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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

ESTÃO SE ACABANDO RECURSOS NA DISPENSA DA CASA COMUM

Por Leonardo Boff



        A Terra é um planeta pequeno, velho, com a idade de 4,44 bilhões de anos, com 6.400 km de raio e 40.000 km de circunferência. Há 3,8 bilhões de anos surgiu nele todo tipo de vida e há cerca 7 milhões, um ser consciente e inteligente, altamente ativo e ameaçador: o ser humano. O preocupante é o fato de que a Terra já não possui reservas suficientes em sua dispensa para fornecer alimentos e água para seus habitantes. Sua biocapacidade está se enfraquecendo dia a dia.

O dia 13 de agosto foi o Dia da Sobrecarga da Terra (Earth Overshooting Day). É o que nos informou a Rede da Pegada Global (Global Footprint Network) que, junto com outras instituições como a WWF e o Living Planet acompanham sistematicamente o estado da Terra. A pegada ecológica humana (quanto de bens e serviços precisamos para viver) foi ultrapassada. As reservas da Terra se estão se esgotando e precisamos de 1,6 planeta para atender nossas necessidades sem ainda aquelas da grande comunidade de vida (fauna, flora, micro-organismos). Em palavras de nosso cotidiano: nosso cartão de crédito entrou no vermelho.

Até 1961 precisávamos apenas de 63% da Terra para atender as nossas demandas. Com o aumento da população e do consumo já em 1975 necessitávamos 97% da Terra. Em 1980 exigíamos 100,6%, a primeira Sobrecarga da pegada ecológica planetária. Em 2005 já atingíamos a cifra de 1,4 planeta. E atualmente em agosto de 2015 1,6 planeta.

Se hipoteticamente quiséssemos, dizem-nos biólogos e cosmólogos, universalizar o tipo de consumo que os países opulentos desfrutam, seriam necessários 5 planetas iguais ao atual, o que é absolutamente impossível além de irracional (cf. R. Barbault,Ecologia geral, 2011, p.418).

Para completar a análise cumpre referir a pesquisa feita por 18 cientistas sobre “Os limites planetários: um guia para o desenvolvimento humano num planeta em mutação” publicada na prestigiosa revista Science de janeiro de 2015 (bom resumo em IHU de 09/02/2015). Aí se elencam 9 fronteiras que não podem ser violadas, caso contrário, colocamos sob risco as bases da vida no planeta (mudanças climáticas; extinção de espécies; diminuição da camada de ozônio; acidificação dos oceanos; erosão dos ciclos de fósforo e nitrogênio; abusos no uso da terra como desmatamentos; escassez de água doce; concentração de partículas microscópicas na atmosfera que afetam o clima e os organismos vivos; introdução de novos elementos radioativos, nanomateriais, micro-plásticos).

Quatro das 9 fronteiras foram ultrapassadas mas duas delas – a mudança climática e a extinção das espécies – que são fronteiras fundamentais, podem levar a civilização a um colapso. Foi o que concluíram os 18 cientistas.

Tal dado coloca em xeque o modelo vigente de análise da economia da sociedade mundial e nacional, medida pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Este implica uma profunda intervenção nos ritmos da natureza e a exploração dos bens e serviços dos ecossistemas em vista da acumulação e com isso do aumento do PIB. Este modelo é uma falácia pois não considera o tremendo estresse a que submete todos os serviços ecossistêmicos globais que garantem a continuidade da vida e de nossa civilização. De forma irresponsável e irracional considera tal fato, com suas graves consequências, como “externalidades”, vale dizer, fatores que não entram na contabilidade nacional e internacional das empresas.

E assim gaiamente vamos ao encontro de um abismo que se abre logo aí à nossa frente. Curiosamente, nas discussões sobre temas econômicos que se organizam semanalmente nas TVs ( por exemplo, o Painel da Globonews, aos sábados e domingos) nunca ou quase nunca se faz referência aos limites ecosistêmicos da Terra. Com raras exceções, os economistas parecem cegos e cegados pelas cifras do PIB, reféns de um paradigma velho e reducionista de analisar a economia concreta que temos. Se todas as fronteiras forem violadas, como tudo parece indicar, que acontecerá com a Terra viva e a Humanidade? Temos que mudar nossos hábitos de consumo, as formas de produção e de distribuição como não se cansa de repisar o Papa Francisco e ausente nos analistas de O Globo que sequer fazem uma referência a um tema tão fundamental. Mal imaginam que podemos conhecer um “armagedom” ecológico-social sem precedentes.

Imaginemos o planeta Terra como uma avião de carreira. Possui limites de alimentos, de água e de combustível. 1% viaja na primeira classe; 5% na executiva e os 95% na classe econômica ou junto às baguagens num frio aterrador. Chega um momento em que todos os recursos se esgotam. O avião fatalmente se precipita, vitimando todos e de todas classes.

Queremos este destino para a nossa única Casa Comum e para nós mesmos? Não temos alternativa: ou mudamos nossos hábitos ou lentamente definharemos como os habitantes da ilha de Páscoa até restarem apenas alguns representantes, talvez invejando quem morreu antes. Efetivamente, não fomos chamados à existência para conhecermos um fim tão trágico. Seguramente “o Senhor, soberano amante da vida” (Sab 11,26) não o permitirá. Não será por um milagre mas pela nossa mudança de hábitos e pela cooperação de todos.

Leonardo Boff escreveu Proteger a Terra-cuidar da vida: como escapar do fim do mundo, Record, Rio 2010.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

VER, OLHAR, CONTEMPLAR

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 




De todos os sentidos, talvez o da visão seja o mais ambíguo e arriscado.  O que mais engana, o que mais finge efeitos especiais que não são reais.  E, no entanto, trata-se de um sentido fundamental, o veículo da luz para o corpo e para a vida inteira.  O que seríamos sem os olhos, sem o olhar, sem a capacidade de perceber a beleza, as cores, os seres vivos?

A Bíblia fala sabia e belamente da importância deste sentido.  O desejo mais profundo do ser humano, segundo os textos bíblicos, é “ver a Deus”.  O salmista suspira por essa visão e geme porque ela tarda: “Quando irei ao encontro de Deus e verei tua face, Senhor?” Ver a face do Senhor é abismar-se na contemplação de uma beleza que não tem fim, de um mistério que é dinamismo que impulsiona a vida, e ao mesmo tempo aconchego que a protege e cultiva, alimenta, nutre e acalanta. 

Em meio a uma vida fragmentada e ameaçada, com a morte como horizonte obrigatório e temido, o ser humano anseia por essa visão que não terá fim.  A fé, que é um caminhar ainda sem ver, incute no ser humano a certeza a respeito do que ele não vê e o faz prosseguir no caminho, mesmo sem enxergar.  Por isso a Bíblia tanto valoriza a escuta, que permite andar sem ver, e crer sem vislumbrar o objeto de Amor que o coração deseja e por cuja visão anseia. Por isso igualmente o ver é tão posto sob suspeita na Escritura, uma vez que ele sozinho, desvinculado de uma escuta obediente e atenta, pode conduzir ao caminho desviado da idolatria e das imagens enganosas.
Para nós que vivemos em uma cultura da imagem, esses matizes bíblicos sobre a importância do olhar, do ver, do contemplar podem ser de grande valia.  Vivemos acossados de todos os lados por imagens que procuram invadir, sem ser convidadas, nossos sentidos e deles apossar-se.  Em todo o decurso do dia, somos instados a olhar, ver coisas, objetos, luzes, que nos despertam sensações, desejos e dinamizam todas as dimensões de nosso ser.

É tanto a olhar que muitas vezes não se consegue ver.  Sim, parece sem sentido, mas é isso mesmo que se quer dizer.  Perdidos em meio a uma abundância de estímulos visuais, poluídos pela superabundância de imagens, corremos o sério risco de não mais ver, enxergar, o que é mais importante.  Não ver o que se encontra para além do imediatamente visível, não ver a identidade mais profunda, não ver o sentimento exposto, a alma em carne viva, o sonho machucado.  Não ver o verdadeiro rosto do outro, da outra e permanecer apenas em sua aparência.

A experiência humana de olhar não se transforma em ver realmente se não consegue atravessar a floresta de imagens que se oferecem sem cessar a nossas retinas e aportar naquilo – ou melhor dito – naquele ou naquela que é digno de ser visto.  É então que fazemos a passagem do olhar e do ver para o contemplar.  É neste momento que nossos olhos deixam de ser simplesmente um sentido biológico e corpóreo, para ser um sentido espiritual, transcendente.

Os antigos olhavam o universo e viam nele a presença de deuses, semideuses, divindades várias que povoavam cada astro, cada planta, cada animal e a tudo dava sentido.  A modernidade trouxe consigo o desencantamento deste mundo que desde muito tempo a humanidade concebeu como povoado de deuses.  Chamou as coisas por nomes racionais, proclamou em alto e bom som que estávamos sozinhos, entregues à realidade de nossa condição humana, finita e mortal.
A partir daí, nos foi dito e ensinado que não havia mais que gastar tempo buscando olhar para além das coisas visíveis a fim de experimentar o Misterioso, o Invisível.  Mais valia permanecer no visível, no alcançável, no tangível, para não se iludir, não se enganar, não se transviar. E neste vazio o enlouquecimento da imagem, a sociedade do espetáculo penetrou e nos fez seus reféns.

Hoje, ensinados pela implacável racionalidade moderna, mas também mais lúcidos sobre seus limites e patologias, procuramos com grande esforço redescobrir a contemplação.  E sentimos que é necessário reeducar nosso olhar, para que então possamos ver um mundo re-encantado, grávido, prenhe de beleza, de presença, de sentido. Entramos em um segundo noviciado para reaprender a ser contemplativos.
E nesse aprendizado experimentamos, como o grande Agostinho de Hipona, que Aquele que de Si mesmo disse ser a Luz do mundo, relampejou e afugentou nossa cegueira. E capacitou-nos, então, a ver a beleza do mundo em sua abundante generosidade, mas também em seus signos invertidos.  É bom não esquecer e ter olhos para ver que o mais belo dos filhos dos homens não tinha graça nem beleza que pudesse atrair os humanos olhares, porque fora reduzido a nada pelo amor.  A única beleza digna de contemplação, digna do olhar re-encantado pela contemplação, é o amor.

  Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do departamento de teologia da PUC-Rio,  teóloga e é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
   Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

QUALIDADES DE FÉ


Por Frei Betto

      A fé é a adesão da inteligência ao mistério, a algo ou alguém que se pode sentir sem, no entanto, provar. Não é irracional, é suprarracional.

      Em toda relação amorosa a fé é o vínculo que une. Não há equação que convença João de que seu amor por Maria é cientificamente equivocado. Ou vice-versa. Um confia (com fé) no outro.

      Marx, Freud e tantos pensadores tentaram nos convencer de que a fé é uma ilusão ou alienação. Projeta-se no Céu o que se desejaria desfrutar na Terra. Nenhum dos dois conheceu a fé libertadora manifestada, hoje, pelo papa Francisco.

      O Iluminismo confinou as convicções na razão e, assim, desencantou o mundo, como frisou Max Weber. “A razão é a imperfeição da inteligência”, proclamava meu confrade Tomás de Aquino.

      Há muitas qualidades de fé. Paulo Patarra, militante comunista e meu chefe na revista Realidade, se queixava de que Deus não o havia provido de fé. Professava o salmo às avessas.

      Alberto Schweitzer, ao duvidar da divindade de Jesus, abraçou radicalmente a ética do Nazareno e abandonou a filosofia, a teologia e a música para cuidar, na África, de doentes pobres.

      Jung, na contramão de Freud, afirmava “não preciso acreditar. Eu sei.” Ecoou a profissão de fé de Jó, o mais enigmático crente de toda a Bíblia: “Antes eu só te conhecia de ouvir falar, mas agora  meus olhos te viram.”

      Jó foi desafiado a mostrar sua fé em um Deus que o privava do que ele mais amava. Mergulhou na “noite escura”, mais tarde cantada por João da Cruz. E confiou (com fé), até que a aurora irrompeu.

      O amálgama entre Ocidente e Cristianismo banalizou a opção de fé. Rara a Igreja que proporciona a seus fiéis educação da fé conforme as idades infantil, jovem e adulta. Muitos cristãos adultos vestem a calça curta da fé. Guardam a mesma fé da catequese infantil.

      Outros abdicam do senso crítico para aderir, como cordeiros a serem tosquiados, à palavra do bispo ou pastor. Confundem autoridade e verdade.

      É triste constatar que muitos políticos corruptos, e profissionais indiferentes aos direitos dos pobres, são ex-alunos de colégios e Universidades católicos. É de se perguntar: escolas confessionais ou meras empresas de formação de mão de obra qualificada para o mercado? Qual a qualidade da evangelização feita por instituições cristãs?

      Fé em Jesus é fácil. Embora poucos se interessem em estudar os Evangelhos e o contexto em que viveu Jesus para melhor entender a sua proposta.

      O desafio é ter a fé de Jesus. Fé que identificava Deus como Pai amoroso, reconhecia-O na face dos pobres, denunciava fundamentalistas e opressores, centralizava-se na justiça e no amor.
      Será que nós, cristãos, cremos no mesmo Deus de Jesus?

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano – um novo olhar sobre Jesus” (Fontanar), entre outros livros.
       
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

RELIGIÕES EM MARCHA RÉ RUMO À TOLERÂNCIA ZERO?




por Rejane Menezes



Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.”  João 13:34,35

Nos últimos tempos diversas declarações de políticos ligados à bancada religiosa cristã ou mesmo de representantes de algumas religiões têm causado espanto , indignação e questionamentos, por parte de uma boa parcela da população.

E isso se dá diante do fato dessas declarações irem de encontro ao princípio maior que rege o cristianismo: o amor ao próximo.
Nos últimos tempos a intolerância tem sido levantada qual bandeira, como se fosse uma coisa bonita, uma coisa saudável. Preconceito racial, social, religioso e de gênero é a bola da vez, defendida por uns e aplaudida por outros que, sem noção da gravidade do que estão apoiando, vão ajudando a disseminar o ódio, deixando de lado os ensinamentos do cristianismo como a solidariedade e a caridade. Caridade não apenas no sentido de ajuda financeira, mas caridade cristã, que acolhe o próximo independentemente de sua cor, de sua raça, de sua opção sexual, de sua profissão ou religião. E, agora, devemos acrescentar mais uma intolerância ao rol tradicional: a intolerância política, onde, “quem não pensa como eu, está contra mim.”

                                               

"Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?"
"Aquele que teve misericórdia dele", respondeu o perito na lei. Jesus lhe disse: "Vá e faça o mesmo". (Conferir a Parábola do Bom Samaritano, Lucas 10, 30-37)

A mensagem de Jesus Cristo está muito clara, sempre. Nesta parábola está claro como água que o que importa é a maneira de agir da pessoa e não crença que professa se ela não ajuda a ser uma pessoa melhor.

Confesso que acho estranho quando autoridades religiosas convocam os fiéis a se oporem às discussões em questões relacionadas à ideologia de gênero, quando, em minha opinião, as Religiões  deveriam estar preocupadas em combater problemas internos como a pedofilia ou o desvio do dinheiro dos dizimistas para os bolsos dos fundadores. Claro que esses problemas não existem em todas as denominações religiosas, vale ressaltar. A generalização é sempre injusta e perigosa.

Mas, problemas de enriquecimento às custas dos dizimistas é fato público, está na imprensa e a pedofilia é uma triste realidade, também comprovada publicamente.

Sim, porque me parece que a grande questão moral do Brasil hoje não tem nada a ver com sexualidade, religião, raça, classe social ou cor. O grande mal do Brasil hoje se chama corrupção. Isso é unânime. E está entranhada em qualquer DNA. Embora, estranhamente, tenham muitos corruptos levantando bandeiras contra a corrupção. Talvez porque o bolo esteja muito dividido... 

Enfim, se esse é o maior problema do país, porque não é esse o tema das discussões e das preocupações das pessoas que, publicamente, representam denominações religiosas?

Que tal se fosse feita uma estatística para ver quantos homossexuais existem entre todos os acusados até agora de corrupção? Garanto que o percentual seria pequeno em relação aos heterossexuais. Mas, e daí? Bem, pelo menos poderíamos chegar a conclusão que a homossexualidade não é a causa da corrupção. Se não é, então porque  tanta preocupação com o fato da pessoa ser homossexual se, na verdade, não causa nenhum dano à sociedade ou ao país?

Está na bíblia, em Isaías 32, 17:

 “A paz é fruto da justiça”.

Ora, não seria então função do cristianismo promover a paz, já que seu mestre maior, Jesus Cristo, é o grande promotor da paz?

As Igrejas deveriam estar promovendo debates sobre o que pode ser feito para acabar com a corrupção, como punir quem está prejudicando o país, como fazer o dinheiro desviado ser devolvido e garantir que seja empregado em projetos que promovam a justiça social. Entretanto, se uma parcela de uma denominação religiosa promove esse tipo de discussão é chamada de comunista, como se fosse um xingamento. E aí, mais um retrocesso. Mas isso é antigo:

"Quando dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Mas quando eu pergunto por que os pobres não tem pão? Eles me chamam de comunista e subversivo." (Dom Helder Camara)

Em lugar das Igrejas ou seus integrantes que têm acesso aos meios de comunicação e tribunas, estarem preocupados em combater a homossexualidade ou outras denominações como o Candomblé, por que não cobram do Ministério da Educação que seja inclusa na grade escolar uma disciplina chamada HONESTIDADE?

Essa deveria ser a grande discussão hoje no Brasil: como formar cidadãos, honestos, que não pratiquem nenhum tipo de corrupção? Como formar cidadãos que respeitem as vagas dos deficientes e idosos, que respeitem as leis de trânsito, que em lugar de beber e se informar onde estão as blitz, não beba quando estiver dirigindo?
Como formar cidadãos que paguem seus impostos e que, ao ocuparem cargos públicos, usem o dinheiro público para o real fim ao qual é destinado?

Como formar cidadãos que se tornem políticos porque estão preocupados com o bem da população e não com o seu próprio?

Essas são questões que as Igrejas deveriam estar preocupadas e não com o fato das mulheres serem submissas aos maridos ou se as crianças serão heterossexuais ou homossexuais. Minha gente a nossa preocupação deve ser se as nossas crianças, quando crescerem, diante de tantos maus exemplos, às vezes dentro das próprias casas, serão pessoas íntegras.

Bem, eu fui criada ouvindo de meus pais que “honestidade não é virtude, é obrigação”. Criei minhas filhas dessa forma. Ultimamente ser honesto passou a ser sinônimo de ser otário. As pessoas se vangloriavam da “Lei de Gérson”, de levar vantagem em tudo. Não na minha família. Sempre combatemos esse tipo de coisa. E sempre havia quem risse de nós. Hoje, as vantagens conseguidas não estão mais sendo exaltadas, estão camufladas. Porque não pega bem, combater a corrupção e, ao mesmo tempo, praticá-la.

Então, o problema está na formação, no exemplo, no que é mostrado às crianças, no dia a dia. Se algumas não terão a oportunidade, em suas famílias, de saber o que significa ser honesto, que pelo menos as Igrejas e as Escolas lhe deem essa oportunidade. A oportunidade de saber a diferença entre ser um cidadão e ser mais um, que, com suas ações, ou com a falta delas, nega, à maioria da população, o direito de ser cidadão.

Sou cristã, católica, mas não concordo com essa ala intolerante, que condena, que persegue, que não acolhe. Esses não me representam. Sou da outra da ala. Da ala de Dom Helder, do Papa Francisco, Frei Betto, Marcelo Barros, Leonardo Boff, Ivone Gebara e tantos outros. Sou da ala de Jesus Cristo.

 E aí, lanço aqui a minha bandeira: Intolerância, estou fora.


terça-feira, 25 de agosto de 2015

CARTA DE SANTA CRUZ

Por Marcelo Barros



Para enfrentar os grandes problemas ecológicos e para superar o modelo de organização social que joga as pessoas umas contra as outras, os povos da terra precisam se unir para além dos nacionalismos e de quaisquer ideologias que os dividam. Para isso, é importante que os movimentos sociais e as comunidades de todas as tradições espirituais se unam em um grande mutirão pela construção da paz e da unidade. Essa foi uma das afirmações centrais do Documento final do encontro de movimentos sociais de todo o mundo, reunidos em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, em julho desse ano. Eram mais de 1500 representantes de grupos, organizações e movimentos sociais. Pela segunda vez, foram convocados pelo papa Francisco. Ele os acolheu, recebeu o manifesto votado pelos participantes e os confirmou na missão de reunir a humanidade para um caminho novo de unidade, paz e justiça eco-social.

No final do encontro, a assembleia votou em um documento, chamado “Carta de Santa Cruz”. Nesse texto, todos concordam com o papa que “as problemáticas social e ambiental emergem como duas faces da mesma moeda” e retomam as palavras do papa ao afirmar: “Um sistema incapaz de garantir terra, trabalho e teto para todos, um sistema que destrói a paz entre as pessoas e ameaça a própria subsistência da Mãe Terra, não pode continuar a reger o destino do planeta”.  Por isso, os representantes dos movimentos sociais ali reunidos afirmam: “Devemos superar um modelo social, econômico e cultural onde o mercado e o dinheiro se converteram nos reguladores das relações humanas em todos os níveis”. Para isso, se comprometem a lutar pacificamente de todos os modos para “impulsionar e aprofundar o processo de mudanças”, “viver bem, em harmonia com a Mãe Terra”, “defender a dignidade do trabalho”, “apoiar o direito humano de todos a uma moradia digna, construir uma verdadeira soberania alimentar que supere a fome e a desnutrição, rejeitar o consumismo e, acima de tudo, defender a solidariedade como projeto de vida”.

O papa respondeu reafirmando que os movimentos sociais têm uma importância fundamental na transformação do mundo. Pediu que as Igrejas cristãs se coloquem em diálogo e junto com eles na construção do projeto divino da paz e da justiça na terra. Embora o papa saiba que não é essa a visão que a maioria dos bispos, padres e pastores têm sobre a missão da Igreja, lembra os evangelhos e o testemunho de Jesus. Insiste que a Igreja deve voltar-se para o mundo e ser uma “Igreja em saída de si mesma”. Há 50 anos, o Concílio Vaticano II promulgou a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. Nela, os bispos católicos de todo o mundo afirmaram que “as alegrias e esperanças, tristezas e dores de toda a humanidade são as alegrias e esperanças, tristezas e dores que a Igreja deve viver”. A partir dali, surgiram as pastorais sociais e a decisão de colocar a Igreja “a serviço das causas mais urgentes e fundamentais da libertação de todos os povos e de cada pessoa humana” (Medellin 5, 15).

Ao completar 50 anos desse documento, o papa Francisco convida a Igreja Católica a entrar em um “ano da misericórdia”, compreendida como a solidariedade divina, no cuidado permanente com a terra e com toda a humanidade. 

No Brasil atual, muitos dos mais importantes meios de comunicação social insistem em apresentar a realidade do país como um desastre total e como um fracasso sem saída. Quem tem consciência social sabe que a verdade não é essa. Enfrentamos muitos problemas e as soluções não virão dos palácios. Nem podemos confiar no Congresso, dominado por figuras que estão ali, não para representar o povo e sim para defender interesses corporativos, seus e das empresas que financiaram suas candidaturas. Na Bolívia, o papa afirmou aos movimentos sociais: “Sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, vemos que se impõem aos governos medidas que nada têm a ver com a resolução dos problemas e muitas vezes tornam as coisas ainda piores”.

Nossa esperança só poderá vir das organizações sociais de base e das lutas pacíficas que esses grupos farão para transformar a sociedade. É tarefa de todos os cidadãos e cidadãs apoiar essas lutas e participar desse processo de transformação. As pessoas que creem fazem isso como sinal de que Deus tem para o mundo um projeto de paz, justiça e comunhão com a natureza e é nossa missão fazer tudo para esse projeto aconteça. Diariamente, os cristãos oram ao Pai: “venha a nós o teu reino”.   


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

COMO CUIDAR DE NOSSA CASA COMUM

Por Leonardo Boff



Hoje para cuidar da Terra como nos sugeriu detalhamete o Papa Francisco em sua encíclica “Cuidado da Casa Comum” exige-se “uma conversão ecológica global”, “mudanças profundas nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder”(n.5). Esse propósito jamais será alcançado senão amarmos efetivamente a Terra como nossa Mãe e soubermos renunciar e até sofrer para garantir sua vitalidade para nós e para toda a comunidade de vida (n.223). A Mãe Terra é a base que tudo sustenta e alimenta. Nós não podemos viver sem ela. A sistemática agressão que sofreu nos últimos séculos tiraram-lhe o equilíbrio necessário. Eventualmente, poderá continuar pelos séculos afora, mas sem nós.

No dia 13 de agosto deste ano de 2015 ocorreu o Dia da Sobrecarga da Terra (The Earth Overshoot Day), dia em que se constatou a ultrapassagem da biocapacidade da Terra em atender as demandas humanas. Precisa-se de 1,6 planeta para atendê-las. Em outras palavras. Isso demonstra que o nosso estilo de vida é insustentável. Nesse cálculo não estão incluidas as demandas da inteira comunidade de vida. Isso torna mais urgente a nossa responsabilidade pelo futuro da Terra, de nossos companheiros de caminhada terrenal e de nosso projeto planetário.

Como cuidar da Terra? Em primeiro lugar há que considerar a Terra como um Todo vivo, sistêmico no qual todas as partes se encontram interdependentes e interrelacionadas. A Terra-Gaia fundamentalmente é constituída pelo conjunto de seus ecossistemas e com a imensa biosdiversdade que neles existe e com todos os seres animados e inertes que coexistem e sempre se interrelacionam como não se cansa de afirmar o texto papal, bem na linha do novo paradigma ecológico.

Cuidar da Terra como um todo orgânico é manter as condições pré-existentes há milhões e milhões de anos que propiciam a continuidade da Terra, um super Ente vivo, Gaia. Cuidar de cada ecosistema é compreender as singularidades de cada um, sua resiliência, sua capacidade de reprodução e de manter as relações de colaboração e mutualidade com todos os demais já que tudo é relacionado e includente. Compreender o ecossistema é dar-se conta dos desequilíbrios que podem ocorrer por interferências irresponsáveis de nossa cultura, voraz de bens e serviços.

Cuidar da Terra é principalmente cuidar de sua integridade e vitalidade. É não permitir que biomas inteiros ou toda uma vasta região seja desmatada e assim se degrade, alterando o regime das chuvas. Importante é assegurar a integridade de toda a sua biocapacidade. Isso vale não apenas para os seres orgânicos vivos e visíveis, mas principalmente para os microorganismos. Na verdade, são eles os ignotos trabalhadores que sustentam a vida do Planeta. Diz-nos o eminente biólogo Edward Wilson que “num só grama de terra, ou seja, menos de um punhado de chão, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a até 6 mil espécies diferentes”(A criação, 2008,p.26). Por aí se demonstra, empiricamente, que a Terra está viva e é realmente Gaia, superorganismo vivente e nós, a porção consciente e inteligente dela.

Cuidar da Terra é cuidar dos “commons”, quer dizer, dos bens e serviços comuns que ela gratuitamente oferece a todos os seres vivos como água, nutrientes, ar, sementes, fibras, climas etc. Estes bens comuns, exatamente por serem comuns, não podem ser privatizados e entrar como mercadorias no sistema de negócios como está ocorrendo velozmente em todas as partes. A Avaliação Ecosistêmica do Milênio, inventário pedido pela ONU de uns anos atrás, no qual participaram 1.360 especialistas de 95 países e revisados por outros 800 cientistas trouxeram resultados amedrontadores. Entre os 24 serviços ambientais, essenciais para a vida, como água, ar limpo, climas regulados, sementes, alimentos, energia, solos, nutrientes e outros, 15 estavam altamente degradados. Isto sinaliza claramente que as bases que sustentama vida estão ameaçadas.

De ano para ano, todos os indices estão piorando. Não sabemos quando esse processo destrutivo vai parar ou se transformar numa catástrofe. Havendo uma inflexão decisiva como o temido “aquecimento abrupto”, que faria o clima subir entre 4-6 graus Celsius, como advertiu a comunidade científica norte-americana, conheceríamos dizimações apocalípticas afetando milhões de pessoas. Temos confiança de que iremos ainda despertar. Mais que tudo cremos que “Deus é o Senhor soberano amante da vida”(Sb 11,26) e não deixará acontecer semelhante Armagedom.

Cuidar da Terra é cuidar de sua beleza, de suas paisagens, do esplendor de suas florestas, do encanto de suas flores, da diversidade exuberante de seres vivos da fauna e flora.

Cuidar da Terra é cuidar de sua melhor produção que somos nós seres humanos, homens e mulheres especialmente os mais vulneráveis. Cuidar da Terra é cuidar daquilo que ela através de nosso gênio produziu em culturas tão diversas, em línguas tão numerosas, em arte, em ciência, em religião, em bens culturais especialmente em espiritualidade e religiosiadade pelas quais nos damos conta da presença da Suprema Realidade que subjaz a todos os seres e nos carrega na palma de sua mão.

Cuidar da Terra é cuidar dos sonhos que ela suscita em nós, de cujo material nascem os santos, os sábios, os artistas, as pessoas que se orientam pela luz e tudo o que de sagrado e amoroso emegiu na história.

Cuidar da Terra é, finalmente, cuidar do Sagrado que arde em nós e que nos convence de que é melhor abraçar o outro do que rejeitá-lo e que a vida vale mais que todas as riquezas deste mundo. Então ela será de fato a Casa Comum do Ser.


Leonardo Boff é colunista do Jornal do Brasil on Line e ecoteólogo. É autor do livro Saber Cuidar.

sábado, 22 de agosto de 2015

BOAS VINDAS AO MONSENHOR ALBÉRICO

 por Rejane Menenezes


Nesta quinta-feira tive a grata surpresa de encontrar um velho e querido amigo, que não via há mais de um ano: Monsenhor Albérico Almeida.  Foi uma grande alegria vê-lo de volta ao Recife.

Nos encontramos no programa NOSSA MANHÃ, na Rádio Olinda, para participarmos de um debate sobre DOM HELDER – O DOM DA PAZ, a convite do jornalista Ivanildo Silva  (Conferir Jornalistas.Com).


Há 15 anos Mons. Iniciou o mestrado na Universidade Pontifícia de Salamanca. Entretanto não chegou a concluir a tese e voltou ao Brasil sem concluir o curso.

No ano passado decidiu terminar o mestrado, tendo solicitado ao arcebispo, Dom Fernando Saburido, um ano sabático para se dedicar à sua tese. Morou em Madri e ficou na mesma paróquia que há 15 anos.

Depois de tanto tempo foi necessária a revalidação de algumas disciplinas e, por fim, tendo como base as cartas conciliares e interconciliares escritas por Dom Helder, a tese foi concluída e apresentada, tendo como tema : Dom Helder Camara, do sonho à realidade.  Mons. Albérico procurou mostrar a Igreja sonhada pelo Dom e o seu empenho em implantar essa Igreja, revivida no Concílio Vaticano II.

Ao retornar  à Arquidiocese de Olinda e Recife Mons. Albérico foi designado Vigário Episcopal de Olinda, Cura da Catedral da Sé e pároco da igreja de São Pedro Mártir.

Seja muito bem vindo Monsenhor Albérico. Com certeza os paroquianos da Igreja da Pracinha estão sentindo muito a sua falta. A alegria agora está com seus novos paroquianos. Esse é o ciclo da vida, enquanto uns se entristecem outros se alegram. Viva a vida.



sexta-feira, 21 de agosto de 2015

OUVIDO: ÓRGÃO SIGNIFICANTE DA IDENTIDADE HUMANA

por Maria Clara Lucchetti Bingemer 


Talvez o ouvido seja o órgão que mais se encontra em crise de uso hoje em dia.  É tanto ruído, tanto barulho, tanta diversidade de sons que é difícil ouvir o outro.  Ou ouvir a beleza que se esconde nas dobradiças do universo.  Ou ouvir os lamentos dos pobres que carregam às costas um pesado cotidiano.  Ou ouvir a alegria inocente das crianças que brincam.

Os psicanalistas são pagos para ouvir.  Os padres não.  Mas nem por isso deixam de ouvir, nos confessionários, as misérias e angústias de tantos e tantas. Dali saem os fiéis para cumprir a penitência que lhes foi determinada e, assim, fechar o ciclo do perdão e recomeçar. 

O fato de se ter que buscar um especialista – cientista ou religioso – para ser ouvido dá bem uma dimensão de como o ouvir anda em crise e como é precária a escuta em nossa sociedade de muito falar e prestar atenção.

No entanto, é com a escuta que tudo começou.  O povo da Bíblia sempre experimentou a presença do Eterno como Palavra. Palavra que desde o silêncio sem começo foi livremente pronunciada no tempo e na história, penetrou os ouvidos humanos e fez cair os véus que velavam aos olhos interiores o dinamismo existencial sobrenatural que os habitava.

Nos primórdios da Revelação ao povo de Israel, os homens e mulheres que captaram e falaram sobre essa revelação identificaram Deus como Palavra. Palavra que rompe o silêncio e fala. Porém, para que a essa conclusão se chegasse, a essa metáfora para falar do Indizível e Inefável, foi necessário que existisse um ouvinte, homem ou mulher, que ouviu, ouve e fala sobre aquilo que ouviu.

A linguagem humana, à medida que toma consciência de si mesma, percebe que fala do que lhe foi dado, fala do que ouviu, do que recebeu, do que acolheu do dom primordial, do mistério indecifrável e inefável que é fonte de tudo e de todos e está na origem sem origem que foi caos e agora é cosmos.

Se físicos e cientistas se debatem com a pergunta sobre o porquê de existir algo em vez de nada, o poeta e o crente, pelo contrário, em sua inspiração, “sabem”, já que o apalpam em sua povoada ignorância que o fazem dizer o que não diriam porque não sabiam, mas que sabem porque lhe é ensinado gratuita e amorosamente ao pé do ouvido.

Antes do nome, antes podermos dar nome às coisas, está o Nome que a tudo nomeia e por nada nem ninguém pode ser nomeado. “Coisa grave e surda, inventada para ser calada,” diz Adélia Prado. Nome existente no silêncio e nele eloquente como dom amoroso, que se experimenta indizível e inexprimivelmente. Nome impronunciável pelos lábios humanos, mas que misericordiosamente se faz acessível à carne perecível e mortal, destinada à morte e transpassada de finitude.

Nó de relações, aberto ao mundo, aos outros, a Deus, o ser humano vive tensionado como arco, cuja flecha mira o infinito, lutando com o peso da gravidade que o conduz ao chão onde partilha com os outros seres criados a condição perecível e o destino mortal. Por seu ouvido aberto, no entanto, penetra continuamente a palavra divina que o constitui ouvinte da Palavra criadora, pronunciada antes de todo nome sobre o caos primitivo.

Místicos, profetas e poetas, ao longo da história da humanidade, têm expressado essa dignidade da condição humana de ser “confidente” privilegiada do misterioso e “esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros” onde nascem as preposições, os advérbios, os nomes próprios e comuns tal como diz ainda a poeta de Divinópolis. São esses e essas, eleitos e apaixonados confidentes, que padecem os silêncios da Palavra que é Silêncio recolhido e imanipulável; mas são igualmente os gozosos interlocutores que gozam da graça de saber-se feitos para ouvir e ser recriados por essa Palavra que os surpreende a cada minuto.

A Revelação chega ao ser humano como graça que surpreende e convoca a liberdade. Proposta graciosa e gratuita, que pede uma resposta igualmente gratuita por ser fruto da graça que a precede. É, portanto, graça de Deus não só Ele fazer essa proposta ao ser humano, mas o é também o fato de este último, em sua limitação e sua finitude, poder ouvi-la, acolhê-la e a ela responder na fé, carente de evidências e comprovações empíricas.

Sendo algo tão fundamental para a compreensão do que implica ser humano, esta categoria passa a ser uma definição da própria identidade: “ouvinte da palavra”.  Bem o sabia o povo de Deus, quando era instado pelo Senhor a ouvir: “Escuta, Israel!”. E muitas vezes, convidado a ir para o deserto, sem nada que recreasse a vista, sem ídolos que aprisionassem as pupilas dos olhos para poderem, enfim, ouvir.

Afinar os ouvidos para um silêncio grávido e esperar pacientemente que deste emerja o parto da Palavra ansiada e desejada é a vocação maior do ser humano, sua própria identidade, constitutiva e instituinte.  Ouvir para acolher; ouvir para aprender; ouvir para amar; ouvir para ser. Ouvir para receber sempre de novo o convite de “voltar ao primeiro amor” e não esquecê-lo. Ouvir para converter-se sempre de novo em “ouvinte” de uma Palavra maior, que revela, convoca e envia.

Pois o Senhor Deus desperta-nos todas as manhãs, desperta-nos o ouvido para que ouçamos, como aqueles que aprendem.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.  

 Copyright 2015 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

A IGREJA DO NÃO E A IGREJA DO SIM

por Frei Betto


      O teólogo Antônio Moser costuma repetir que há a Igreja do Não e outra do Sim. Fui catequizado na Igreja do Não. Pecado tinha nome: sexo. Era pecado se masturbar, apreciar o corpo de uma mulher, ter “maus pensamentos”.

      “Deus me vê”, estampava a tabuleta de madeira pregada em cada cômodo do colégio marista, inclusive nos banheiros. Um deus juiz, fiscal, inspetor, de cujos olhos panópticos nada escapava.

      Sentadão lá no Céu, alisando com a mão esquerda a longa barba branca; com a direita, Deus anotava cada um de meus pecados no Grande Livro da Contabilidade dos Mortais, cujos inadimplentes eram punidos com as chamas eternas do Inferno.

      A Igreja do Não ostentava os Dez Mandamentos, assim como o rótulo do veneno descreve os riscos letais do conteúdo. Além dos mandamentos divinos, havia os da Igreja. Faltar à missa aos domingos era pecado.

      Aos pecados mortais, as profundas do Inferno. Aos veniais, séculos afins no Purgatório, onde os mais ardentes verões se alternavam com frigidíssimos invernos. Havia que purgar os pecados cometidos deste lado da vida para, um dia, merecer o direito de ser alçado ao Céu.

      Nessa vida sísifa de constantes tropeções na tortuosa via das virtudes, minha pobre alma poderia ser salva graças à confissão auricular, verdadeira terapia sacramental. Ajoelhado aos pés do confessor, eu contava tudo, ainda que escrúpulos fossem confundidos com pecados.

      Em nome de Deus, o confessor indagava: “Quantas vezes?” A culpa do penitente em diálogo com a luxúria auricular do confessor. Recebia-se a absolvição, rezava-se meia dúzia de orações em penitência e saía-se em paz.

      Mas em débito. Para zerar, só as nove primeiras sextas-feiras do mês ou se fazer presente em Roma no Ano Santo, quando o papa concedia indulgência plenária. Daqui da Terra, o papa tinha o poder de passar uma borracha no livrão da contabilidade divina.

      Felizmente a Ação Católica, a Teologia da Libertação, o Concílio Vaticano II e os papas João XXIII e, agora, Francisco, me abriram as portas da Igreja do Sim.

      A Igreja da tolerância e da misericórdia de Jesus. Das surpresas inovadoras do Espírito Santo. Do Deus Pai e Mãe que, como o pai do filho pródigo, acolhe o filho pecador com ternura e festa.

      Igreja que enfatiza como pecado, não a pulsão sexual da adolescência, mas a opressão social, a discriminação racial ou homofóbica, a apropriação avarenta das riquezas.

      Igreja que prefere as Bem-Aventuranças, que apontam os caminhos da felicidade, aos Dez Mandamentos. Igreja samaritana, que deixa sua zona de conforto para se colocar solidária ao lado dos excluídos. Lava os pés dos pobres. Cuida dos enfermos. Ama os inimigos.

      Igreja que ultrapassa os catálogos de leis e as doutrinas congeladas para professar e praticar o amor, a alegria, a compaixão. Igreja que ora, medita e se faz fermento na massa. E diz Sim a todos os valores e virtudes humanos, tragam eles ou não o carimbo da fé cristã.

      Igreja que encarna Jesus ao dar pão a quem tem fome e liberdade a quem se encontra aprisionado.

Frei Betto é escritor, autor de “Oito Vias para ser Feliz” (Planeta), entre outros livros.
  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

OS EXPLICADORES DO BRASIL

Por Eduardo Hoornaert 


No momento pipocam por toda parte explicações da situação atual no Brasil, principalmente na Internet, mas também na rádio, na TV e nos jornais. Enumero algumas:
– O Brasil está em crise. Nos grandes meios de comunicação, essa afirmação é hoje um postulado. Mas não se explica o que se entende por ‘crise’. Em 1939, quando eu tinha 9 anos, o país em que nasci estava em ‘crise’: as pessoas estocavam alimentos e todos sentiam que a guerra se aproximava. Isso era crise. Neste momento, no Brasil, os preços aumentam, o consumo diminui, mas será que isso é crise? O fato de alguns deixarem de viajar a Orlando com a família porque o dólar está alto é sinal de crise? É o que se diz na TV. Minha impressão é que os grandes meios de comunicação têm interesse em falar em ‘crise’.
– Vivemos numa democracia. O termo ‘democracia’ virou uma palavra sagrada, intocável. Mas o que dizer de um país de 200 milhões de habitantes, em cima dos quais os porta-vozes de uma só família, os filhos de um bem-sucedido jornalista do Rio de Janeiro que criou uma rede de meios de comunicação, pronunciam a cada dia oráculos que passam por verdades eternas, praticamente nunca contestadas? Isso é democracia? Há muitos outros exemplos que mostram que a palavra ‘democracia’ não corresponde ao que está efetivamente acontecendo.
– A economia é uma ciência. A indicação, pela presidenta Dilma, de Joaquim Levy como ministro da Economia, é interpretada por muitos como escolha de alguém formado em ‘ciência econômica’. Dá se a impressão que Levy domina uma ciência que o comum dos mortais não consegue entender, mas que deve ter seus segredos. Faz aproximadamente 250 anos, desde Adam Smith (1776), que os economistas procuram erguer suas ‘artes’ ao patamar de ciência. A história desmente essa pretensão e apresenta muitos casos em que a economia provou ser, não uma ciência, mas uma ‘arte de fazer’.
– O Brasil está dividido entre inteligentes e ignorantes. Essa é uma análise extremamente grosseira, mas hoje vejo que ela é adotada por quem se autoproclama ‘filósofo’, ‘analista político’, ‘jornalista qualificado’. No final do ano passado, os ignorantes colocaram Dilma no poder, mas ‘depois de ver como ela governa’, compreendem que os inteligentes têm razão. Daí os números extremamente baixos da popularidade da presidenta. Mas, como se sabe de que modo Dilma governa? Isso passa necessariamente pela mediação dos grandes meios de comunicação, e assim voltamos ao acima exposto acerca da concentração da comunicação pública no Brasil nas mãos de um número extremamente reduzido de pessoas.
– O ciclo PT passou. Alguém disse isso e muitos o repetem. A explicação tem uma aura de verdade inconteste que dispensa análise empírica. Como foi dito por uma pessoa inteligente, deve ser verdade. Se você duvidar, é petista ignorante.
– Lula é populista. Essa frase também tem ares de inteligência. Mas o que se entende por ‘populista’? Assisti recentemente a um programa na televisão, em que se disse que populista é quem simpatiza os governos ‘populistas’ de Venezuela, Bolívia e Ecuador (as repúblicas bolivarianas). Isso, disse o interlocutor, não tem futuro, pois esses governos não têm dinheiro. Melhor aliar-se aos Estados Unidos e à Europa, onde há dinheiro. Então entendi o que é populista: é o contrário de dinheirista.
 Temos de combater o terrorismo. Divulgado aos quatro ventos pelo presidente americano Bush na manhã do dia 11 de novembro de 2001 (data do ataque às torres gêmeas em Nova Iorque) depois de receber um telefonema de seu conselheiro Kissinger que falou em ‘war on terror’ (guerra contra o terror), o terrorismo é um dos termos que caracterizam as sociedades em que vivemos. A civilização está sendo ameaçada por terroristas, assim como no passado esteve ameaçada por comunistas. Mas, se um drone americano mata pessoas inocentes no Afeganistão, isso é terrorismo? Não, ninguém diz isso. Matar inocentes no Afeganistão é combater o terrorismo, assim como apoiar golpes militares na América Latina, nos anos 1960-70, era combater o comunismo. Dias passados, a Câmara Federal aprovou uma lei que de certa forma aplica ao Brasil o pacote antiterrorista fabricado nos Estados Unidos. Essa lei parte da ideia que o terrorismo pode estender seus tentáculos sobre o país, o que deve ser evitado a qualquer custo. Temos de ficar de sobreaviso, pois a conspiração terrorista pode eclodir onde menos se espera. Quem não concordar com ideias divulgadas pelos grandes meios de comunicação, por exemplo, é potencialmente ‘terrorista’.
A lista de frases que hoje pretendem explicar o Brasil não se esgota com esses poucos exemplos. Mas as que apresentei brevemente acima bastam para que enxerguemos a saída diante do poder avassalador dessas e de outras frases que costumamos ouvir diariamente nos grandes meios de comunicação. Penso que, mais que nunca, é preciso usar o cérebro. A coisa mais preciosa que a natureza pode nos oferecer é um cérebro que funcione bem, ou seja, que nos faça pensar de forma independente. O cultivo de uma inteligência independente constitui a tarefa mais importante da vida.
Como o cérebro está diretamente ligado aos órgãos de observação (visão, audição) e trabalha os dados provenientes desses órgãos, tudo depende da capacidade de elaborar corretamente o que nos vem por meio da observação. Quando assistimos à TV, por exemplo, o cérebro não fica totalmente passivo mas interage com as imagens e as palavras.
Diante do bombardeio diário de imagens e mensagens, um cérebro sadio se posiciona de forma independente. Isso se chama reflexão. Esse cérebro forma um ‘critério’, ou seja, um pensamento crítico acerca do que ouvimos e vimos na tela. O critério correto é resultado de uma luta permanente pelo domínio sobre nossa própria mente. Arriscamos ‘perder a cabeça’ quando não reagimos diante da maré montante de palavras e imagens diariamente despejadas sobre nós. Pois se trata realmente de uma maré, que ameaça inundar tudo, se não construímos um dique seguro para conter seu avanço. Esse dique é nossa inteligência. Se não preservamos nossa inteligência independente, corremos o perigo de virar um rebanho empurrado por um louco.
A marcha do dia 16 de agosto. Para terminar, umas palavras acerca da marcha do dia 16 de agosto, em grande parte preparada pelo movimento ‘Vem Pra Rua’ (VPR), que se articula de forma bem organizada por meio da Internet. Há quem pensa que essa marcha apresenta uma alternativa para o Brasil. Mas é preciso saber que o movimento VPR se articula em torno de um núcleo duro de apenas cinco pessoas, um verdadeiro ‘comando’ muito bem organizado, com disciplina e sem crítica interna (como acaba de revelar o Jornal ‘Valor’). Se alguma mensagem corre pela Internet que não esteja de acordo com o que esse núcleo decide, ela é eliminada do circuito organizado pela VPR.
Estamos diante de um movimento que não tem nada de novo, a não ser a técnica de comunicação e o charme de pessoas bem-sucedidas na vida, que têm entre 40 e 50 anos e participam do dito núcleo central u colaboram com ele. Esse núcleo duro decide atacar Dilma e Lula (talvez Renan Calheiros), mas não Eduardo Cunha. Você participa da marcha, grita palavras de ordem e pensa agir com liberdade, mas na realidade está enquadrado dentro de um movimento que ‘outros’ (Globo, Veja, etc.) já começaram a interpretar antes mesmo que aconteça a marcha do dia 16 de agosto. É essa interpretação ‘pré-fabricada’ que constitui a ração a ser digerida pelo grande público a partir do dia 16 de agosto.

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/