De todos os sentidos,
talvez o da visão seja o mais ambíguo e arriscado. O que mais engana, o
que mais finge efeitos especiais que não são reais. E, no entanto,
trata-se de um sentido fundamental, o veículo da luz para o corpo e para a vida
inteira. O que seríamos sem os olhos, sem o olhar, sem a capacidade de
perceber a beleza, as cores, os seres vivos?
A Bíblia fala sabia e
belamente da importância deste sentido. O desejo mais profundo do ser
humano, segundo os textos bíblicos, é “ver a Deus”. O salmista suspira
por essa visão e geme porque ela tarda: “Quando irei ao encontro de Deus e
verei tua face, Senhor?” Ver a face do Senhor é abismar-se na contemplação de
uma beleza que não tem fim, de um mistério que é dinamismo que impulsiona a
vida, e ao mesmo tempo aconchego que a protege e cultiva, alimenta, nutre e
acalanta.
Em meio a uma vida
fragmentada e ameaçada, com a morte como horizonte obrigatório e temido, o ser
humano anseia por essa visão que não terá fim. A fé, que é um caminhar
ainda sem ver, incute no ser humano a certeza a respeito do que ele não vê e o
faz prosseguir no caminho, mesmo sem enxergar. Por isso a Bíblia tanto
valoriza a escuta, que permite andar sem ver, e crer sem vislumbrar o objeto de
Amor que o coração deseja e por cuja visão anseia. Por isso igualmente o ver é
tão posto sob suspeita na Escritura, uma vez que ele sozinho, desvinculado de
uma escuta obediente e atenta, pode conduzir ao caminho desviado da idolatria e
das imagens enganosas.
Para nós que vivemos em
uma cultura da imagem, esses matizes bíblicos sobre a importância do olhar, do
ver, do contemplar podem ser de grande valia. Vivemos acossados de todos
os lados por imagens que procuram invadir, sem ser convidadas, nossos sentidos
e deles apossar-se. Em todo o decurso do dia, somos instados a olhar, ver
coisas, objetos, luzes, que nos despertam sensações, desejos e dinamizam todas
as dimensões de nosso ser.
É tanto a olhar que muitas
vezes não se consegue ver. Sim, parece sem sentido, mas é isso mesmo que
se quer dizer. Perdidos em meio a uma abundância de estímulos visuais,
poluídos pela superabundância de imagens, corremos o sério risco de não mais
ver, enxergar, o que é mais importante. Não ver o que se encontra para
além do imediatamente visível, não ver a identidade mais profunda, não ver o
sentimento exposto, a alma em carne viva, o sonho machucado. Não ver o
verdadeiro rosto do outro, da outra e permanecer apenas em sua aparência.
A experiência humana de
olhar não se transforma em ver realmente se não consegue atravessar a floresta
de imagens que se oferecem sem cessar a nossas retinas e aportar naquilo – ou
melhor dito – naquele ou naquela que é digno de ser visto. É então que
fazemos a passagem do olhar e do ver para o contemplar. É neste momento
que nossos olhos deixam de ser simplesmente um sentido biológico e corpóreo,
para ser um sentido espiritual, transcendente.
Os antigos olhavam o
universo e viam nele a presença de deuses, semideuses, divindades várias que
povoavam cada astro, cada planta, cada animal e a tudo dava sentido. A
modernidade trouxe consigo o desencantamento deste mundo que desde muito tempo
a humanidade concebeu como povoado de deuses. Chamou as coisas por nomes
racionais, proclamou em alto e bom som que estávamos sozinhos, entregues à
realidade de nossa condição humana, finita e mortal.
A partir daí, nos foi dito
e ensinado que não havia mais que gastar tempo buscando olhar para além das
coisas visíveis a fim de experimentar o Misterioso, o Invisível. Mais
valia permanecer no visível, no alcançável, no tangível, para não se iludir,
não se enganar, não se transviar. E neste vazio o enlouquecimento da imagem, a
sociedade do espetáculo penetrou e nos fez seus reféns.
Hoje, ensinados pela
implacável racionalidade moderna, mas também mais lúcidos sobre seus limites e
patologias, procuramos com grande esforço redescobrir a contemplação. E
sentimos que é necessário reeducar nosso olhar, para que então possamos ver um
mundo re-encantado, grávido, prenhe de beleza, de presença, de sentido. Entramos
em um segundo noviciado para reaprender a ser contemplativos.
E nesse aprendizado
experimentamos, como o grande Agostinho de Hipona, que Aquele que de Si mesmo
disse ser a Luz do mundo, relampejou e afugentou nossa cegueira. E
capacitou-nos, então, a ver a beleza do mundo em sua abundante generosidade,
mas também em seus signos invertidos. É bom não esquecer e ter olhos para
ver que o mais belo dos filhos dos homens não tinha graça nem beleza que
pudesse atrair os humanos olhares, porque fora reduzido a nada pelo amor.
A única beleza digna de contemplação, digna do olhar re-encantado pela
contemplação, é o amor.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do
departamento de teologia da PUC-Rio, teóloga e é autora de “Simone Weil –
Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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