MAURINA OU A CORAGEM DA INOCÊNCIA--- ARTIGO DE MARIA CLARA BINGEMER

Morreu no ultimo sábado, em São Paulo, Irmã Maurina Borges da Silveira, franciscana, de 87 anos. De idade avançada e saúde muito frágil, faleceu em Araraquara em consequência de falência múltipla de órgãos. Religiosa desde muito jovem, aparentemente era uma freira como qualquer das muitas outras que por esse Brasil afora dão sua vida pelo Reino de Deus, fazendo os serviços mais humildes e obscuros e cuidando dos abandonados pela sociedade.
Sua vida, no entanto, foi marcada por fatos diferentes, que nunca sucederam a outras irmãs da mesma congregação. Irmã Maurina foi a única freira presa e torturada nos porões da ditadura militar brasileira. Em outubro de 1969, aos 43 anos, quando era diretora do Orfanato Lar Santana, foi presa em Ribeirão Preto, São Paulo. Ela cedia uma sala para reuniões de estudantes, ignorando que pertenciam ao grupo guerrilheiro Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Ao tomar conhecimento de que no porão do orfanato havia material impresso que eles ali guardavam, mandou queimar tudo. Depois, enterrou no quintal, sem nada dizer a ninguém, para não comprometer a instituição e proteger as órfãs por quem era responsável e também a suas irmãs de congregação.
Quando os militantes que ali se reuniam foram presos, Maurina foi levada junto com eles. Durante cinco meses a frágil mulher foi interrogada e barbaramente torturada: levou choques, foi pendurada no pau-de-arara e obrigada a assinar falsas confissões de ser amante de um dos militares. Ouviu insultos, calúnias, ameaças de morte, gritos. De tal forma foram as atrocidades a que foi submetida que o então arcebispo dom Felício da Cunha levou o caso à cúpula da instituição e excomungou dois dos delegados que se ocupavam da religiosa, Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano.
O caso de Irmã Maurina – totalmente inocente - inspirou pessoas como dom Paulo Evaristo Arns, na época bispo auxiliar e depois cardeal e arcebispo de São Paulo, a se engajar na luta social. O Brasil inteiro recorda com admiração a coragem do cardeal paulista em denunciar e combater as torturas e violações aos direitos humanos que aconteciam nos cárceres brasileiros. Todo o meio eclesial brasileiro tomou conhecimento do caso da Irmã Maurina, que recebeu o apoio de muitos cristãos, religiosos ou leigos solidários com sua situação.
Quando o cônsul japonês foi sequestrado e trocado por vários presos que foram exilados no México, Irmã Maurina estava entre eles. A notícia de que sairia do Brasil foi para ela um rude golpe. Não queria, não pensava em deixar seu pais. Algemada, entrou no avião sob os olhares espantados e chocados de muitos. Tempos depois, pode voltar ao Brasil. Desde então levou uma vida absolutamente discreta, na oração e no trabalho que sua congregação lhe pedia. Jamais consentiu em ser fotografada, nem apareceu na mídia.
Aos que lhe perguntavam como se sentia com respeito a seus carrascos, teve apenas palavras de perdão. Em recente entrevista, no entanto, declarou suspeitar que o que realmente detonou o processo de sua prisão foi o fato de que em sua creche mandavam crianças filhas de mães solteiras cujas famílias tinham posses, mas não queriam criar os filhos. Candidamente ela foi de casa em casa devolver as crianças e dizer que a creche das franciscanas não era lugar para elas. Pertencia às crianças pobres e necessitadas que não tinham onde viver. Irmã Maurina acreditava que seu gesto provocara raiva nas famílias e que a denúncia que a levou à prisão pode ter vindo dali.
Mas não cultivava ódio nem rancor de seus detratores e torturadores. Segundo testemunho de uma companheira de cela, ela dizia que sua prisão foi apenas a parte que lhe coube na História. E ponto.
Num momento em que as mulheres estão em alta no Brasil, vivendo a novidade de sua primeira presidente mulher, uma figura como a de Madre Maurina é digna de ser olhada com respeito e admiração. Sua coragem e fé inabalável diante das torturas, da prisão, do exílio varrem para bem longe o estigma de “sexo frágil” que pesa sobre a mulher em tom despectivo. A inocência e a fragilidade de Maurina foram transfiguradas em força pela graça d’Aquele a quem entregou sua vida. Agora, ressuscitada, ela o contempla sem véus nem parcialidades. Que interceda por nós, a fim de que possamos fazer um Brasil melhor para nossos filhos e netos.


Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

UMA BALADA PARA NARAYAMA

por ASSUERO GOMES


Um premiado filme de 1983 do diretor japonês Shohei Imamura, relata a vida numa pobre aldeia do norte do Japão em fins do século XIX. Nela a fome grassa. Alguns costumes são revelados de maneira magistral, mas no âmago está o fato de que, os habitantes ao completarem 70 anos eram levados pelos filhos ou parentes mais próximos ao cume da montanha de nome Narayama para lá morrerem.

A película (perdoem o anacronismo, hoje tudo é digital, mas é através da pele que mostramos a alma), repleta de cenas fortes e marcantes, inicia com a presença de uma criança recém nascida achada morta junto a um terreno, cuja morte foi realizada pela própria, e finaliza com o abandono de uma idosa pelo próprio filho na referida montanha de Narayama para que morresse entre os ossos insepultos dos idosos e os abutres. Silenciosa e passiva, como uma balada lúgubre e profana.

Não pude deixar de lembrar-me desse filme, já um clássico, com a recente catástrofe que se abateu sobre a terra sagrada do Japão, a terra do Sol nascente.

Seu povo organizado, metódico, trabalhador, capaz de viver no futuro com a memória presente do passado, cultivando a tradição milenar. Uma civilização tão antiga quanto a própria História, que foi construindo passo a passo seu caminho equilibrando-se sobre ilhas vulcânicas e o mar, entre xoguns e senhores feudais, entre imperadores e samurais, dona de uma estética ímpar e uma culinária maravilhosa, de um código de honra admirável e de uma incrível capacidade de sobreviver.

Como num anti jardim oriental, colhe suas dores e lágrimas, entre flores radioativas, pesadelos insones, sashimis de chumbo, lagos profundos de dor e silêncio. Silêncio como o daquela senhora de Narayama, silêncio como o daquele senhor que atendi certa vez e contou-me que havia retornado a Nagasaki para procurar alguma lembrança ou documento dos seus pais e nada encontrou, o silêncio do nada.

A terra está gemendo, às vezes gritando. Precisamos escutá-la e entender seus sinais. Precisamos refletir e até mesmo elaborar uma nova relação, permanente e respeitosa com ela. Uma nova civilização irá nascer então. O poder da Vida haverá de fazer ressurgir o Sol Nascente no horizonte do Pacífico, pois a última palavra jamais será a da morte, e uma balada alegre se fará ouvir sobre o Japão, com as bênçãos de todos os pacíficos da terra.

Assuero Gomes

assuerogomes@terra.com.br

Médico e escritor

domingo, 13 de março de 2011

VIVER O PRESENTE

por MARCELO BARROS


O Ilê Axê Opô Afonjá, um dos mais famosos e venerados templos do Candomblé baianos, completou cem anos de existência. Nas comemorações, alguém lembrou o título de um dos livros de sua Yalorixá, Mãe Stella de Oxossi: “Meu tempo é agora”. Nada de saudosismos de quem se se lamenta: “no meu tempo, não era assim...” para indicar um passado que não volta mais. Nem, ao contrário, projetar-se em um amanhã que ainda não existe. Viver o presente é assumir a realidade pessoal nossa e do mundo de hoje, não como fardo ou situação da qual não podemos escapar, mas como algo que, apesar de suas dores e dificuldades, precisamos vivê-lo para o transformarmos. Situar-se plenamente no presente é um ensinamento da maioria das tradições espirituais. Buda ensinava seus discípulos a se libertar das preocupações passadas e futuras e simplesmente centrar-se no presente. O evangelho conta que, no sermão da montanha, Jesus disse aos discípulos: “A cada dia basta o seu cuidado próprio” (Mt 6, 34). Ao caminhar para Jerusalém, onde sabia que iria sofrer, disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, a cada dia, tome a sua cruz e me siga” (Lc 9, 23). Tomar a cruz de cada dia é assumir os compromissos e encargos da missão que temos hoje, como discípulos/as do mestre, no testemunho do projeto divino para o mundo.


Esta abertura plena do ser ao presente ajuda a pessoa a se atualizar continuamente e a se abrir para uma transformação sempre possível. Viver profundamente o presente nos capacita melhor, intelectual e emocionalmente, para conviver conosco mesmo e com os outros. Em certas línguas modernas, o termo perplexidade expressa algo negativo. As pessoas se dizem perplexas com algo que não compreenderam ou não aceitam. Entretanto, de fato, etimologicamente, este termo vem do verbo latino plectere que signifca tecer, tramar e do advérbio per que indica completude, perfeição. Assim, o sentido mais profundo de uma pessoa perplexa é de alguém que se abre à estranheza do presente. A perplexidade é a capacidade de se deixar tecer interiormente na trama de uma realidade em constante mutação. Esta disponibilidade de abrir-se ao desconhecido que, cada dia, vem ao nosso encontro, faz de nós, pessoas cosmopolitas (cidadãos do mundo e do universo.


As religiões devem servir para educar as pessoas a viver o presente. Muitas vezes, parece que Igrejas e religiões nos prendem mais a um mundo de tradições e costumes antigos, sem nos libertar para viver o presente. Entretanto, não se pode confundir Tradição com tradicionalismo. Manter a Tradição é uma forma de atualizar o que Carlos Mesters chama de “memória perigosa” para viver o hoje divino na realidade humana. Ao contrário, o tradicionalismo nos prenderia ao passado, por repetir fórmulas, perpetuar costumes e roupagens de antigamente, por mera nostalgia e falta de coragem de viver o hoje de Deus. Uma religião assim seria não o sacramento, mas o túmulo de uma verdadeira espiritualidade.

Nos evangelhos, Jesus interpela os seus contemporâneos: “À tarde, vocês olham o céu e sabem que vai chover, porque as nuvens estão carregadas. Quando sentem o vento vir do sul, sabem que haverá tempestade. Por que, então, não são capazes de discernir os sinais deste tempo presente?” (Mt 16, 2 – 3). Hoje ainda, ele continua a pedir a cristãos/ãs e a todas as pessoas que buscam a Deus que se abram ao tempo presente e descubram na realidade atual sinais da graça e da salvação. Para isso, é preciso reencantar o nosso olhar e nos tornar mais confiantes e esperançosos na permanente vitória do amor sobre a indiferença e o vazio.


As tradições ancestrais indígenas e afro-descendentes nos fazem descobrir, em nosso cotidiano, o milagre da presença divina em uma folha da mata, no sussurrar do vento e no barulho da água, ao cair em meio às pedras. As religiões orientais nos fazem ser presentes ao mundo através da respiração profunda e da consciência do Buda em nós, assim como do aprendizado da compaixão. O Judaísmo nos chama a descobrir uma palavra divina em cada apelo de justiça. Baseado em uma antiga oração judaica, Jesus de Nazaré nos ensina a pedir ao Pai: “Venha o teu reino e dá-nos, hoje, o pão de cada dia” (Mt 6, 9 ss).


Em seu disco clássico Refavela, Gilberto Gil incluiu uma música que se chama Nova Era, na qual ele canta: “Falam tanto de uma nova era. Quase esquecem do eterno é. Se você puder me ouvir agora, já significa que dá pé. Novo tempo sempre se inaugura a cada instante que você viver. O que foi já era. E não há era, por mais nova que possa trazer de volta o tempo que você perdeu” .

A MOÇA LOURA E O HELICÓPTERO

por MARIA CLARA BINGEMER


Naquele dia 2 de dezembro de 1980, há exatos 30 anos, duas mulheres saíram em sua caminhonete branca para o aeroporto de Comalapa, em El Salvador. Iam buscar outras duas que chegavam da Nicarágua. As quatro tinham nacionalidade estadunidense e trabalhavam nas zonas mais pobres da capital de El Salvador: o porto da Libertad e o povoado de Chalatenango.
O voo atrasou e um homem, segundo uma testemunha, parecia especialmente interessado nas duas mulheres que esperavam outras duas. Quando o avião finalmente chegou e a caminhonete saiu com as quatro rumo a Chalatenango, o homem que acompanhara a chegada do voo de Manágua estava em companhia de vários outros.
Só os camponeses dos povoados próximos ao aeroporto viram quando a caminhonete foi obrigada a desviar-se para um lugar isolado. E só eles ouviram as rajadas de metralhadora e os tiros secos de revólver. Era a noite de 2 de dezembro. A caminhonete foi encontrada naquela mesma noite, incendiada no acostamento da rua que leva ao aeroporto. Na manhã seguinte, 3 de dezembro, os camponeses encontraram os corpos das quatro mulheres – violentadas, torturadas e assassinadas brutalmente com um tiro na nuca - e foram orientados pelas autoridades locais a enterrá-las em um túmulo comum em um terreno baldio das imediações.
Os homens obedeceram, mas a consciência falou mais alto. Após realizarem o enterro, informaram o ocorrido ao pároco local. A notícia chegou ao arcebispo e ao embaixador dos Estados Unidos naquele mesmo dia. O túmulo foi exumado no dia seguinte, 4 de dezembro, e os cadáveres reconhecidos em meio à perplexidade e às preces das outras religiosas, irmãs de comunidade das vítimas.
Três daquelas mulheres eram religiosas: duas da congregação Maryknoll, Ita Ford e Maura Clark, e uma da Congregação de Santa Úrsula, Dorothy Kazel. Uma era leiga, Jean Donovan, e tinha 27 anos. Filha de uma família de classe média abastada em Connecticut, Jean frequentou bons colégios, formou-se e pós-graduou-se em Administração. Namorava um jovem médico, Douglas Cable, com quem pretendia casar-se e ter filhos.
No meio do caminho da vida que se delineava tão normal e previsível diante da moça bonita de cabelos louros e olhos azuis atravessou-se um chamado irresistível: trabalhar como voluntária junto aos pobres de El Salvador. Jean interpelou a Deus: Por que não podia ser como todo mundo, uma boa mãe de família? Deus não lhe respondeu e reforçou o chamado para a missão junto aos pobres. Jean foi em 1977 e ali ficou, junto com a irmã Dorothy Kazel, no porto da Libertad, ajudando os refugiados da guerra civil salvadorenha e os pobres. As duas providenciavam abrigo, alimento, transporte e atendimento médico aos que necessitavam. Também enterravam os cadáveres dos mortos abandonados pelos esquadrões da morte que varriam o pequeno país centro-americano.
Jean começou a ser vigiada de perto por aqueles que temiam a herança e o legado do arcebispo Oscar Romero e suas palavras proféticas. Apesar de morto, continuava vivo e conseguia convocar para seu combate em favor da vida, contra a violência e a injustiça até mesmo moças jovens, louras e bem-nascidas.
Um mês antes de sua morte, Jean andava em sua bicicleta pelo campo quando percebeu que um helicóptero militar dos Estados Unidos a estava seguindo. Dias depois contou ao embaixador americano, que negou rotundamente que pudesse ser verdade seu relato, já que em El Salvador não havia helicópteros estadunidenses. Jean respondeu candidamente que podia dizer qual o modelo e o nome do aparelho, pois seu pai, um bem-sucedido executivo, trabalhara a vida inteira numa indústria de helicópteros e por esta razão seus filhos conheciam bem esse meio de transporte desde a infância.
O helicóptero detectado pela jovem missionária leiga se transformaria um mês depois em um carro cheio de policiais que violariam, torturariam e matariam seu jovem corpo feito para o amor, a maternidade, a vida. Por que quatro frágeis mulheres inspiravam tanto temor e deviam ser eliminadas de maneira tão brutal?
A resposta está nas vidas de todas elas que constituem em si mesmas uma interpelação muito difícil de suportar. Como conviver com a entrega radical da vida de Maura, Ita e Dorothy que, em lugar de viverem sua vocação nos Estados Unidos, em algum colégio, educando moças de família, se metiam no tugúrio mais pobre do continente para proteger refugiados, enterrar mortos e cuidar de crianças órfãs?
Como olhar nos olhos azuis de Jean e retorcer-se diante da razão pela qual aquela bela moça insistia em deixar para trás sua vida cômoda e glamorosa para arriscar-se junto aos pobres salvadorenhos? Como aceitar que existam pessoas capazes de gestos dessa profundidade e desse alcance?
Os que não suportaram a força dessa interpelação puseram fim à vida das quatro mulheres. Mas outros, muitos outros, 30 anos depois de sua morte, se sentem iluminados e inspirados por seu testemunho. É difícil ler, sem tremer e emocionar-se, a carta de Jean a uma amiga escrita na semana anterior à sua morte, explicando por que ficou em El Salvador: "O Peace Corps foi embora hoje e meu coração se confrangeu. O perigo é extremo e eles tinham razão em sair... Agora eu devo avaliar a minha própria posição, porque eu não estou disposta ao suicídio. Várias vezes, eu decidi deixar El Salvador. Quase poderia fazê-lo, exceto por causa das crianças, os pobres, vítimas feridas dessa insanidade. Quem iria cuidar deles? Que coração poderia ser tão duro a ponto de decidir-se pela única opção razoável em um mar de lágrimas e solidão? Não o meu, querida amiga, não o meu. "
O helicóptero que Jean Donovan avistou e identificou era um aviso. A moça loura cheia de Espírito e coragem não teve medo e permaneceu no lugar onde sentia que Deus a chamava e as crianças pobres a necessitavam.
O Departamento de Estado dos EUA cobrou da família Donovan U$ 3500,00 pela entrega do corpo de sua filha. Na verdade, era muito pouco. Pois aquela vida não pode ser paga com nenhum recurso humano e seu testemunho tem valor infinito.


Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)

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NO AR: O NOITE DO MANHATTAN

A partir desta segunda-feira, dia 14, vai estrear na Rádio Folha FM, 96,7, o mais novo programa de entretenimento e música de qualidade do Recife : O Noite no Manhattan.
Apresentao aovivo, de segunda a sábado, das 21h às 22h, será apresentado pela jornalista Izabelyta Gurra.
Na programação a presença no estúdio de artistas, especilalistas, estudiosos, fâs e profissionais da boa música
O programa Noite no Manhattam pode também ser acompanhado através da internet pelo www.folhape.com.br no link da radiofolha ou pelo site do Manhattan Cafe Theatro www.manhattancafetheatro.com.br .
Acompanhe as novidades pelo twitter: @ barmanhattan e @belytaguerra.

É só sintonizar e conferir.

sábado, 12 de março de 2011

BRASIL ASSASSINO

por Frei Betto


Madrugada de sábado, 19 de fevereiro de 2011. Aglomerado da Serra, região habitada por famílias de baixa renda em Belo Horizonte. Três soldados da ROTAM (Rondas Táticas Metropolitana), comandados pelo cabo PM Fábio de Oliveira, 45, cercam dois pacatos moradores - o enfermeiro Renilson Veridiano da Silva, 39, e seu sobrinho, o auxiliar de padeiro Jeferson Coelho da Silva, 17.

Acusados de serem traficantes de drogas, tio e sobrinho negam. Os policiais militares gritam que traficantes têm que pagar propina. Eles não têm dinheiro. Obrigados a deitar no chão, os dois são fuzilados.

Vizinhos e amigos das vítimas se revoltam. Na manhã seguinte, queimam três ônibus. O governador Antônio Anastasia exige apuração. Os policiais são presos na quarta, 23. O cabo Oliveira, que comandava a patrulha, fica numa cela do 1º Batalhão da PM.

Na quinta, 24, o cabo recebe a visita de sua ex-mulher e do advogado Ricardo Gil de Oliveira Guimarães. O preso aparenta tranquilidade.

Na sexta, 25, ao amanhecer, o cabo Oliveira é encontrado morto na cela, enforcado pelo cadarço do calção que usava, amarrado ao registro da água do chuveiro.

Suicídio ou suicidado? Desespero ou queima de arquivo? Autoridades policiais que investigam o caso suspeitam que calaram definitivamente o cabo para evitar que denunciasse outros assassinatos cometidos pela PM mineira.

Dois inocentes trabalhadores mortos à queima roupa. O governador Anastasia está diante de sua primeira oportunidade de comprovar que a PM de Minas não pode ser confundida com reduto de assassinos.

*


Na segunda, 28 de fevereiro, o corpo de Sebastião Bezerra da Silva, 40, da Comissão de Direitos Humanos de Tocantins, foi encontrado numa fazenda do município de Dueré (TO). Os dedos das mãos estavam quebrados e, sob as unhas, sinais de agulhadas; os dedos dos pés tinham sido arrancados; e se apurou que fora asfixiado por estrangulamento.

Representante regional do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Silva havia denunciado PMs por prática de torturas e assassinatos. Nos últimos meses, apurava a responsabilidade pelo linchamento de um preso numa delegacia do interior.

Cabe ao governador Siqueira Campos, de Tocantins, apurar este crime hediondo e demonstrar que seu estado nada tem a ver com o velho faroeste onde imperava a lei do mais forte.

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O presídio Urso Branco, de Porto Velho (RO), comporta 456 presos. A 31 de dezembro de 2001 abrigava 1,2 mil detentos. Muitos circulavam livremente pelos pavilhões. O poder judiciário determinou que todos fossem recolhidos às celas.

No dia 1º de janeiro de 2002, o diretor do presídio, Weber Jordano Silva; o gerente do sistema penitenciário, Rogélio Pinheiro Lucena; e o diretor de segurança, Edilson Pereira da Costa, decidiram misturar, no pátio, os presos jurados de morte com os demais.

Arrastados, os condenados pela lei do cão gritavam pelos corredores, pediam clemência aos agentes penitenciários, pois tinham certeza do destino que os aguardava. Em vão. Foram assassinados 27 presos.

No sábado, 26 de fevereiro de 2011 – nove anos após o massacre – a Justiça de Rondônia condenou 17 detentos, acusados de participarem da chacina, a sentenças de 378 anos a 486 anos. Os diretores e agentes penitenciários foram todos absolvidos.

A Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho criticou a promotoria por inocentar o ex-diretor de segurança: “Era quem mais sabia que, se colocasse os presos no pátio, eles seriam mortos.”, declarou Cíntia Rodrigues, advogada da comissão.
*
Os três episódios acima descritos representam, lamentavelmente, o reino da impunidade e da imunidade que assola o Brasil. Defender direitos humanos no Brasil ainda é considerado um acinte. A Justiça é cega quando se trata de penalizar autoridades e policiais, pois não enxerga que a lei não admite que se aja acima dela. Nossos policiais recebem formação inadequada, muitos atuam com prepotência por vestirem uma farda e portar uma arma, humilham cidadãos pobres e praticam extorsões.

A ministra Maria do Rosário, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, deve se antecipar na exigência de apuração de tão graves crimes, antes que o Brasil passe a vergonha de se ver, mais uma vez, condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

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TOLERÂNCIA ZERO À MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA

por LEONARDO BOFF

A globalização como etapa nova da humanidade e da própria Terra, colocou não apenas as pessoas e os povos em contacto uns com os outros. Propagou também mundo afora seus vírus e bactérias, suas plantas e frutas, suas culinárias e modas, suas visões de mundo e religiões inclusive seus valores e anti-valores. É da natureza humana e da história, não como defeito mas como marca evolucionária, o fato de sermos sapientes e dementes e que, por isso, surgirmos como seres contraditórios. Por isso, junto com as dimensões luminosas que mostram o lado melhor do ser humano, por onde nos enriquecemos mutuamente, comparecem também as dimensões sombrias, tradições seculares que penalizam porções enormes da população. Por isso, devemos ser críticos uns aos outros, para identificar práticas desumanas que não são mais toleráveis.

Nós ocidentais, por exemplo, somos individualistas e dualistas, tão centrados em nossa identidade a ponto de termos grande dificuldade em aceitar os diferentes de nós. Tendemos a tratar os diferentes como inferiores. Isso fornece a base ideológica ao nosso espírito colonialista e imperialista, impondo a todo mundo os nossos valores e visão de mundo.

Semelhantes limitações encontramos em todas as culturas. Mas há limitações e limitações. Algumas delas violam todos os parâmetros da decência e basta o simples senso comum, para torná-las inaceitáveis. Elas parecem-se antes a violações e a crimes que tradições culturais, por mais ancestrais que se apresentem. E não adianta virem antropólogos e sociólogos da cultura saírem a campo defendendo-as em nome do respeito às diferenças. O que é cruel é cruel em qualquer cultura e em qualquer parte do mundo. A crueldade, por desumana, não tem direito de existir.

Refiro-me especificamente à mutilação genital feminina. Ela é praticada secularmente em 28 países da África, no Oriente Médio e no Sudeste da Ásia e em vários países europeus onde há a imigração destes países. Calcula-se que atualmente existam no mundo entre 115-130 milhões de mulheres genitalmente mutiladas. Outras três milhões são anualmente ainda submetidas a tais horrores, incluindo 500 mil na Europa.

De que se trata? Trata-se da remoção do clitóris e dos lábios vaginais e até, em alguns locais, da suturação dos dois lados da vulva em meninas com a idade entre 4-14 anos. Isso é feito sem qualquer preocupação higiênica com tesouras, facas, navalhas, agulhas e até pedaços afiados de vidro. São inimagináveis os gritos de dor e de horror, as hemorragias e as infecções que podem levar à morte, os choques emocionais e padecimentos sem conta, como podem ser comprovados em alguns youtubes da internet que não aconselho a ninguém ver.

Na Europa tais práticas são criminalizadas. As mães levam então as filhas aos países de origem, a pretexto de conhecerem os parentes. E ai são surpreendidas com tal horror que mais que uma prática cultural é uma agressão e grave violação dos direitos humanos. Por detrás funciona o mais primitivo machismo que visa impedir que a mulher tenha acesso ao prazer sexual transformando-a em objeto para o prazer exclusivo do homem. Não sem razão a Organização Mundial da Saúde denunciou tal prática como tortura inaceitável.

Vejo duas razões que desqualificam certas tradições culturais e que nos levam a combatê-las. A primeira é o sofrimento do outro. Lá onde a diferença cultural implica desumanização e mutilação do outro, ai ela encontra seu limite e deve ser coibida. Ninguém tem direito de impor sofrimento injustificado ao outro. A segunda razão é a Carta dos Direitos Humanos da ONU de 1948 subscrita por todos os Estados. Todas as tradições culturais devem se confrontar com aqueles preceitos. Práticas que comportam violação da dignidade humana devem ser proibidas e até criminalizadas. A lei suprema é tratar humanamente os seres humanos. Na mutilação genital temos a ver com uma convenção social desumana e nefasta. Dai se entende a instauração do dia 6 de fevereiro como o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina.

Em cada 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é o momento de nos solidarizarmos com estas meninas, vitimas de uma tradição cultural feroz e inimiga da vida e do prazer.

sábado, 5 de março de 2011

LANÇAMENTO NOVO LIVRO DE FREI BETTO

Frei Betto lança novo livro, um diálogo com o físico Marcelo Gleiser. Conversas sobre a fé e a ciência, da editora Nova Fronteira, terá dois lançamentos: no Rio, dia 21 de março, a partir de 19h, no restaurante Esch Café, no Leblon. E no dia 24 de março, em São Paulo, na Livraria Cultura, também a partir de 19 horas.

Os convites seguem anexo.

Frei Betto espera por todos vocês, amigos do Rio, no Esch Café, e amigos de São Paulo, na Livraria Cultura.

MEIO PÃO E UM LIVRO



Tradução livre de Frei Betto



Quando alguém vai ao teatro, a um concerto ou a uma festa, se lhe agrada, lamenta que as pessoas de quem gosta não estejam ali. “Como minha irmã, meu pai iriam apreciar”, pensa, e desfruta tomado por leve melancolia.

Esta é a melancolia que sinto, não pela minha família, e sim por todas as criaturas que, por falta de meios e por desgraça, não gozam do supremo bem da beleza, que é a vida com bondade, serenidade e paixão.

Por isso nunca tenho livro, pois presenteio todos os que compro, que são muitíssimos, e portanto estou aqui honrado e contente por inaugurar esta biblioteca do povo, a primeira na região de Granada.

Não só de pão vive o homem. Eu, se tivesse fome e estivesse abandonado na rua, não pediria um pão, pediria meio pão e um livro. Critico violentamente os que falam apenas de reivindicações econômicas, sem jamais ressaltar as culturais, que os povos pedem aos gritos.

Ótimo que todos os homens comam; melhor que todos tenham saber. Que gozem todos os frutos do espírito humano, porque o contrário é serem transformados em máquinas a serviço do Estado, convertidos em escravos de uma terrível organização social.

Lamento muito mais por um homem que deseja saber e não pode, do que por um faminto. Este aplaca a fome com um pedaço de pão ou algumas frutas. Mas um homem que tem ânsia de saber e não possui os meios, sofre uma profunda agonia, porque são livros, livros, muitos livros, de que necessita. E onde estão esses livros?

Livros! Livros! Palavra mágica que equivale a dizer: “amor, amor”, e que os povos deviam pedir como pedem pão ou anseiam por chuva após semearem.

Quando Dostoiévski, pai da revolução russa muito mais que Lenin, se encontrava prisioneiro na Sibéria, isolado do mundo, retido entre quatro paredes e cercado de desoladas extensões de neve infinita, em carta à sua família pedia que o socorressem: “Enviem-me livros, livros, muitos livros, para que minha alma não morra!”

Tinha frio e não pedia fogo; sede e não pedia água; pedia livros, ou seja, horizontes, escadas para subir ao ápice do espírito e do coração. Porque a agonia física, biológica, natural de um corpo faminto, provocada pela fome, sede ou frio, dura pouco, muito pouco, mas a da alma insatisfeita dura toda a vida.

Disse o grande Menéndez Pidal, um dos sábios mais autênticos da Europa, que o lema da República deveria ser: “Cultura”. Porque só através dela é possível solucionar as dificuldades que hoje enfrenta o povo cheio de fé, mas carente de luz.



Palavras de Federico García Lorca ao inaugurar a biblioteca de Fuente de Vaqueros (Granada), em setembro de 1931.



PS: minha homenagem à nova ministra da Cultura, Ana de Hollanda, e ao novo presidente da Biblioteca Nacional, Galeno Amorim.

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CRISE NEOLIBERAL E SOFRIMENTO HUMANO


por LEONARDO BOFF


O balanço que faço de 2010 vai ser diferente. Enfatizo um dado pouco referido nas análises: o imenso sofrimento humano, a desestruturação subjetiva especialmente dos assalariados, devido à reorganização econômico-financeira mundial.

Há muito que se operou a “grande transformação”(Polaniy), colocando a economia como o eixo articulador de toda a vida social, subordinando a política e anulando a ética. Quando a economia entra em crise, como sucede atualmente, tudo é sacrificado para salvá-la. Penalisa-se toda a sociedade como na Grécia, na Irlanda, em Portugal, na Espanha e mesmo dos USA em nome do saneamento da economia. O que deveria ser meio, transforma-se num fim em si mesmo.

Colocado em situação de crise, o sistema neoliberal tende a radicalizar sua lógica e a explorar mais ainda a força de trabalho. Ao invés de mudar de rumo, faz mais do mesmo, colocando pesada cruz sobre as costas dos trabalhadores. Não se trata daquilo relativamente já estudado do “assédio moral”, vale dizer, das humilhações persistentes e prolongadas de trabalhadores e trabalhadoras para subordiná-los, amedrontá-los e, por fim, levá-los a deixar o trabalho. O sofrimento agora é mais generalizado e difuso afetando, ora mais ora menos, o conjunto dos países centrais. Trata-se de uma espécie de “mal-estar da globalização” em processo de erosão humanística.

Ele se expressa por grave depressão coletiva, destruição do horizonte da esperança, perda da alegria de viver, vontade de sumir do mapa e até, em muitos, de tirar a própria vida. Por causa da crise, as empresas e seus gestores levam a competitividade até a um limite extremo, estipulam metas quase inalcançáveis, infundindo nos trabalhadores, angústias, medo e, não raro, síndrome de pânico. Cobra-se tudo deles: entrega incondicional e plena disponibilidade, dilacerando sua subjetividade e destruindo as relações familiares. Estima-se que no Brasil cerca de 15 milhões de pessoas sofram este tipo de depressão, ligada às sobrecargas do trabalho.
A pesquisadora Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalho, observou que no ano passado, numa pequisa ouvindo 400 pessoas, que cerca de um quarto delas teve idéias suicidas por causa da excessiva cobrança no trabalho. Continua ela: “é preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas”. Especialmente são afetados os bancários do setor financeiro, altamente especulativo e orientado para a maximalização dos lucros. Uma pesquisa de 2009 feita pelo professor Marcelo Augusto Finazzi Santos, da Universidade de Brasília, apurou que entre 1996 a 2005, a cada 20 dias, um bancário se suicidava, por causa das pressões por metas, excesso de tarefas e pavor do desemprego. Os gestores atuais mostram-se insensíveis ao sofrimento de seus funcionários, acrescentando-lhes ainda mais sofrimento.

A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de três mil pessoas se suicidam diariamente, muitas delas por causa da abusiva pressão do trabalho. O Le Monde Diplomatique de novembro do corrente ano, denunciou que entre os motivos das greves de outubro na França, se achava também o protesto contra o acelerado ritmo de trabalho imposto pelas fábricas causando nervosismo, irritabilidade e ansiedade. Relançou-se a frase de 1968 que rezava:”metrô, trabalho, cama”, atualizando-a agora como “metrô, trabalho, túmulo”. Quer dizer, doenças letais ou o suicídio como efeito da superexploração capitalista.

Nas análises que se fazem da atual crise, importa incorporar este dado perverso que é o oceano de sofrimento que está sendo imposto à população, sobretudo, aos pobres, no propósito de salvar o sistema econômico, controlado por poucas forças, extremamente fortes, mas desumanas e sem piedade. Uma razão a mais para superá-lo historicamente, além de condená-lo moralmente. Nessa direção caminha a consciência ética da humanidade, bem representada nas várias realizações do Forum Social Mundial entre outras.

Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra-Cuidar da vida:como evitar o fim do mundo, Record 2010.

PROFANIDADE DO MUNDO E SILÊNCIO DE DEUS




por MARIA CLARA MACHADO
O pensamento pós-moderno, caracterizado pela “desconstrução” e relativização de todo o edifício conceitual aparentemente sólido da modernidade, questiona também toda tentativa de dizer de forma plena o Absoluto inefável que o Cristianismo e outras tradições religiosas chamamos Deus. Considera igualmente todo discurso com pretensões à universalização e à totalização como redutor e inadequado.
Não seria pertinente, no entanto, admitir como premissa iniludível que vivemos um tempo de enfraquecimento da fé em Deus e da reflexão sobre Ele. Ainda que seja certo que a época moderna proclamou a inevitabilidade do declínio das religiões, chegando até a sustentar a tese da morte de Deus, a identificação da modernidade com o humanismo ateu carrega consigo uma redução insustentável. Com efeito, o projeto da modernidade engendrou a indiferença religiosa mais do que a negação de Deus. Ao mesmo tempo, a crise deste projeto demonstrou que uma sociedade, se não encontrar seu fundamento em uma Transcendência – seja dado a ela ou não o nome de Deus - se dissolverá lenta e inexoravelmente.
A proclamação do advento da assim chamada pós-modernidade e do pretenso “retorno” do religioso, permite entrever que é bastante inadequado decretar o banimento de Deus do horizonte humano. E que, ao contrário, a busca de Deus continua a agitar o coração da humanidade, sem levar em conta o risco corrido por todos os discursos “oficiais” sobre Deus de estarem envelhecidos.
Hoje, seria possível encontrar uma concepção que migrou de um Deus pessoal em direção a um Deus mais impessoal e, portanto, mais afastado da tradição cristã. Mas não estaria aí para o homem e a mulher pós-modernos a fascinante oportunidade de descobrir aquele que desde a primeira hora da nossa era, Paulo de Tarso tentava anunciar aos atenienses, procurando o caminho para nomear o Deus desconhecido cujo templo encontrara andando pela cidade(cf. At 17)?
O grande teólogo Karl Rahner afirma que se a palavra “Deus” e mesmo sua memória fossem banidos definitivamente do pensamento e discurso humanos, isso não provaria a não existência Dele. Pelo contrário, o ser humano é que teria desaparecido e mergulhado no nada, fracassando em seu projeto e vocação. Pois Deus é constitutivo do ser humano em sua identidade em contínua auto-transcendência.
A fragmentação da pós-modernidade vai re-situar o problema de Deus a partir de um reencontro com o primado da alteridade. A partir daí emergirá um novo paradigma inter-subjetivo e relacional, que reconduzirá a linguagem humana a encontrar as palavras para dizer o Absoluto pelo qual seu coração anseia. Aí, talvez, possa voltar a ter sentido uma vida fragmentada pelo estilhaçamento de uma compreensão global totalizante e uniformizante do mundo e da história.
O judeu-cristianismo coloca como caminho possível da identidade do “eu” o rosto do outro. Amar o outro como a si mesmo é, desde o Antigo Testamento, o maior mandamento, paralelo à grandeza de amar a Deus sobre todas as coisas. No Novo Testamento, ambos são tomados, segundo Jesus, como resumo, síntese feliz da lei e dos profetas. No cristianismo, portanto, o ser humano é visto como alguém livre. Livre para amar. A liberdade não é concebida como uma heteronomia opressiva, no sentido de uma lei exterior que esmaga e destrói a subjetividade, mas é dom gratuito de Deus, que coloca e recoloca sempre de novo o homem livremente no caminho do amor, no percurso em direção ao outro.
A visão cristã tenta dar um passo adiante nesse sentido, ao dizer que a liberdade não vem puramente de fora, mas está dentro do ser humano, como inscrição ali gravada, da interpelação epifânica, manifestativa do rosto do outro – do pobre, da viúva, do órfão, do estrangeiro – que institui para ele a única lei, que é a lei do amor. O caminho para Deus hoje, portanto, passa por sua descoberta no sofrimento e na fragilidade do outro. Disso deram testemunho todos os místicos – homens ou mulheres – do último século que, situados no epicentro da injustiça, da violência e do mal, experimentaram a vida em plenitude e a transmitiram como legado a nossa geração.

Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)


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QUANDO O CARNAVAL CHEGAR



por MARCELO BARROS
Em várias regiões do Brasil, a expectativa do Carnaval é a de uma festa de liberdade e confraternização, mesmo se, cada vez mais, a sociedade do consumo é dominada pelo comércio de drogas, bebidas e exploração humana. Tradicionalmente, comunidades religiosas criam alternativas espiritualistas para preencher os dias de Carnaval. Ao contrário, grupos de tradição afro-descendente organizam blocos de Afoxé. Participam do Carnaval na comunhão do Espírito. Isso é importante e positivo porque a festa é uma dimensão fundamental da fé. Quem ama louva e quem louva festeja. Uma sociedade massificante faz espetáculos. Uma comunidade faz festa. No espetáculo, espectadores pagantes apreciam um show. Mesmo se interagem, continuam sendo platéia. Na festa, ao contrário, todos são atores e protagonistas. A festa cria envolvimento afetuoso e revela que cada um depende de todos, na construção de um corpo comum. Por isso, a verdadeira festa, mesmo se não tiver nada de explicitamente religioso, é profundamente espiritual. Alguém já comparou um desfile de escolas de samba ou de bloco de carnaval de rua com uma grande liturgia. É claro que o atual desfile carnavalesco está organizado como espetáculo. Nele, há elementos negativos como o espírito de competição, uma exploração do corpo humano como objeto de comércio, além da eventualidade de drogas, abuso de bebidas e até violência. Mas, se até em celebrações religiosas no templo, os profetas bíblicos denunciaram o risco do exibicionismo dos sacerdotes, a hipocrisia de fingir santidade e a pouca relação entre culto e justiça, não é de estranhar que em uma festa considerada mundana, tenhamos de lutar contra elementos negativos.
Em um mundo que favorece o desamor e provoca tantos casos de depressão, é urgente retomar o verdadeiro espírito da festa. Roger Schutz, fundador e prior da comunidade ecumênica de Taizé, se perguntava: “Se o espírito da festa desaparecer do mundo, como sobreviverão as comunidades?”. Há quem ligue a fé e a espiritualidade com uma excessiva seriedade e ar de tristeza. No velho catolicismo ibérico, predominam imagens do Senhor Jesus, amarrado no tronco de torturas e coroado de espinhos. A figura de Maria é principalmente a de Nossa Senhora das Dores. E os santos parecem todos grandes sofredores. Não se trata de negar que, muitas vezes, esta vida é mesmo um vale de lágrimas. Mas, temos de encontrar a forma de ser felizes. Jesus disse que veio ao mundo para que a nossa alegria seja completa (Cf. Jo 16 20 ss). Conforme o evangelho de Mateus, sua primeira palavra pública foi um convite a sermos todos felizes, bem-aventurados. Na tradição cristã, uma abadessa beneditina medieval, Santa Mectildes nomeava Jesus como seu “companheiro de brincadeiras”. E até hoje, no Catolicismo popular, existem grupos de folia nos quais os foliões não são os do Carnaval de agora, mas os devotos do Divino ou dos Santos Reis.
A festa pode ter também uma dimensão profética de antecipar o dia da vitória final contra todos os elementos negativos do mundo. No começo dos anos 70, Cacá Diegues fez um filme chamado “Quando o Carnaval chegar”. Os atores eram, entre outros, Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão. Em plena ditadura militar, o filme tomava o Carnaval como símbolo da festa da libertação do povo e da vitória contra a censura e as repressões. Até hoje, muita gente lembra disso ao cantar a melodia do Chico: “Quem me vê assim, parado, distante, parece que eu nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”.
A ONU consagrou 2012 como o ano da valorização das culturas africanas e do reconhecimento da dignidade das pessoas e comunidades afro-descendentes. Neste último mês, no norte da África, povos desarmados e principalmente jovens, através da internet, conseguiram derrubar regimes ditatoriais fortemente armados e violentos. Ao menos na Líbia, a repressão foi muito violenta e muita gente está sendo morta. Mas, da parte do povo, há uma insistência nas manifestações pacíficas, mas radicais: as pessoas só voltarão para casa quando se sentirem representadas por governos democráticos e respeitadores da dignidade humana. Também no Brasil, as comunidades afro-descendentes têm se organizado e conquistado alguns direitos. Quem sabe, neste Carnaval, possamos recuperar destas sabedorias tradicionais a forma de fazer festa como celebração da vida e acolher o outro como companheiro de caminhada para o grande Carnaval do reinado divino no mundo.