Por Maria Clara
Lucchetti Bingemer
Leio chocada a notícia sobre o assassinato da Irmã Odete Aparecida dos Anjos,
da congregação franciscana de Sissen, de 65 anos, na Fazenda Esperança, em
Guaratinguetá. Junto com outra irmã, foi surpreendida por um
assaltante. Hoje se sabe que foi alguém que já passou pela Fazenda para
recuperar-se da dependência química, mas saiu antes do prazo previsto para
recuperação.
A Fazenda da Esperança é
um dos maiores projetos para reabilitação de dependentes químicos no mundo e
atua por meio de 94 comunidades terapêuticas A iniciativa teve início em
Guaratinguetá, na década de 1980, e já atendeu mais de 30 mil usuários de
drogas desde sua fundação. Atualmente, na sede da entidade são atendidos cerca
de 350 dependentes e pelo local já passaram mais de 7 mil pessoas.
Frei Hans, um franciscano
alemão de voz de trovão e coração cheio de Evangelho, comanda a instituição,
juntamente com Nelson Giovanelli Rosendo, leigo que dedica a vida à causa da
recuperação dos dependentes químicos desde a mais tenra juventude. Quando ainda
adolescente, assistia à missa que celebrava Frei Hans na paróquia do
bairro. Preocupava-o um grupo de jovens que na esquina fumava maconha; um
dia, aproximou-se deles e conversou. Falou com Frei Hans e começou a
germinar a ideia de fazer um projeto de recuperação para as pessoas que querem
curar-se da dependência.
Assim nasceu a Fazenda
Esperança, trabalhando há várias décadas para reintegrar pessoas destruídas
pela droga, com um projeto feito de espiritualidade e muito amor. Em
2007, o local foi visitado pelo Papa Emérito Bento XVI. Eu participei deste
momento e foi emocionante ver o Papa, com sua timidez alemã, passando sem
segurança no meio dos recuperandos, apertando mãos, distribuindo bênçãos e
terços, diante de uma multidão emocionada.
Este é o projeto
apostólico no qual Irmã Odete se engajou e comprometeu a vida. Como
muitos outros, sacerdotes, religiosos e leigos, ela decidiu consagrar sua vida
à Fazenda Esperança, passando a comunidade a ser sua residência, seu cotidiano,
sua inspiração para viver, o sentido de sua existência. Ocupava-se da
catequese, ensinando o catecismo e a doutrina cristã aos que ali vinham buscar
um sentido para suas vidas e a cura para a dependência.
Na última sexta feira, um
assaltante encapuzado entrou na residência das irmãs onde estavam Irmã Odete e
uma outra religiosa. Queria dinheiro. Ante o susto de Irmã Odete,
que ameaçou chamar a polícia, ele a matou com oito facadas. Ela morreu no
local.
A direção da Fazenda
Esperança nunca admitiu segurança no local.
Ali tudo é aberto, desde as
portas até os corações. E, se intuo corretamente, vai continuar
assim. Frei Hans não acredita em adotar as mesmas medidas de nossa
sociedade tão cruel e impiedosa, que produz os dependentes químicos dos quais
ele trata, para proteger a comunidade que fundou e é a razão de seu
viver. Tampouco acredita em polpudas mensalidades a serem cobradas dos
dependentes que ali aportam, alguns de famílias muito abastadas. Todo seu
trabalho é baseado na gratuidade. O que não significa que não possa
receber doações. Mas o serviço ali realizado não é cobrado. De
ninguém.
Às vezes, o preço a pagar
por viver tão radicalmente o Evangelho é alto. Por exemplo, a vida de
Irmã Odete. O suspeito de havê-la matado é um dependente que já havia
passado pela Fazenda. Saiu sem recuperar-se - como acontece com muitos –
e já havia inclusive praticado ultimamente pequenos furtos na
instituição.
No funeral da Irmã,
acompanhado por dezenas de pessoas, Frei Hans declarou ter rezado muito para não
sentir ódio ou raiva do assassino, o qual, segundo ele, “deve estar sofrendo
mais do que nós.“
Sepultada no lugar ao qual
se consagrou e onde trabalhava, Irmã Odete, ressuscitada, intercede agora pela
Fazenda Esperança. Em um mundo light, onde todo dever parece eclipsado,
toda dedicação desvalorizada e a vida banalizada, seu testemunho brilha e
convoca. “Se o grão de trigo não morrer, fica só. Mas se morrer dá
muito fruto.” A vida de Irmã Odete é como essa semente que caiu em terra boa.
Cremos e esperamos que dará muito fruto.
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER é teóloga e é autora
de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de
descrença”, Editora Rocco.
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