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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

ATÉ OS VENTOS CONTRÁRIOS NOS CONDUZIRÃO AO PORTO SEGURO




Por Leonardo Boff

O povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na luta e na amarra”, quer dizer, superando dificuldades e com muito trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de fazer as mudanças necessárias, no meio da atua crise, que nos coloquem no reto caminho da justiça para todos.
O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a Empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos. Mas do seio desta massa, nasceram lideranças e movimentos sociais com consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo nem pelos sucessivos golpes sofridos como o de 1964 civil-militar e o de 2016 parlamentar-juridico-mediático.
Apesar da pobreza, da marginalização e da perversa desigualdade social, os pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar esta anti-realidade, o Estado e os políticos precisam escutar e valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a divisão elites-povo e seremos uma nação não mais cindida mas coesa.
O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso, tem a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar seu carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor. A esperança nos remete ao princípio-esperança de Ernst Bloch que é mais que uma virtude; é uma pulsão vital que sempre nos faz suscitar novos sonhos, utopias e projetos de um mundo melhor.
Existe, no momento atual, marcado por um quase naufrágio do país, certo medo. O oposto ao medo, porém, não é a coragem. É a fé de que as coisas podem ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que não é apenas bom no carnaval e na música. Mas pode ser bom na agricultura, na arquitetura, nas artes e na sua inesgotável alegria de viver.
Uma das características da cultura brasileira é a jovialidade e o sentido de humor, que ajudam aliviar as contradições sociais. Essa alegria jovial nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer outra coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso, manter o humor que o relativiza e o torna suportável. O efeito é a leveza e a vivacidade que tantos admiram em nós.
Está havendo um casamento que nunca antes fora feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular é “um saber de experiências feito”, que nasce do sofrimento e dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem, teremos reinventado um outro Brasil. E seremos todos mais sábios.
O cuidado pertence à essência do humano e de toda a vida. Sem o cuidado adoecemos e morremos.. Com cuidado, tudo é protegido e dura muito mais. O desafio hoje é entender a política como cuidado do Brasil, de sua gente, especialmente dos mais vulneráveis, como índios e negros, cudado da natureza, da educação, da saúde, da justiça para todos. Esse cuidado é a prova de que amamos o nosso pais e queremos todos incluídos.
Uma das marcas do povo brasileiro bem analisada pelo antropólogo Roberto da Matta, é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar, juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, em geral, ele não é intolerante nem dogmático. Ele gosta de acolher bem os estrangeiros. Ora, esses valores são fundamentais para uma globalização de rosto humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo. Infelizmente nos últimos anos surgiu, contra a nossa tradição, uma onda de ódio, discriminação, fanatismo, homofobia e desprezo pelos pobres (o lado sombrio da cordialidade, segundo Buarque de Holanda) que nos mostram que somos, como todos os humanos, sapiens e demens e agora mais demens.. Mas isso, seguramente, passará e predominará a convivência mais tolerante e apreciadora das diferenças.
O Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para sermos também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de 60 povos diferentes que para cá vieram. Nosso desafio é mostrar que o Brasil pode ser, de fato, uma pequena antecipação simbólica de que tudo é resgatável: a humanidade unida, una e diversa, sentados à mesa numa fraterna comensalidade, desfrutando dos bons frutos de nossa boníssima, grande, generosa Mãe Terra , nossa Casa Comum.
É um sonho? Sim, aquele necessário e bom.
Leonardo Boff escreveu Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência? Vozes 2018.


quinta-feira, 27 de setembro de 2018

QUERIDA DEMOCRACIA



Frei Betto
       A senhora, todos sabem, nunca foi como a Amélia, que, na opinião do saudoso Mário Lago, era mulher de verdade. Desde que surgiu no cenário das instituições políticas, sua presença sempre foi cercada daquelas suspeitas que envolvem mulheres que se casam com um e flertam com outros.
      Lembra-se de seus tempos na Grécia, quando ainda menina? Na verdade, nem todos os habitantes de Atenas tinham entrada livre em seus jardins. Segundo alguns pesquisadores, apenas 20 mil atenienses desfrutavam da liberdade que a senhora veio a introduzir nas decisões políticas. Os 400 mil escravos, os metecos (estrangeiros que viviam em Atenas) e as mulheres ficavam de fora, excluídos da cidadania e, portanto, do direito de participar da vida pública.
      Na Idade Moderna, Rousseau, Tocqueville e Montesquieu colaboraram muito para a sua maturidade. Com o seu charme, aos poucos a senhora fez a vetusta nobreza, toda enrugada, recolher-se a seus aposentos privados à espera de morte condigna, embora algumas famílias reais insistam em prolongar-lhe a agonia. Mas, em geral, o fazem de braços dados com o parlamentarismo, como meras figuras decorativas, permitindo que a senhora ocupe o espaço das decisões que resultam do confronto plural de partidos e opiniões diferentes.
      Seu melhor atributo, a liberdade, exaltada na tela de Delacroix, aparece com os seios à mostra, guiando o povo. Pena que as suas duas outras filhas, a igualdade e a fraternidade, ainda não tenham saído da pré-escola, repudiadas por quem se farta com as desigualdades e se impõe pela discriminação.
      Um fenômeno curioso é como a senhora é mais falada que amada, exaltada que praticada, evocada que realizada. Veja o Brasil. Desde a queda do Império, a senhora foi sequestrada por nossas elites e, embora o nosso povo continue a pagar, como resgate, cotas de sofrimento e miséria, a senhora ainda enfrenta dificuldades para ganhar praças e ruas. Quando tentou fugir do cativeiro, seus áulicos a puniram com rigor, fazendo-a desaparecer de nosso cenário político, como ocorreu no Estado Novo, na década de 1930, e na ditadura militar, entre 1964 e 1985.
      Com o fim do regime dos generais, a senhora voltou à cena, timidamente, ainda refém dos mesmos políticos que se locupletaram com a ditadura. Tancredo Neves morreu à porta de sua casa e, nos braços de Sarney, a senhora experimentou a vertigem inflacionária, favorecendo a sua queda na Casa da Dinda. Para salvá-la, foi preciso que o povo ocupasse as ruas, resgatando-a de quem pretendia, em seu nome, transformar a coisa pública em negócio privado.
      Veio o governo Itamar Franco e criou o real, moeda que, no bolso da maioria, continua virtual. E fez a cama para FHC, Lula e Dilma, apoiados pelos mesmos partidos tolerados pela ditadura militar, embora acobertados em siglas diferentes. Assim, os interesses das elites ficaram assegurados, salvos das turbulências conjunturais, enquanto o Brasil se tornou campeão mundial de desigualdade social. Hoje, ocupa o vergonhoso 73º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano.
      O Brasil conta com 13,4 milhões de desempregados e 15 milhões de analfabetos funcionais. Agora, em pleno ano eleitoral, querem de novo conspurcá-la, pois os donos do poder, tão bem estudados por Raimundo Faoro, não admitem que a senhora tenha plena vigência em nosso país. Todos podem vencer as eleições, exceto quem não está de acordo com o atual modelo econômico, financeiramente concentrador e socialmente excludente. Daí o terrorismo conservador, as pressões dos especuladores, e a arrogância da Casa Branca, disposta a desestabilizar o país caso seja eleito um candidato que não agrade ao deus Mercado.
      Ora, querida democracia, por que a tratam tão mal? Sua presença entre nós é mero jogo de cena, a ponto de não suportar a sua vigência em nossa vida política, como o comprova o golpe parlamentar de 2016? Dos que se gabam de estarem comprometidos com a senhora, quem, de fato, admite a alternância de poder no Brasil?
      Os que fazem terrorismo eleitoral em seu nome confessam que a temem, pois se acostumaram a governar o povo, jamais com o povo e em benefício do povo.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.

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terça-feira, 25 de setembro de 2018

OS CLAMORES DO POVO



Por Marcelo Barros

O Brasil está na véspera de eleições para presidente, governador e deputados. O clima está mais polarizado do que nunca. Nas eleições para o poder executivo, quase não se apresentam programas e projetos. Os debates incidem mais sobre histórias pessoais e não em discutir o modelo de sociedade que queremos.

As pesquisas de voto mostram uma divisão radical. As alternativas não parecem ser entre partidos ou candidatos ao mesmo cargo. É como se fosse um plebiscito no qual o povo votará se quer continuar com a Democracia, mesmo imperfeita e a ser reformada, ou se entrega o país a um governo autoritário que propõe a violência armada como solução para os problemas sociais. E como a propaganda é de segurança social, muitos pobres são cooptados sem saber no que estão realmente votando. Grandes meios de comunicação fazem com que as pessoas descontentes com a realidade se comportem como a barata que, ameaçada, se refugia debaixo da bota que a vai esmagar. E até a fé cristã é usada como se Deus fosse de direita e Jesus inspirasse as violências da repressão prometida.

Bispos, padres e pastores têm se pronunciado pouco sobre a situação brasileira. Quando o fazem, as declarações cheiram mais à diplomacia do que à profecia. Nesse contexto, temos de lembrar com saudade que, há 45 anos, em 1973, em plena ditadura militar, em meio à repressão aos movimentos sociais e censura à imprensa, os bispos católicos do Nordeste e do Centro-oeste divulgaram dois documentos importantes. No Nordeste, 13 bispos e cinco superiores religiosos assinaram um documento chamado “Eu ouvi os clamores do meu povo”. No Centro-oeste, os bispos publicaram “A marginalização de um povo: o grito das Igrejas”.

O primeiro documento recebeu seu título de uma palavra da Bíblia, no livro do Êxodo, quando, do meio da sarça ardente, Moisés escuta uma voz que dizia: “Eu sou o Deus de teus pais. Ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo” (Ex 3, 7). Ao assumirem como atual essa palavra divina, os bispos analisaram a realidade do Brasil e do Nordeste dos anos 70. Confirmaram que a realidade social do país e da região era de profunda injustiça institucionalizada. O progresso social promovido pelo governo era um “desenvolvimento sem justiça” que só aumentava a escravidão do povo. O documento do Centro-oeste afirmava claramente: “Devemos vencer o Capitalismo. Esse é o grande mal, o pecado acumulado, a raiz podre, a árvore que produz frutos bem conhecidos, como a pobreza, a fome, as doenças e a morte [...]. Para isso é necessário que a propriedade privada dos meios de produção  fábricas, terra, comércio, bancos) sejam destronados” (cf. SEDOC 6, 1973-1974).

Atualmente,  o Brasil continua a ser um dos países com maior desigualdade social no mundo. A concentração de renda se agravou. As opressões contra os pobres são mais pesadas. O Capitalismo se tornou mais assassino. No entanto, fora o papa Francisco, parece que poucos bispos mantêm a mesma voz profética. É verdade que não estamos mais em época de ditadura. A sociedade civil e os movimentos sociais não precisam mais de profetas que sejam “a voz dos que não têm voz”. Entretanto, se as comunidades eclesiais e seus pastores se alienam tão profundamente da realidade social e política do povo, são as próprias Igrejas que perdem com isso. Esvaziam-se de vitalidade espiritual e credibilidade em relação à missão de testemunhar o reino de Deus, ou seja, o projeto que Deus quer para o mundo.

Nas eleições, tanto presidenciais como estaduais que teremos na próxima semana, é bom saber: além dos candidatos e candidatas que se submetem ao julgamento do voto, de certa forma é o próprio Deus que está em questão. Se alguém diz ter fé em Deus e vota em candidato que propõe a violência e o ódio como solução para os problemas sociais é porque crê em um Deus cruel e injusto. Quem vota em candidatos comprometidos com as causas dos mais pobres testemunha um Deus Amor que, na Bíblia libertou o povo antigo da escravidão dos faraós e ao qual Jesus chamou de Paizinho.  Como disse Jesus aos discípulos, precisamos ser “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5, 13- 16).

 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

 




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

ELEIÇÃO DEMOCRÁTICA DO TERROR



por Frei Betto

       Ele nada entendia da situação real do país. Nem demonstrava interesse por ela, embora atuasse ativamente na política. Por isso não gostava de ser questionado, irritava-se diante das perguntas como se fossem armas apontadas em sua direção. Não queria que a sua ignorância se tornasse explícita.

       Ser estranho, ele tinha olhos alucinados afundados nas órbitas, lábios espremidos, gestos cortantes. Todo o seu corpo era rígido, como se moldado em armadura. Ao ficar na defensiva, parecia uma fera acuada. Ao passar à ofensiva, a fera exibia garras afiadas e de suas mandíbulas pingava sangue.

       Sua fala exalava ódio, rancor, preconceito. Aliás, não falava, gritava. Não sabia sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um gesto de cortesia ou humildade. Evitava ao máximo os repórteres. Julgava suas perguntas invasivas. E temia que a sua verdadeira face antidemocrática transparecesse em suas respostas.

       Educado em fileiras militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens, enquadrar quem o cercava e ultrajar quem se opunha às suas opiniões. Jamais aceitava o contraditório ou praticava um mínimo de tolerância. Considerava-se o senhor da razão.

       A nação estava em frangalhos, mergulhada em crise ética, política e econômica, e o horizonte da esperança espelhado em trevas. Pelo país afora havia milhares de desempregados, criminalidade generalizada, corrupção em todas as instâncias de poder. O câmbio disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento era geral. O governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais fragilizado. O povo clamava por um salvador da pátria.

       Jovens desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de ouro. Era ele o cara, surfando na descrença generalizada na política e nos políticos. O Executivo se debilitara por corrupção e incompetência, o Legislativo mais parecia um ninho de ratos, o Judiciário se partidarizara submisso a interesses escusos.

       Ele se dizia cristão, e se considerava ungido por Deus para livrar o país de todos os males. Advogava soluções militares para problemas políticos. Movido pela ambição desmedida, se apresentou como candidato à eleição democrática para ocupar o mais alto posto da República, embora ostentasse a patente de simples oficial de baixo escalão do Exército.

       De sua oratória raivosa ressoava o discurso agressivo, bélico, insano. Haveria de modificar todas as leis para implantar uma ordem marcial que poria fim a todas as mazelas do país. Eleito, seria ele o comandante-em-chefe, e todos os cidadãos passariam a ser tratados como meros recrutas obrigados a cumprir estritamente as suas ordens.

       Prometia fortalecer o aparato policial e as Forças Armadas. Sua noção de justiça se resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil. Eleito, excluiria da vida social um enorme contingente de pessoas consideradas por ele sub-humanos e indesejáveis, mulheres, homossexuais, trabalhadores em luta por seus direitos e comunistas. Todos que se opunham às suas opiniões eram por ele apontados como bodes expiatórios da desgraça nacional.

       Seu mandato presidencial haveria de trazer a era de fartura e prosperidade. Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de trabalho a todos. Exaltaria os privilégios do capital sobre os direitos dos trabalhadores. Aqueles que o seguissem seriam felizes, e livres para sobrepor a lógica das armas ao espírito das leis. Os demais, excluídos sumariamente do convívio social.
       Enfim, após uma série de manobras políticas e forte repressão às forças adversárias, ele foi eleito chefe de Estado. A nação entrou um júbilo. O salvador havia descido dos céus! Ou melhor, brotado das urnas.

       Tudo isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na Alemanha alquebrada pela derrota na Primeira Grande Guerra. O nome dele era Adolfo Hitler.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O DESRESPEITO À VIDA HUMANA POR MEMBROS DA IGREJA CATÓLICA ROMANA



Por Ivone Gebara

Se a Igreja Católica Romana continuar a educar os seus fiéis através de comportamentos de choque tais como os que estão acontecendo no Rio de Janeiro em relação ao aborto, estará incentivando a franca decadência dos costumes e a violência cultural.

Já imaginaram que daqui a pouco poderemos ter estátuas de pedófilos, e talvez alguns deles vestidos de batina expressando gestos de sexo explícito com crianças. Alguém de bom senso seria capaz de pensar que essas eventuais obras de plástico, fabricadas em série, expostas nos altares ou apresentadas no rito penitencial educariam os membros da Igreja e outros a não usar as crianças para suas fantasias sexuais? Ou talvez, poderiam apresentar slides com cenas de violência doméstica focalizando nas figuras masculinas que têm mutilado centenas de mulheres anualmente no Brasil. Poderiam até carregar nas cores e focalizar especialmente as cenas de sangue derramado. Acreditariam acaso estar educando os fiéis a combater a violência contra as mulheres?

A imaginação não me falta para tentar apresentar as mais diversas cenas, analogias e associações em relação ao caso atual dos embriões, aliás, de falso tamanho, expostos nos altares de algumas igrejas do Rio de Janeiro.

Sinto tristeza e vergonha que tenhamos chegado a este ponto. Sinto tristeza e vergonha dos comportamentos retrógrados da maior parte da hierarquia católica romana que não compreendeu os gestos de vida de Jesus de Nazaré e não aprendeu dos efeitos negativos dos comportamentos fascistas e ditatoriais que a Igreja teve ao longo de sua história em relação à ciência, às diferentes culturas e às mulheres. Sinto tristeza e vergonha da insensibilidade com que se trata um problema de saúde pública e da maneira como se usam os textos bíblicos descontextualizados para justificar posturas de um grupo como se fossem posturas da Igreja.

Como entender que o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, D. Antonio Augusto Dias Duarte afirme que a imagem do feto é singela e que a Igreja tem o direito de conscientizar a população? Por que não apresenta então os retratos das milhares de mulheres que morreram por abortos mal feitos. As imagens das mulheres mortas seriam menos singelas? Seriam impuras? Seriam acaso menos conscientizadoras?

Justificar estas ações de violência cultural, acobertadas pelo lema da Campanha da Fraternidade “Escolhe, pois a Vida” é ambíguo, contraditório e até certo ponto de má fé. Supõe que a hierarquia toda poderosa da Igreja, sem acolher um consenso mínimo entre a diversidade dos fiéis, visto que não acolhe as várias pesquisas de opinião pública e nem as reflexões de muitas mulheres, é capaz de afirmar o que é o melhor para as vidas humanas. Usa de sua autoridade e privilégio para fazer valer suas posições em desrespeito a um pluralismo real, necessário e salutar. Acredita com isso defender a vida sem pensar que a vida em geral não se defende de forma geral. Cada um de nós escolhe as vidas que vai defender de forma prioritária e as formas de defendê-las. Cada um de nós tem que arcar com a dose de contradição inerente a qualquer escolha. A instituição eclesiástica não foge à regra e, portanto está faz a mesma coisa. Fica claro quem defende em primeiro lugar. Por isso, vale a pergunta: por que o embrião e não a mulher? Não estaríamos ainda vivendo no mundo dos princípios abstratos, dos mitos de pureza sem conexão com a vida real? Estas e muitas outras perguntas são convites ao pensamento diante dos problemas reais de nosso tempo.

Como a Igreja hierárquica sempre fez e continua fazendo quando seus fiéis se desviam das normas que estabeleceu, creio que, o mínimo que se poderia esperar, é que não só o bispo D. Antonio Augusto, mas também, os padres e conselhos paroquiais que acolheram sua diretiva sejam considerados cúmplices do mesmo crime de violência cultural e de desrespeito simbólico aos corpos humanos. O mínimo que a presidência da CNBB deveria fazer é alertá-los e instá-los a retirar imediatamente de suas Igrejas os embriões de plástico. Além disso, se possível, convidá-los a pedir perdão publicamente por esse ato de terrorismo religioso, especialmente contra as mulheres e as crianças.

No caso dos embriões de plástico expostos nas igrejas do Rio não se trata de respeito às opiniões da Igreja ou à autonomia de cada diocese. Dar e respeitar opiniões inclui um limite ético. Estas ações vão além desses limites. A Igreja sempre usou do direito de opinar sobre várias questões sociais e, sobretudo ultimamente. Nesse caso particular como em outros semelhantes, que têm acontecido, trata-se de uma usurpação de poder, trata-se de uma instrumentalização das consciências, trata-se de uma violência praticada, sobretudo num momento em que os fiéis se reúnem para uma celebração da memória da vida de Jesus de Nazaré. Mais uma vez o desejo de poder, de influir nas decisões do Estado, de acreditar que seus princípios e suas propostas são as melhores para a vida em sociedade fortalece uma visão retrógrada do cristianismo e uma visão contraria ao pluralismo social. Além disso, distancia a Igreja Católica Romana de um possível discipulado entre iguais e da urgência de diálogo a partir das dores concretas de corpos concretos.

O que está acontecendo é vergonhoso e totalmente ilegítimo. AGUARDAMOS MEDIDAS DAS AUTORIDADES ECLESIÁSTICAS assim como uma reação mais contundente dos FIÉIS e dos movimentos sociais. Não podemos mais aceitar que a ignorância disfarçada em fé, o autoritarismo disfarçado em serviço e a intransigência obscurantista disfarçada em educação conscientizadora tenham a última palavra nas comunidades cristãs. Em vez de usar a expressão “Escolhe, pois a vida” como álibi para manter sua luta contra o aborto terapêutico, poderiam simplesmente convidar os fiéis a respeitar as escolhas diferentes ajudando-os na construção de relações para além dos dogmatismos e sectarismos religiosos.
*Publicado na Adital – Agência Frei Tito para América Latina (http://www.adital.com.br) em 18 de março de 2008.

Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.


terça-feira, 18 de setembro de 2018

SER TÃO SERTÃO E O CERRADO BRASILEIRO




Por Marcelo Barros

O Cerrado brasileiro é o segundo maior bioma do país, sendo apenas menor do que o bioma Amazônia. Está presente em todos os estados do Centro-oeste e ainda em estados do Nordeste e do Sudeste. Entretanto, de todos os biomas brasileiros é o mais ameaçado. Dos seus originais dois milhões de quilômetros quadrados, restam apenas 20% e esses mesmos estão seriamente ameaçados de desaparecer pela invasão do agronegócio. Esse quer transformar o Brasil em um imenso campo de soja transgênica, depois de haver criado pastos mais extensos do que alguns países da Europa.

Na semana passada, os movimentos sociais e ecológicos comemoraram no 11 de setembro mais um “dia do Cerrado”. Eles reafirmaram a necessidade de que se estabeleçam na região do Cerrado programas criativos e, para essa região, de certo modo, equivalentes aos que no sertão do Nordeste se chamam de “convivência com o Semiárido”. É um modo amoroso e, podemos dizer espiritual, de se relacionar com o bioma que o respeita e dialoga com a Terra. Diz respeito ao uso da água, ao tipo de cultivo e modo de viver comunitário naquela região.

O sertão é mais do que uma característica do Semi-árido Brasileiro. Incrusta-se no coração de cada ser humano, moldado por aquelas paisagens sem fim. Evidentemente, existe a recíproca que fazia Luiz Gonzaga, com o seu vozeirão, repetir na clássica Asa Branca: Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação...”.  

A paisagem em que as pessoas nascem e se educam marca profundamente o jeito de ser e a cultura das sociedades. Dizem que os nativos das cordilheiras são preponderantemente introspectivos. E como não ser se as montanhas e os cumes mais altos os envolvem como em uma relação de intimidade? Os mineiros das montanhas das Gerais são preponderantemente cautelosos e sagazes. Os nordestinos das planícies da zona litorânea têm mais tendência a ser faladores e brincalhões. Entretanto, todos carregam em si um pedaço do sertão ou do Cerrado, escondido no próprio coração. No mais profundo do ser interior, somos todos/as atraídos/as por um sertão que não é apenas geográfico, mas espiritual. O árido do sertão ou do Cerrado aponta para um deserto que todos nós, cedo ou tarde, temos de aprender a percorrer. É no ermo silencioso, árido e austero que um Mistério nos aguarda e espreita.

No passado, as grandes tradições espirituais nasceram na aridez do deserto. No sexto ou quinto século antes de nossa era, no deserto de Gobbi, em território chinês, o sábio Confúcio formulou a sabedoria dos seus ensinamentos. Um século depois, na Índia, foi na solidão e no silêncio que Buda, o Iluminado preparou-se para a sua missão. Conforme a Bíblia, Deus “não levou o povo de Israel da escravidão do Egito à terra da liberdade por um caminho direto, mas o fez dar voltas no deserto, durante 40 anos” (Ex 13). Foi no meio do deserto que, através de um povo, Deus fez uma aliança de amor com a humanidade. Mais tarde, o profeta Elias, em crise de vocação e em perigo de vida se refugia no mesmo Horeb para um novo encontro com o Divino. E, conforme os evangelhos, Jesus de Nazaré começou sua missão por um jejum de 40 dias no deserto. Seis séculos depois, foi em meio ao deserto da Arábia que o anjo Gabriel apareceu ao profeta Maomé e ditou o livro sagrado do Corão.

Além das populações que vivem permanentemente e convivem culturalmente com o semiárido e mesmo com o deserto, há o conjunto da sociedade. Mesmo não vivendo ali, o conjunto da sociedade precisa respeitar e dialogar com os diversos biomas da Terra e da vida.

Muitas vezes, a sociedade urbana que se impõe nos distrai e desvia de nossas metas mais profundas. Atualmente, os profetas bíblicos chamariam a sedução urbana que faz com que muitos jovens do campo sonhem em viver na cidade “a tentação das cebolas do Egito”.

É preciso uma transformação no pensar e no viver. E isso é exigente. Como dizia Guimarães Rosa, no Grande Sertão, Veredas:O mais perigoso não se dá na partida, nem na chegada. O risco maior é a travessia”. Na tradição espiritual guarani da Terra sem Males, humanidade e natureza se reconciliam,  a partir da justiça amorosa que vem do Espírito. O Conselheiro retomou o grito bíblico: “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. Movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra) ajudam a juventude a redescobrir a liberdade interior e comunitária de uma sociedade nova e mais sóbria que tem o campo e a vida no interior como método e caminho.

 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

DEPOIS DO FOGO



  Por  Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Recebi de uma amiga a notícia: o Museu Nacional está pegando fogo!  Incrédula, liguei a televisão e ali estava o registro do horror, em movimento.  As chamas lambiam lascivamente a instituição científica e cultural mais antiga do Brasil e não conseguiam ser controladas pelos bombeiros.  Seu destruidor apetite deixou um saldo aterrorizante horas depois: mais de 20 milhões de peças de valor incalculável poderiam ter sido perdidas para sempre. 

            Raras vezes vi tanta lágrima, choro, desolação.  Crianças choravam, jovens, adultos e idosos. Amigos do exterior expressavam seu pesar e  dor, enviavam sentimentos e condolências.  As redes sociais anunciavam luto de tantos.  E indignação de muitos mais. O fogo consumia nossa memória, nossa história, nossa cultura. 

 Devorava a instituição científica e cultural mais antiga do Brasil. 

            Agora, depois do fogo e da perda irreparável de muitas preciosidades, fazemos balanço.  O incêndio era uma morte anunciada.  As condições em que o Museu funcionava estavam muito aquém das aceitáveis e a ameaça sobre seu acervo era permanente. Não havia infraestrutura necessária para combate a incêndios, como portas corta-fogo, detectores de fumaça e jatos automáticos de água. 

            Era domingo, era noite, e a brigada de incêndio não estava trabalhando. O fogo avançara rapidamente.  Havia, segundo informações da direção,  um projeto para reforçar a segurança do museu, mas não saíra do papel. Os atrasos devidos ao descaso com a ciência e a cultura em nosso país foram fatais.  As tragédias e os acidentes de grandes proporções não marcam hora.  Acontecem e se não forem tomadas rigorosas providências corriqueiras para evitá-los, a perda é inevitável. 

            Perdeu-se ali mais que um museu, o mais importante do país e um dos mais importantes do mundo.  Mais do que peças preciosas, sem equivalentes em qualquer lugar do planeta.  O crânio do ser humano mais antigo que já se encontrou em nossas terras: Luzia, a mulher originária da qual todos descendemos.  Perdeu-se um elo insubstituível da memória da história, da cultura e da ciência brasileiras.

            Desapareceram nas chamas igualmente registros não digitalizados de línguas nativas de povos originários que não mais existem.  Mergulhada para sempre na noite do não saber, a cultura desses povos não encontra mais oportunidade de ser reconhecida e aprendida nos tempos do hoje e do amanhã. As palavras, os cantos, os lamentos e os rituais desses povos foram reduzidos ao silêncio e calados para sempre. Sua memória mergulhou no esquecimento. 

            Pesquisas que levaram anos de vida e trabalho de cientistas e estudiosos podem ter sido irremediavelmente reduzidas a pó. Entre elas estão todos os projetos iniciados a partir da descoberta do crânio de Luzia, que lançava uma luz insuspeita sobre as possibilidades do povoamento do Brasil e da América. A América Ameríndia parecia ser, depois de Luzia, uma Proto Afro América. Tudo isso foi lido nos traços que o crânio de Luzia revelava e se tornava memória ativa e fecunda de nossas origens. 

            A memória é uma categoria inestimável para o ser humano.  Segundo o grande filósofo Martin Heidegger, a memória é o recolhimento do pensar fiel.  Ela protege e guarda consigo tudo aquilo que é importante, que faz sentido, que une e harmoniza os fatos com uma linha mestra que permite recordá-los e lê-los com a razão e o conhecimento. A memória é, pois, a condição de possibilidade da cultura, da civilização e de tudo que o ser humano conhece e constrói sobre a terra. 

            Pela memória se narra e se conta sempre de novo a história das experiências e dos feitos, do diálogo que faz nascer e confirma a identidade.  Fazendo memória, narra-se e conta-se para as novas gerações, a fim de poder testemunhar  e não deixar esquecer aquilo que fez e deve continuar fazendo a humanidade viver, sofrer, rir, pensar, falar e conhecer.  No caso do Museu Nacional, tratava-se daquilo que fazia o povo brasileiro autocompreender-se e projetar-se para além de suas fronteiras. 

            Antes do fogo, nossas crianças e jovens podiam ali encontrar muito do que na história do Brasil era conteúdo digno e justo de ser refletido e recordado. Podiam conhecer e re-conhecer passos e caminhos que o povo brasileiro dera no encalço de sua identidade.  Podiam ver descortinar-se diante de si os horizontes do futuro possível da ciência e da cultura que o acervo do Museu tornava possível em novos projetos ali gerados e gestados. 

            Depois do fogo restam as cinzas e a dor, que convivem com a esperança do que se pode resgatar, juntamente com a indignação que obriga a desejar e trabalhar para que a verdade venha à tona, negligências sejam apuradas e obscuridades  esclarecidas. Que a cultura brasileira sobreviva ao fogo.  E que a memória não nos deixe esquecer de nossa responsabilidade diante do mais precioso que temos: aquilo que somos e que nos tornamos ao longo da história que construímos. 

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
   
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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O GOLPE DE 2016 INTERROMPEU CONSTRUÇÃO DE UM BRASIL AUTÔNOMO



Por Leonardo Boff

Observador atento dos processos de transformação da economia mundial em contraponto com a brasileira, Celso Furtado, um dos nossos melhores nomes em economia política, escreveu em seu livro “Brasil: a construção interrompida”(1993):

“Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada…Não ignoramos que o tempo histórico se acelera e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação” (Paz e Terra, Rio de Janeiro 1993, p.35).

A atual sociedade brasileira, há que se reconhecer, conheceu avanços significativos sob os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e de seus aliados . Nunca ocorreu issso antes nas fases históricas hegemonizadas pelas oligarquias tradicionais que sempre detiveram o poder de Estado, nunca tiveram um projeto de nação, apenas o propósito corporativo de enriquecimento ilimitado. Agora com um Estado pós-democrático (cf;Rubens Casara) e de exceção está ocorrendo celeremente a desmontagem destas políticas aumentando o sofrimento do povo.

Estamos nos aproximando daquilo que Celso Furtado chamava de “provas cruciais”. Talvez como nunca antes em nossa história, atingimos este estágio crítico das “provas” como atualmente após o golpe de 2016. Dada a aceleração da história, impulsionada pela crise sistêmica mundial, seremos forçados a tomar uma decisão: ou aproveitamos as oportunidades reafirmando nossa soberania e garantindo nosso futuro autônomo ou as desperdiçamos e viveremos atrelados ao destino sempre decidido por eles que nos querem condenar a sermos apenas os fornecedores dos produtos in natura que lhes falta e assim voltam a nos recolonizar.

Não podemos aceitar esta estranha divisão internacional do trabalho. Temos que retomar o sonho de alguns de nossos melhores analistas do quilate de Darcy Ribeiro, Luiz Gonzaga de Souza Lima e de Celso Furtado, de Jessé Souza entre outros que propuseram uma reinvenção ou refundacão do Brasil sobre bases nossas, gestadas pelo nosso ensaio civilizatório tão enaltecido e reconhecido mundialmente.

Este desiderato foi profundamente ferido pelo golpe parlamentar que por detrás dele estão as classes dominantes internacionalizadas que tentam impor uma agenda política de um neoliberalismo radical, que lhes devolva os privilégios históricos, ameaçados pelas políticas sociais populares que tiraram da miséria e da invisibilidade milhões de brasileiros pobres.

O sonho de uma reinvenção e refundação do Brasil não pode ser perdido, nem sepultado pela voracidade destruidora dos donos do ter, do poder e do saber. Seu tempo já passou. Cresceu uma nova consciência política, especialmente, a partir dos movimentos sociais populares que se contam às centenas. Aí sempre se coloca a questão: que Brasil nós queremos (cf.L. Boff, Concluir a refundação ou prolongar a dependência, 2018)? Como vamos juntos construí-lo?

 Com que forças e aliados podemos contar para essa tarefa gigante?

Poderão elas ser coparteiras de uma cidadania nova – a cocidadania e a cidadania ecológica e terrenal – que articula o cidadão com o Estado, o cidadão com o outro cidadão, o nacional com o mundial, a cidadania brasileira com a cidadania planetária, ajudando assim a moldar o devenir humano? Ou elas se farão cúmplices daquelas forças que não estão interessadas na construção do projeto-Brasil porque se propõem inserir o Brasil no projeto-mundo globalizado de forma subalterna e dependente, com as vantagens concedidas às classes opulentas.Pois este é o projeto dos que deram o golpe parlamentar,jurídico e mediático de 2016.

A atual crise brasileira nos força a decidir não que partido apoiamos, mas de que lado estamos. A situação é urgente pois, como advertia pesaroso Celso Furtado: “tudo aponta para a inviabilização do país como projeto nacional” (op.cit. 35). Mas não queremos aceitar como fatal esta severa advertência.

Ainda há tempo, nestas eleições, para mudanças que podem reorientar o país para o seu rumo certo, especialmente agora que, com a crise ecológica, se transformou num peso decisivo da balança e do equilíbrio buscado pelo planeta Terra. Importa crer em nossa missão planetária.

Tudo está a clamar para uma refundação do Brasil sobre outras bases porque as vigentes são altamente antipovo, destrutivas das pessoas, desrespeitosas da natureza, espoliadoras dos bens públicos, violadoras da soberania nacional e negadores de um futuro melhor.

Leonardo Boff escreveu: Brasil, Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

ALERTA À CLASSE MÉDIA



Frei Betto

       A classe média é a salsicha do sanduíche da desigualdade social. Ela sobe uma rampa ensaboada: quanto mais se esforça para atingir o topo, mais escorrega para baixo. Trata-se de uma classe híbrida, com variados perfis. Há quem já tenha nascido na classe média, filho de profissionais liberais. Há os que vieram da classe assalariada ou da zona rural e ascenderam socialmente graças à escolaridade que seus pais não tiveram. Há ainda quem se refira nostalgicamente à fazenda ou à casa espaçosa dos avós, gente outrora abastada, cujos netos agora moram em apartamentos e ganham menos do que gostariam.

       A classe média ascendente é mais conservadora. Sonha atingir o cume da pirâmide social. Regozija-se por haver trocado a carteira de trabalho assinada pelo negócio próprio e a periferia sem saneamento pela rua asfaltada.

       Para esse setor da classe média, a solução para a criminalidade se resume em mais polícias e mais cadeias. Não duvida de que o noticiário da TV fala sempre a verdade. E se sente confortável por possuir carro, celular e computador, ainda que more de aluguel e viva endividado.

       A classe média descendente é filha ou neta de uma estirpe que, no passado, teve baixelas de prata, taças de cristal e empregadas dia e noite. É sofrido para quem já foi rei perder a majestade. Por ter meia dúzia de amigos ricos e boa escolaridade, esse setor vive a ilusão de estar muito próximo de ser aceito no seleto clube da elite, embora tenha consciência de que lhe falta o essencial – capital.

       Já a classe média média oscila entre o conservadorismo e o progressismo. Os avós são conservadores, cultivam o “American way of life”, enquanto os netos exibem camisetas com a estampa de Che Guevara e votam em candidatos de esquerda.

       Entre todos os segmentos da classe média há algo em comum: ai dos filhos jovens se os pais não os socorressem com periódicas ajudas financeiras! Se os avós tiveram empregos bem remunerados, e os filhos  alcançaram a época em que ainda era viável fazer poupança, agora os netos estão longe de poder alçar voo próprio. São dependentes familiares. Se não estão desempregados, ganham muito menos do que a geração anterior ao desempenhar as mesmas funções. E sabem que o futuro não é nada alentador...

       Não é mesmo. O avanço tecnocientífico engole, cada vez mais, os postos de trabalho. A maioria dos candidatos a um deles não preenche os requisitos mínimos: não é capaz de redigir uma carta, não tem leitura, não domina um idioma estrangeiro, tem baixo nível de cultura geral.

       Qual o futuro dessa nova geração? No atual modelo de sociedade consumista, nenhum, exceto para um em cada mil. O sistema vigente é intrinsecamente seletivo e excludente.

       A saída seria um modelo pós-capitalista baseado na redução da desigualdade social e na preservação do meio ambiente, ancorado na sustentabilidade, como propõem Thomas Piketty (“O capitalismo no século XXI”), e Glen Weyl e Eric Posner (“Desenraizando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa”). Ou uma sociedade socialista capaz de compatibilizar liberdade individual e justiça social, propriedade estatal e capital privado.

       Enquanto não se alcança o ideal, a única solução em curto prazo são políticas sociais centradas na seguridade e na inclusão, e o Estado como indutor do desenvolvimento que prioriza o trabalho, não o capital.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
       
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