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sábado, 19 de março de 2011

UMA BALADA PARA NARAYAMA

por ASSUERO GOMES


Um premiado filme de 1983 do diretor japonês Shohei Imamura, relata a vida numa pobre aldeia do norte do Japão em fins do século XIX. Nela a fome grassa. Alguns costumes são revelados de maneira magistral, mas no âmago está o fato de que, os habitantes ao completarem 70 anos eram levados pelos filhos ou parentes mais próximos ao cume da montanha de nome Narayama para lá morrerem.

A película (perdoem o anacronismo, hoje tudo é digital, mas é através da pele que mostramos a alma), repleta de cenas fortes e marcantes, inicia com a presença de uma criança recém nascida achada morta junto a um terreno, cuja morte foi realizada pela própria, e finaliza com o abandono de uma idosa pelo próprio filho na referida montanha de Narayama para que morresse entre os ossos insepultos dos idosos e os abutres. Silenciosa e passiva, como uma balada lúgubre e profana.

Não pude deixar de lembrar-me desse filme, já um clássico, com a recente catástrofe que se abateu sobre a terra sagrada do Japão, a terra do Sol nascente.

Seu povo organizado, metódico, trabalhador, capaz de viver no futuro com a memória presente do passado, cultivando a tradição milenar. Uma civilização tão antiga quanto a própria História, que foi construindo passo a passo seu caminho equilibrando-se sobre ilhas vulcânicas e o mar, entre xoguns e senhores feudais, entre imperadores e samurais, dona de uma estética ímpar e uma culinária maravilhosa, de um código de honra admirável e de uma incrível capacidade de sobreviver.

Como num anti jardim oriental, colhe suas dores e lágrimas, entre flores radioativas, pesadelos insones, sashimis de chumbo, lagos profundos de dor e silêncio. Silêncio como o daquela senhora de Narayama, silêncio como o daquele senhor que atendi certa vez e contou-me que havia retornado a Nagasaki para procurar alguma lembrança ou documento dos seus pais e nada encontrou, o silêncio do nada.

A terra está gemendo, às vezes gritando. Precisamos escutá-la e entender seus sinais. Precisamos refletir e até mesmo elaborar uma nova relação, permanente e respeitosa com ela. Uma nova civilização irá nascer então. O poder da Vida haverá de fazer ressurgir o Sol Nascente no horizonte do Pacífico, pois a última palavra jamais será a da morte, e uma balada alegre se fará ouvir sobre o Japão, com as bênçãos de todos os pacíficos da terra.

Assuero Gomes

assuerogomes@terra.com.br

Médico e escritor

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