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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

VER, OLHAR, CONTEMPLAR

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 




De todos os sentidos, talvez o da visão seja o mais ambíguo e arriscado.  O que mais engana, o que mais finge efeitos especiais que não são reais.  E, no entanto, trata-se de um sentido fundamental, o veículo da luz para o corpo e para a vida inteira.  O que seríamos sem os olhos, sem o olhar, sem a capacidade de perceber a beleza, as cores, os seres vivos?

A Bíblia fala sabia e belamente da importância deste sentido.  O desejo mais profundo do ser humano, segundo os textos bíblicos, é “ver a Deus”.  O salmista suspira por essa visão e geme porque ela tarda: “Quando irei ao encontro de Deus e verei tua face, Senhor?” Ver a face do Senhor é abismar-se na contemplação de uma beleza que não tem fim, de um mistério que é dinamismo que impulsiona a vida, e ao mesmo tempo aconchego que a protege e cultiva, alimenta, nutre e acalanta. 

Em meio a uma vida fragmentada e ameaçada, com a morte como horizonte obrigatório e temido, o ser humano anseia por essa visão que não terá fim.  A fé, que é um caminhar ainda sem ver, incute no ser humano a certeza a respeito do que ele não vê e o faz prosseguir no caminho, mesmo sem enxergar.  Por isso a Bíblia tanto valoriza a escuta, que permite andar sem ver, e crer sem vislumbrar o objeto de Amor que o coração deseja e por cuja visão anseia. Por isso igualmente o ver é tão posto sob suspeita na Escritura, uma vez que ele sozinho, desvinculado de uma escuta obediente e atenta, pode conduzir ao caminho desviado da idolatria e das imagens enganosas.
Para nós que vivemos em uma cultura da imagem, esses matizes bíblicos sobre a importância do olhar, do ver, do contemplar podem ser de grande valia.  Vivemos acossados de todos os lados por imagens que procuram invadir, sem ser convidadas, nossos sentidos e deles apossar-se.  Em todo o decurso do dia, somos instados a olhar, ver coisas, objetos, luzes, que nos despertam sensações, desejos e dinamizam todas as dimensões de nosso ser.

É tanto a olhar que muitas vezes não se consegue ver.  Sim, parece sem sentido, mas é isso mesmo que se quer dizer.  Perdidos em meio a uma abundância de estímulos visuais, poluídos pela superabundância de imagens, corremos o sério risco de não mais ver, enxergar, o que é mais importante.  Não ver o que se encontra para além do imediatamente visível, não ver a identidade mais profunda, não ver o sentimento exposto, a alma em carne viva, o sonho machucado.  Não ver o verdadeiro rosto do outro, da outra e permanecer apenas em sua aparência.

A experiência humana de olhar não se transforma em ver realmente se não consegue atravessar a floresta de imagens que se oferecem sem cessar a nossas retinas e aportar naquilo – ou melhor dito – naquele ou naquela que é digno de ser visto.  É então que fazemos a passagem do olhar e do ver para o contemplar.  É neste momento que nossos olhos deixam de ser simplesmente um sentido biológico e corpóreo, para ser um sentido espiritual, transcendente.

Os antigos olhavam o universo e viam nele a presença de deuses, semideuses, divindades várias que povoavam cada astro, cada planta, cada animal e a tudo dava sentido.  A modernidade trouxe consigo o desencantamento deste mundo que desde muito tempo a humanidade concebeu como povoado de deuses.  Chamou as coisas por nomes racionais, proclamou em alto e bom som que estávamos sozinhos, entregues à realidade de nossa condição humana, finita e mortal.
A partir daí, nos foi dito e ensinado que não havia mais que gastar tempo buscando olhar para além das coisas visíveis a fim de experimentar o Misterioso, o Invisível.  Mais valia permanecer no visível, no alcançável, no tangível, para não se iludir, não se enganar, não se transviar. E neste vazio o enlouquecimento da imagem, a sociedade do espetáculo penetrou e nos fez seus reféns.

Hoje, ensinados pela implacável racionalidade moderna, mas também mais lúcidos sobre seus limites e patologias, procuramos com grande esforço redescobrir a contemplação.  E sentimos que é necessário reeducar nosso olhar, para que então possamos ver um mundo re-encantado, grávido, prenhe de beleza, de presença, de sentido. Entramos em um segundo noviciado para reaprender a ser contemplativos.
E nesse aprendizado experimentamos, como o grande Agostinho de Hipona, que Aquele que de Si mesmo disse ser a Luz do mundo, relampejou e afugentou nossa cegueira. E capacitou-nos, então, a ver a beleza do mundo em sua abundante generosidade, mas também em seus signos invertidos.  É bom não esquecer e ter olhos para ver que o mais belo dos filhos dos homens não tinha graça nem beleza que pudesse atrair os humanos olhares, porque fora reduzido a nada pelo amor.  A única beleza digna de contemplação, digna do olhar re-encantado pela contemplação, é o amor.

  Maria Clara Lucchetti Bingemer é  professora do departamento de teologia da PUC-Rio,  teóloga e é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc) 
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