O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

CARNAVAL: COM QUE ROUPA?



por Maria Clara Lucchetti Bingemer






Sou do tempo em que no carnaval nossas mães soltavam a criatividade e faziam para cada um de nós a mais linda e diferente fantasia: “ de rei ou de pirata ou jardineira”... diz a canção do poeta Vinicius de Moraes. E de camponesa russa, de bailarina, de ursinho etc. etc. Quem já não vestiu cada uma dessas fantasias e foi para o baile sentindo-se rainha ou pelo menos princesa, com todos os olhares postos na sua pessoa?



Havia também os grupos. E eu participei de vários. Uma vez éramos 26 palhaços, rapazes e mocinhas, todos de cara pintada, bata de seda, meias pretas. Em outra, 17 tiroleses. Eu fui de saia, a única. E a mancha verde se confundia com os confetes e serpentinas. Naquele tempo, a maior preocupação das mães era um de nós engolir confete e ter de parar no hospital. Ou escorregar no chão cheio de serpentinas molhadas e quebrar uma perna.



Sim, senhoras e senhores, a gente vai ficando velha. Lança-perfume era só uma deliciosa sensação de geladinho na perna, nas costas, na mão. E disputar quase a tapa a linda garrafa dourada para brincar de casinha no dia seguinte. Em nossa inocência jamais soubemos o que Rita Lee sabia. E que os garotos mais velhos que iam ao baile noturno dos clubes também sabiam.



Para nós, pequenas, era brincar em roda, fazer cordão, cantar e suar até se acabar. E quando a adolescência começava a espreitar na porta, sentir o coração bater e o rosto corar, sem precisar de maquiagem. Será que o namorado ou “paquerado” viria ao baile? Será que ia dançar conosco? Coisas que enchiam a imaginação, o afeto, o coração.



Hoje, fantasia, quando é anunciada nos desfiles e concursos a vontade é perguntar: onde está? Porque quando não se resume a uma lantejoula estrategicamente colocada na parte inferior do tronco, chega a, no máximo, algumas pluminhas que balançam ao som da música e deixam adivinhar tudo que, aliás, ninguém estava tentando esconder. A nudez é a fantasia na maioria das vezes. Pois para isso aquele corpo foi submetido à mais rigorosa “malhação” ao longo de todo o ano, a fim de poder ser exibido sem cuidado nem pudor, mas, ao contrário, orgulhosamente, aos olhares todos.



Não cabe aqui ser moralista. Fica até meio ridículo. Cabe, porém, tentar refletir. A realidade está aí para isso mesmo: ser ruminada, digerida, refletida, mastigada. Reflitamos então. Não estaremos indo na contramão da civilização que levamos milênios para construir e edificar? Pois na raiz da mesma está uma combinação dos dois elementos: a nudez e a veste.



A primeira era apanágio dos gregos. Na nudez estava o apanágio da estética. E por isso as gravuras da época cuidaram bem que ficasse material para que os artistas renascentistas imortalizassem a beleza nua das deusas do Olimpo, como Vênus e Afrodite, que deixavam ver o esplendor de seus corpos perfeitos para sempre escavados no alvíssimo mármore. Até hoje peregrinamos pelos museus europeus extasiando-nos diante dessas maravilhas.



Mas não só de Atenas vive a nossa cultura. Não podemos nos esquecer de Jerusalém, longe de nós. E nesta cultura, a veste era a coisa mais importante. Era a “carteira de identidade” da pessoa, pois revelava a que meio social pertencia. E era igualmente sinal de respeito. Apresentar-se em algum lugar, sobretudo em um ritual ou uma festa, com a veste inadequada era uma falta de respeito passível de ser punida com a expulsão ou a rejeição mais radical.



Foi nesse terreno plural e rico que aterrissou a mensagem cristã. E foi tão natural como o desabrochar de uma flor identificar a nova vida em Cristo, que a comunidade proclamava com entusiasmo e alegria com uma nova veste que devia ser revestida e nunca retirada, a fim de fazer parte da personalidade da pessoa. Assim é que o apóstolo diz uma e outra vez: “Pois todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo”(Gal 3,27). Ou ainda “... e vos revestistes do novo, que se vai restaurando constantemente à imagem daquele que o criou, até atingir o perfeito conhecimento.”(Col 3,10).



Assim, no próximo carnaval, vamos brincar de ir vestidos. Não só vai ser coisa nova, que vai chamar a atenção. Mas pode ser inclusive testemunho de que estamos cheios de alegria justamente porque fomos revestidos d’Aquele que é a fonte da vida e da alegria. Um bom e sadio carnaval para todos e todas!



Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio ,autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

ENCONTRO DA HUMANIDADE



por Marcelo Barros





Universidades, escolas, empresas, movimentos populares e até clubes fazem assembléias e convenções. Atualmente, a humanidade inteira é convocada para um encontro, aberto a todos os homens e mulheres que se sintam cidadãos do mundo e tenham no coração o desejo de transformar a sociedade.


Há exatamente onze anos, milhares de pessoas se reuniram em Porto Alegre para refletir juntos e programar o que cada um/uma, em sua organização de base ou na vida cotidiana, poderia fazer por “um novo mundo possível”.


Onze anos depois, desta terça-feira, 24 ao domingo 29, uma nova sessão do Fórum Social Mundial (FSM) acontecerá mais uma vez em Porto Alegre, desta vez com o tema “Crise capitalista – justiça social e ambiental”. Esse fórum, que reúne mais de cem mil pessoas, será uma das atividades preparatórias da Cúpula dos Povos, evento paralelo à conferência da ONU sobre ecologia e condições ambientais que se realizará no Rio de Janeiro de 20 a 21 de junho deste ano (Rio + 20).


Esse FSM acontece no momento em que vários povos se movimentam por liberdade e democracia. No Ocidente, a crise do capitalismo e da própria civilização, expressa de tantas formas diversas, tem suscitado o movimento “Ocupem Wall Street”. Essas manifestações dizem claramente que a juventude e grande parte da sociedade civil internacional não querem mais esse modo de organizar o mundo.


Entretanto, não conseguem ainda vislumbrar modelos ou métodos de organização social alternativos. O atual modelo capitalista levou séculos até se concretizar no sistema vigente. Não se pode exigir da juventude atual e dos movimentos populares que, diante da crise do sistema dominante, tirem do bolso uma proposta alternativa pronta e definida.


O importante é partir de pequenas experiências locais já em funcionamento (organizações de economia solidária, cooperativas populares e outras) e que todas as pessoas e grupos que buscam um novo mundo possível se abram ao diálogo e à coragem de ensaiar o novo.


Sobre isso, em artigo recente, Frei Betto escreveu: “Do lado da esperança, e após três décadas de globocolonização neoliberal, as manifestações sinalizam valores positivos como a empatia pelo sofrimento alheio, a solidariedade, a defesa da igualdade, a busca de justiça, o reconhecimento da diversidade e a preservação ambiental. Sem esse universo ético não há esperança de se construir um outro mundo possível”.


Nas tradições espirituais, o termo Igreja se tornou patrimônio das confissões cristãs e de algumas outras comunidades religiosas, como no Brasil, a religião do Santo Daime. Em grego Igreja (ekklesia) significa assembléia de cidadãos, portanto um fórum de debates e de propostas para a caminhada comum. No tempo do cristianismo primitivo, Igreja era a assembléia dos cidadãos de uma cidade que se reunia para os julgamentos e as decisões que diziam respeito à vida na cidade. Era uma associação elitista (mulher, criança e pobre não participavam). Paulo chamou de Igrejas as comunidades dos discípulos e discípulas de Jesus para dizer que o projeto divino convoca a todas as pessoas a serem iguais e trabalharem juntas pela paz e pela justiça.


Hoje toda humanidade é convocada para esse processo dos fóruns sociais, cuja proposta é caminharmos juntos para a realização do projeto divino da justiça, paz e cuidado com o planeta Terra e o universo que nos rodeia. Para todos nós que participaremos diretamente ou não desse caminho, é bom lembrar a palavra de Jesus: Felizes os que trabalham pela paz, eles fazem o que Deus faz”(Mt 5, 9).

A GRANDE CONTRADIÇÃO BRASILEIRA





por Leonardo Boff




Mais e mais cresce a convicção, inclusive entre os economistas seja do stablisment seja da linha neokeynesiana, de que nos acercamos perigosamente dos limites físicos da Terra. Mesmo utilizando novas tecnologias, dificilmente poderemos levar avante o projeto do crescimento sem limites.



A Terra não aguenta mais e somos forçados a trocar de rumo.Economistas como Ladislau Dowbor entre nós, Ignace Sachs, Joan Alier, Herman Daly, Tim Jack e Peter Victor e bem antes Georgescu-Roegen incorporam organicamente o momento ecológico no processo produtivo. Especialmente o inglês T. Jack se celebrizou pelo livro “Prosperidade sem crescimento”(2009) e o canadense P. Victor pelo “Managing sem crescimento”(2008). Ambos mostraram que o aumento da dívida para financiar o consumo privado e público (é o caso atual nos paises ricos), exigindo mais energia e uso maior de bens e serviços naturais não é de modo algum sustentável.



Os Prêmios Nobel como P. Krugman e J. Stiglitz, porque não incluem explicitamente em suas análises os limites da Terra, caem na armadilha de propor como saída para a crise atual um maior gasto público no pressuposto de que este produzirá crescimento econômico e maior consumo com os quais se pagarão mais à frente as astronômicas dívidas privadas e públicas. Já dissemos à saciedade, que um planeta finito não suporta um projeto desta natureza que pressupõe a infinitude dos bens e serviços.



Esse dado já é assegurado.O que Jack e Victor propõem é uma “prosperidade sem crescimento”. Nos paises desenvolvidos o crescimento atingido já é suficiente para permitir o desabrochar das potencialidades humanas, nos limites possíveis do planeta. Então chega de crescimento. O que se pode pretender é a “prosperidade” que significa mais qualidade de vida, de educação, de saúde, de cultura ecológica, de espiritualidade etc.



Essa solução é racional mas pode provocar grande desemprego, problema que eles resolvem mal, apelando para uma renda universal básica e uma diminuição de horas de trabalho. Não haverá nenhuma solução sem um prévio acerto de como vamos nos relacionar com a Terra, amigavelmente, e definir os padrões de consumo para que todos tenham o suficiente e o decente. Para os países pobres e emergentes se inverte a equação. Precisa-se de “crescimento com prosperidade”.



O crescimento é necessário para atender as demandas mínimas dos que estão na pobreza, na miséria e na exclusão social. É uma questão de justiça: assegurar a quantidade de bens e serviços indispensáveis. Mas simultaneamente deve-se visar a prosperidade que tem a ver com a qualidade do crescimento.



Há o risco real de que sejam vítimas da lógica do sistema que incita a consumir mais e mais, especialmente bens supérfluos. Então acabam agravando os limites da Terra, coisa que se quer exatamente evitar.


Estamos face a um angustiante círculo vicioso que não sabemos como faze-lo virtuoso sem prejudicar a sustentabilidade da Terra viva.A contradição vivida pelo Brasil é esta: urge crescer para realizar o que o governo petista fez: garantir os mínimos para que milhões pudessem comer e, por políticas sociais, serem inseridos na sociedade.


Para as classes já atendidas, precisa-se cobrar menos crescimento e mais prosperidade: melhorar a qualidade do bem viver, da educação, das relações sociais menos desiguais e mais solidariedade a partir dos últimos.



Mas quem vai convecê-los se são violentamente cooptados pela propaganda que os incita ao consumo? Ocorre que até agora os governos apenas fizeram políticas distributivas: repartiram desigualmente os recursos públicos. Primeiro garantem-se 140 bilhões de reais para o sistema financeiro a fim de pagar a dívida pública, depois para os grandes projetos e somente cerca de 60 bilhões para as imensas maiorias que só agora estão ascendendo.



Todos ganham mas de forma desigual. Tratar de forma desigual a iguais é grande injustiça. Nunca houve políticas redistributivas: tirar dos ricos (por meios legais) e repassar aos que mais precisam. Haveria equidade.



O mais grave é que com a obsessão do crescimento estamos minando a vitalidade da Terra. Precisamos de um crescimento mas com uma nova consciência ecológica que nos liberte da escravidão do prudutivismo e do consumismo.



Esse é o grande desafio para enfrentar a incômoda contradição brasileira.



Leonardo Boff escreveu Sustentabilidade: o que é e o que não é, Vozes, Petrópolis 2012.

UNIVERSIDADE E INSERÇÃO SOCIAL



por Frei Betto





Por que dizemos universidade e não pluriversidade? Trata-se de uma instituição que comporta diferentes disciplinas. Multicultural, nela coabita a diversidade de saberes. O título universidade simboliza a sinergia que deveria existir entre os diversos campos do saber.


Característica lamentável em nossas universidades, hoje, é a falta de sinergia. Carecem de projeto pedagógico estratégico. Não se perguntam que categoria de profissionais querem formar, com que objetivos, de acordo com quais parâmetros éticos.


Ora, quando não se faz tal indagação é o sistema neoliberal, centrado no paradigma do mercado, que impõe a resposta. Não há neutralidade. Se o limbo foi, há pouco, abolido da doutrina católica, no campo dos saberes ele nunca teve lugar.


Um cristão acredita nos dogmas de sua Igreja. Mas é no mínimo ingênuo, senão ridículo, como assinala o filósofo Hilton Japiassu, um mestre ou pesquisador acadêmico crer no propalado dogma da imaculada concepção da neutralidade científica.


Em que medida nossas instituições de ensino superior são verdadeiramente universidades, ou seja, se regem por uma direção, um enfoque dialógico, um projeto pedagógico estratégico? Ou se restringem a formar profissionais qualificados destituídos de espírito crítico, voltados a anabolizar o sistema de apropriação privada de riquezas em detrimento de direitos coletivos e indiferente à exclusão social?


A universidade, como toda escola, é um laboratório político, embora muitos o ignorem. E a política, como a religião, comporta um viés opressor e um viés libertador. Como diria Fernando Sabino, são facas de dois legumes…


Um dos fatores de desalienação da universidade reside na extensão universitária. Ela é a ponte entre a universidade e a sociedade, a escola e a comunidade.


As universidades nasceram à sombra dos mosteiros. Estes, outrora, eram erguidos distantes das cidades, o que inspirou a ideia de campus, centro escolar que não se mescla às inquietações cotidianas, onde alunos e professores, monges do saber, vivem enclausurados numa espécie de céu epistemológico.


Como assinalava Marx, dali contemplam a realidade, tranquilos, agraciados pelas musas, encerrados na confortável câmara de uma erudição especializada que pouco ou nada influi na vida social.Essa crítica à universidade data do século 19, quando teve início a extensão universitária. Em 1867, a Universidade de Cambridge, Inglaterra, promoveu um ciclo de conferências aberto ao público.


Pela primeira vez, a academia abria suas portas a quem não tinha matrícula, o que deu origem à criação de universidades populares.Antonio Gramsci estudou numa universidade popular na Itália.


A experiência o fez despertar para o conceito de universidade como aparelho hegemônico que se relaciona com a sociedade de modo legitimador ou questionador. Para ele, uma instituição crítica deveria, através dos mecanismos de extensão universitária, produzir conhecimentos acessíveis ao povo.


Na América Latina, antes de Gramsci houve o pioneirismo da reforma da Universidade de Córdoba, em 1918. A classe média se mobilizou para que as universidades controladas pelos filhos dos latifundiários e pelo clero se abrissem a outros segmentos sociais.


Fez-se forte protesto contra o alheamento olímpico da universidade, sua imobilidade senil, seu desprezo pelas carências da comunidade entorno. A proposta de abrir a universidade à sociedade alcançou sua maturidade, na América Latina, no 1º Congresso das Universidades Latino-Americanas, reunido na Universidade de San Carlos, na Guatemala, em 1949.


O documento final rezava: “A universidade é uma instituição a serviço direto da comunidade, cuja existência se justifica enquanto desempenha uma ação contínua de caráter social, educativo e cultural, aliando-se a todas as forças vivas da nação para analisar seus problemas, ajudar a solucioná-los e orientar adequadamente as forças coletivas.


A universidade não pode permanecer alheia à vida cívica dos povos, pois tem a missão fundamental de formar gerações criadoras, plenas de energia e fé, consciente de seus altos destinos e de seu indeclinável papel histórico a serviço da democracia, da liberdade e da dignidade dos homens.”


Sessenta e dois anos depois do alerta de San Carlos, neste mundo hegemonizado por transnacionais da mídia mais interessadas em formar consumistas que cidadãos, nossas universidades ainda não priorizam o cultivo dos valores próprios de nossas culturas nem participam ativamente do esforço de resistência e sobrevivência de nossa identidade cultural.


O que deveria se traduzir no empenho para erradicar a miséria, o analfabetismo, a degradação ambiental, a superação de preconceitos e discriminações de ordem racial, social e religiosa.


Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros. http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto. Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

MEU NOME É MEDO



por Frei Betto





Meu propósito é dominar corações e mentes. Incutir em cada um o medo do outro. Medo de estender a mão, tocar em cumprimento a pele impregnada de bactérias nocivas.


Medo de abrir a porta e receber um intruso ansioso por solidariedade e apoio. Com certeza ele quer arrancar-lhe algum dinheiro ou bem. Pior: quer o seu afeto. Melhor não ceder ao apelo sedutor. Evite o sofrimento, tenha medo de amar.


Quero todos com medo da comunidade, do vizinho, do colega de trabalho. Medo do trânsito caótico, das rodovias assassinas, dos guardas que intimidam e achacam. Medo da rua e do mundo. Convém trancar-se em casa, fazer-se prisioneiro da fragilidade e da desconfiança. Reforce a segurança das portas com chaves e ferrolhos; cubra as janelas de grades; espalhe alarmes e eletrônicos por todos os cantos.


Faça de seu prédio ou condomínio uma penitenciária de luxo, repleta de controles e vigilantes, e no qual o clima de hostilidade reinante desperte, em cada visitante, uma ojeriza ao prazer da amizade. Tema o Estado e seus tentáculos burocráticos, os pesados impostos que lhe cobra, as forças policiais e os serviços de informação e espionagem. Quem garante que seu telefone não está grampeado? Suas mensagens eletrônicas não são captadas por terceiros?


O mais prudente é evitar ser transparente, sincero, bem humorado. Sua atitude pode ser interpretada como irreverência ou mesmo ameaça ao sistema.


Fuja de quem não se compara a você em classe, renda, cultura e cor da pele; dos olhos invejosos, da cobiça, do abraço de quem pretende enfiar-lhe a faca pelas costas. Tenha medo da velhice. Ela é prenúncio da morte. Abomine o crescimento aritmético de sua idade. Jamais empregue o termo “velho”; quando muito, admita “idoso”.


Tema a gordura que lhe estufa as carnes, a ruga a despontar no rosto, a celulite na perna, o fio branco no cabelo. É horrível perder a juventude, a esbeltez, o corpo desejado!


Tenha medo da mais terrível inimiga: a morte. Ela se insinua quando você fica doente. Saiba que ninguém está interessado em sua saúde. Em seu bolso, sim. Basta adoecer para verificar como haverão de humilhá-lo os serviços médicos e os planos de saúde.


Não se mova! Por que viajar, abandonar o conforto doméstico e se arriscar num acidente de ônibus, navio ou avião? Nunca se sabe quando, onde e como os terroristas atacarão. Quem diria que numa bucólica ilha da pacífica Noruega o terror provocaria um genocídio?


Meu nome é medo. Acolha-me em sua vida! Sei que perderá a liberdade, a alegria de viver, o prazer de ser feliz. Mas darei a você o que mais anseia: segurança!


Em meus braços, você estará tão seguro quanto um defunto em seu caixão, a quem ninguém jamais poderá infligir nenhum mal, nem mesmo amedrontá-lo.


Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do poder” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

BRASIL: DE EMPRESA INTERNACIONALIZADA À UMA SOCIEDADE BIOCENTRADA



por Leonardo Boff






Há interpretações clássicas sobre a formação da nação-Brasil. Mas esta do cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima é seguramente singular e adequada para entender o Brasil no atual processo mundial de globalização: A Refundação do Brasil: rumo a uma sociedade biocentrada (Rima,São Carlos 2011). Seu ponto de partida é o fato brutal da invasão e expropriação das terras brasileiras pelos “colonizadores” à base da escravidão e da superexploração da natureza.


Não vieram para fundar aqui uma sociedade mas para montar uma grande empresa internacional privada, uma verdadeira agro-indústria, destinada a abastecer o mercado mundial. Ela resultou da articulação entre reinos, igrejas e grandes companhias privadas como a das Índias Ocidentais, Orientais, a Holandesa (de Mauricio de Nassau), com navegadores, mercadores, banqueiros, não esquecendo as vanguardas modernas, dotadas de novos sonhos, buscando enriquecimento rápido. Ocupada a terra, para cá foram trazidas matrizes (cana de açúcar e depois café), tecnologias modernas para a época, capitais e escravos africanos.


Estes eram considerados “peças” a serem compradas no mercado e como carvão a ser consumido nos engenhos de açúcar. Com razão afirma Souza Lima: ”o resultado foi o surgimento de uma formação social original e desconhecida pela humanidade até aquele momento, criada unicamente para servir à economia; no Brasil nasceu o que se pode chamar de ‘formação social empresarial”. A modernidade no sentido da utilização da razão produtivista, da vontade de acumulação ilimitada e da exploração sistemática da natureza, da criação de vastas populações excluídas, nasceu no Brasil e na America Latina.


O Brasil, neste sentido, é novo e moderno desde suas origens.A Europa só pôde fazer a sua revolução, chamada de modernidade, com seu direito e instituições democráticas, porque foi sustentada pela rapinagem brutal feita nas colônias. Com a independência política do Brasil, a formação social empresarial não mudou sua natureza.


Todos os impulsos de desenvolvimento ocorridos, não conseguiram diluir o caráter dependente e associado que resulta da natureza empresarial de nossa conformação social. A tendência do capital mundial global ainda hoje é tentar transformar nosso eventual futuro em nosso conhecido passado. Ao Brasil cabe ser o grande fornecedor de commodities para o mercado mundial, com parco valor agregado.


A empresa Brasil é a categoria-chave, segundo Souza Lima, para se entender a formação histórica do Brasil e o lugar que lhe é assinalado no processo atual de globalização desigual. O desafio consiste em gestar um outro software social que nos seja adequado, que nos desenhe um futuro diferente.


A inspiração vem de algo bem nosso: a cultura brasileira. Ela foi elaborada pelos escravos e seus descendentes, pelos indígenas que restaram, pelos mamelucos, pelos filhos e filhas da pobreza e da mestiçagem. Gestaram algo singular, não desejado pelos donos do poder que sempre os desprezaram e nunca os reconheceram como sujeitos e filhos e filhas de Deus. O que se trata agora é refundar o Brasil, “construir, pela primeira vez, uma sociedade humana neste território imenso e belo, o que nunca ocorreu em toda a era moderna, desde que o Brasil foi fundado como empresa; fundar uma sociedade é o único objetivo capaz de salvar nosso povo”.Trata-se de passar do Brasil como Estado economicamente internacionalizado para o Brasil como sociedade biocentrada.


Enquanto sociedade humana biocentrada, o povo brasileiro deixará para trás a modernidade, apodrecida pela injustiça e pela ganância, e que está conduzindo a humanidade a um abismo. Não obstante, a modernidade entre nós, bem ou mal, nos ajudou a forjar uma infra-estrutura material que pode permitir a construção de uma biocivilização que ama a vida em todas as suas formas, que convive pacificamente com as diferenças e com capacidade de sintetizar os mais diferentes fatores.


É neste contexto que Souza Lima associa a refundação do Brasil às promessas de um mundo novo que deve suceder a este agonizante, incapaz de projetar qualquer horizonte de esperança para a humanidade. O Brasil poderá ser um nicho gerador de novos sonhos e da possibilidade real de realizá-los em harmonia com a Mãe Terra e aberto a todos os povos.

UM SANTO NADA CRISTÃO



por Marcelo Barros





Nesta semana, multidões, vindas de todas as regiões da Índia, vão em peregrinação a Deli. Ali, visitam uma laje de mármore, posta no lugar onde, no dia 30 de janeiro de 1948, foi assassinado o Mahatma Gandhi. As pessoas levam flores. Todos depositam uma flor no monumento. Os adultos chamam: "Mahatma Gandhi!". As crianças respondem: "Anantha-he!", isto é, "para sempre”. Neste Brasil, tão sofrido e onde são tão raros os líderes políticos de solidez espiritual e que se entregam verdadeiramente ao povo, precisamos nos voltar para Gandhi, o Mahatma, isto é, a "Grande Alma" e desejar que seu exemplo e sua mensagem sejam eficazes para sempre.



Ele dizia: "Não tenho mensagens. Minha mensagem é simplesmente a minha vida". Ele intitulou a sua auto-biografia: "A história das minhas experiências com a verdade". Por isso, apesar de vivermos em um Brasil tão distante da Índia, convido você que lê esta página, a pensar com amor em nosso país e, onde quer que esteja, dizer comigo: "Mahatma Gandhi, anantha-he!".


Isso implica em comprometer-se em levar adiante a inestimável herança que Gandhi deixou para a humanidade. Sua luta pacífica através da Satyagraha, o caminho da verdade y ahimsa, a não violência, além de conduzir a Índia para a independência política, inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela na África do Sul, o pastor Martin-Luther King em sua luta contra o racismo nos EUA, Dom Helder Câmara no Brasil em sua insurreição evangélica e tantos outros homens e mulheres em sua consagração à justiça e à paz.


Infelizmente, mais de 60 anos depois do assassinato de Gandhi, o mundo continua cada vez mais intolerante e violento. Por isso, é urgente, recordar a herança de Gandhi e atualizá-la para nós e para toda a humanidade. Hoje, o colonialismo contra o qual Gandhi se insurgiu tem outros rostos e outros nomes, como neoliberalismo, desemprego estrutural e a dívida externa e interna dos países. Contra esse modo desumano de organizar o mundo, grande parcela da juventude mundial e pessoas adultas de todos os continentes têm se insurgido. No mundo inteiro, tem havido muitas manifestações por um novo mundo possível.



Elas juntam pessoas e associações muito diversas. Provavelmente, as duas contribuições maiores de Gandhi para esse novo momento da humanidade são a insistência na coerência entre a ação sócio-política da pessoa que quer mudar o mundo e o modo como ele vive seus valores e sua vida pessoal. Gandhi dizia: “A minha vida é um todo indivisível, e todos os meus atos convergem uns aos outros;e todos eles nascem do insaciável amor que tenho para com toda humanidade”. Esse amor é que o levava à ação não violenta que sempre contestava a opressão, mas conseguia ver a pessoa humana em sua sacralidade, mesmo se essa pessoa era um adversário ou inimigo político. Essa era a verdade na qual Gandhi acreditava e que ele defendia. Em sua luta pacífica pela verdade, Gandhi sabia que essa verdade se chama Deus.



"Tudo o que eu faço é na busca de Deus. Anseio por ver a Deus, face a face. O Deus que eu conheço se chama Verdade". Não se trata de um termo apenas filosófico, nem de uma verdade nacional. É a realidade da vida baseada na solidariedade e na justiça. Essa é a base ética das tradições espirituais. Elas todas têm como objetivo que a fé se expresse em um novo modo de ser, de viver e de conviver. A Bíblia chama isso de aliança ou reinado de Deus no mundo, a realização do projeto divino de uma sociedade justa, pacífica e unida em uma só irmandade. Conforme o evangelho, Jesus disse: “Procurem acima de tudo o reino de Deus e sua justiça e tudo o mais lhes será dado como acréscimo” (Mt 6, 33).

O HAITI É AQUI?




por Maria Clara Bingemer





Poucos povos no mundo suscitam tanta compaixão como os haitianos. País golpeado por toda sorte de catástrofes aliado a uma extrema pobreza, a meia ilha francófona do Caribe tem sofrido indescritivelmente. Em 2010, toda essa série de desgraças e infortúnios foi sinistramente coroada com o terrível terremoto que ceifou tantas vidas. Entre elas estava a da brasileira ilustre Dra. Zilda Arns.



O Haiti não conseguiu ainda levantar a cabeça depois do terremoto. Desde a catástrofe que arrasou o país e matou mais de 220 mil pessoas, em janeiro de 2010, chegaram vários milhares de haitianos ao Brasil. Falta tudo em seu território e os filhos da terra, em desespero, buscam vida mais humana em outras paragens. Em seu intento de escapar da morte perene em que se transformou suas vidas, muitos deles e delas aportam no Brasil.


Estima-se em cerca de oito mil o número de haitianos que já cruzaram a fronteira brasileira através de cidades fronteiriças. Pagam às vezes caro aos “coiotes” que os trazem por caminhos escusos e obscuros ao solo brasileiro. No coração e na cabeça, o sonho e a esperança de, enfim, encontrar trabalho, uma vida digna, mais humana, com mais qualidade. Deixaram para trás um país dizimado pelo terremoto. E também o túmulo e a memória dolorosa de parentes mortos na tragédia.



O Brasil emergente povoa suas imaginações e ameaça reeditar em versão “tupiniquim” a conhecida tragédia do “sonho americano”, que em toda a extensão da América Latina tem custado a vida e a liberdade de milhares de migrantes. Indocumentados, ilegais, sem papéis, sem trabalho, terminam deportados ou mortos. Mas as ondas que cruzam a fronteira não param. Qualquer coisa é melhor que a fome, que a vida sem perspectivas para a família e os filhos.



O Brasil da Copa do Mundo, das Olimpíadas e da economia aparentemente pujante enche suas cabeças da ilusão de aqui encontrar um mundo de oportunidades. No entanto, a realidade é bem outra Chegam aqui e não conseguem permanência legal, nem emprego, moradia, ou alimentação. Apenas trocam de calamidade. São algumas vezes atendidos pela caridade das Igrejas locais, que recebem doações e lhes servem uma refeição por dia. Amontoados em abrigos, sem condições dignas de vida, vão formando com sua presença uma gritante interrogação que faz relembrar a canção de Caetano Veloso: O Haiti é aqui?



Enquanto até 2010 os haitianos cruzavam a fronteira como qualquer turista, a partir de março de 2011 começaram a ser impedidos de fazê-lo. Muitos tiveram que permanecer nas cidades fronteiriças. As autoridades brasileiras passaram a controlar o ingresso e a passagem para a desejada terra.



No dia 10 de janeiro, o governo federal brasileiro anunciou uma série de medidas visando a conter o fluxo do deslocamento de haitianos ao Brasil. Só serão aceitos legalmente os que tiverem visto emitido pela Embaixada brasileira em Porto Príncipe. Esta, por sua vez, emitirá apenas 100 vistos de trabalhos ao mês. Só os que estiverem de posse destes vistos poderão aceder ao solo brasileiro. Quem estiver em situação irregular será deportado.



Tampouco se concederá aos haitianos a condição de refugiados políticos. Não é considerada política a razão pela qual deixam seu país e sim de mera vulnerabilidade econômica. A viagem da presidente brasileira ao Haiti, em fevereiro, deixa entrever alguma esperança de que este tema seja tratado na agenda e mesmo priorizado.



Provoca imensa tristeza - e vergonha – ver um país como o nosso, que sempre teve atitude favorável à entrada de estrangeiros; que deve, inclusive, a estrangeiros muito de seu desenvolvimento, adotar atitude truculenta para com esse povo tão sofrido. Doi muito ver o Brasil mimetizando potências estrangeiras na discriminação ao estrangeiro que vem em busca de trabalho e oportunidade. Em busca de vida, enfim.



De que serve um coração se não bate pelo Haiti? – cantava uma canção de Jorge Drexel, composta logo após o terrível terremoto de 2010. E Caetano clamava e convocava: “Pense no Haiti, reze pelo Haiti.” Quando comermos mais de três vezes ao dia, e estivermos dormindo em camas confortáveis, abrigados em casas seguras, cercados por nossos familiares e entes queridos, é bom pensar e rezar pelo Haiti. E mais: pensar e rezar pelo Brasil, para que não entre no caminho de um poder cego e de um capitalismo voraz, que considera indesejáveis seres humanos que buscam seu território para ali trabalhar e viver dignamente. Que o Haiti seja aqui e que o Brasil seja haitiano na acolhida e abertura a esses que vêm saídos da grande tribulação da pobreza e do abandono.



Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)