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quinta-feira, 28 de julho de 2016

DEFICIENTE É A SOCIEDADE!


Por Frei Betto



      Escritor e conferencista, as palavras são a matéria-prima de minha vida. Como observou Machado de Assis, “as palavras têm sexo. Amam-se uma às outras. Casam-se.” E acrescento: têm ideologia, não são neutras.

      Há palavras e expressões que, com o tempo, desabam do paraíso ao inferno. São rejeitadas pelo crivo implacável do politicamente incorreto. Porque estão impregnadas de preconceitos.
      Na minha infância, chamava-se aleijado quem tivesse uma deficiência física que lhe dificultasse a mobilidade. Depois, deficiente físico. Em seguida, portador de deficiência física. Mais tarde, pessoa portadora de necessidades especiais.

      Ora, toda a terminologia do parágrafo acima recai sobre a caracterização do indivíduo, quando deveria caracterizar a sociedade. Ela é a deficiente, pois torna esse indivíduo um ser com dificuldades de interação e integração, em especial quando lhe faltam equipamentos sociais que lhe facilitem atividades e mobilidade. 

      Cadeirantes e caminhantes (outras palavras equivocadas!) são, perante a lei, iguais em direitos. Há, porém, uma diferença. Por ser portador de uma anomalia física, cadeirantes possuem também direitos especiais (rampa de acesso, estacionamento, toalete amplo etc.) que eu não possuo. Ou melhor, possuo enquanto idoso.

      Não seria mais adequado deslocar a terminologia da limitação física para a sociedade? Ela, sim, é que transforma a diferença em restrição e preconceito. Sugiro, portanto, que sejam chamadas de pessoas portadoras de direitos especiais. Como o são também idosos, indígenas, LGBTod@s etc.

      Quem sabe, assim, a sociedade deixe de encará-las como problema, quando o problema reside na falta de equipamentos sociais e garantias de pleno usufruto de seus direitos, os universais e os especiais.

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
  
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quarta-feira, 27 de julho de 2016

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA IGREJA CATÓLICA EM TRÊS FLASHES: OS ANOS 150, 325 E 420


Por Eduardo Hoornaert







1. O ano 150: palavras que não entendemos mais.

Há como descobrir traços da atual igreja católica, como instituição, na história dos três primeiros séculos do movimento de Jesus? Os que tentaram descobrir esses traços têm de reconhecer: os documentos disponíveis não respondem às nossas perguntas. As palavras não colam. Isso se deve ao fato que fazemos perguntas a partir de uma igreja enorme, de mais de um bilhão de adeptos, e os documentos não respondem. Por volta do ano 150, quando emerge uma literatura cristã com certa envergadura, autores como Justino, Atenágoras, Barnabé e o autor anônimo da carta a Diogneto não respondem aos questionamentos de hoje. Eles não falam em ‘religião’, por exemplo. Na carta de Tiago se lê: ‘o culto puro e sem mácula consiste em assistir a órfãos e viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo’ (1, 26). Ele não usa o termo ‘religião’, mas fala em culto, o que significa dedicação, empenho. O Novo Testamento não tem um vocábulo equivalente ao termo latino ‘religio’, que provém do universo imperial romano. Em vez de falar em religião, os primeiros autores recorrem a termos como ‘caminho’, ‘modo de vida’, ‘escola’, ‘seguimento’, vida ‘fora da cidade’ ou ‘fora das portas’ (na Carta aos Hebreus).  Para os observadores de fora, os cristãos são ‘ateus’, ou seja, não participam de cultos programados pela administração do império. Outro exemplo: os termos ‘paróquia’ e ‘papa’ não têm, em 150, o sentido que lhes é atribuído hoje.  

Enfim, não encontramos a igreja católica de hoje nos escritos dos três primeiros séculos. A imagem de uma árvore genealógica’ do cristianismo, com um tronco original do qual derivariam as diversas confissões cristãs de hoje, não corresponde ao que os documentos dos três primeiros séculos nos informam. O que existe é a multiplicidades de comunidades que formulam projetos locais provisórios, passageiros e incompletos, inspirados no evangelho de Jesus. Não se enxerga, nos documentos dos primeiros séculos, uma linha de continuidade entre o projeto de Jesus e a igreja bizantina (ortodoxa) e, depois, católica, ou ainda protestante, etc. Pelo simples fato que Jesus não fundou uma instituição religiosa, mas lutou para renovar a fundo a instituição herdada de Moisés.

Além disso e mais fundamentalmente, desde o início ficou claro que não é fácil compreender o projeto de Jesus (Veja: Moingt, J., Deus que vem ao homem, I: do luto à revelação de Deus, Loyola, São Paulo 2010, 348-363). O Evangelho de Marcos mostra em diversos episódios que os apóstolos dificilmente compreendem Jesus. Marcião, o melhor teólogo do século II, confirma o que já está em Marcos: muitos seguidores de Jesus não entendem seu projeto.

2. O ano 325: a sedução da corte.

O ano 325 pode ser considerado a data de fundação da igreja católica. Nesse ano, bispos cristãos, que representam um movimento ainda muito recentemente perseguido pela administração romana, são acolhidos em 325, com todas as honrarias, na própria Residência de Verão do Imperador Constantino em Niceia, perto da nova metrópole Constantinopla, que está em plena construção. Constantino sabe o que faz quando recebe esses bispos, pessoas rudes do interior, com tantas honrarias. O que ele tem na cabeça? Ao que tudo indica, Constantino percebe que a política de seu predecessor Diocleciano, que perseguia implacavelmente os cristãos, tem de ser interrompida. Ele observa com apreensão o surgimento, em muitos setores da administração, um de um retrocesso a formas ditatoriais e totalitários, além de muita corrupção. Ele procura forças vivas, de alto padrão ético, capazes de reanimar a sociedade e corrigir um sistema corroído por falta de ética e é nesse sentido que ele resolve mudar radicalmente a política diante do cristianismo. Em vez de perseguição, ele opta pelo acolhimento.

Há um relato memorável do historiador Eusébio de Cesareia que mostra o impacto da recepção em Niceia na mente dos bispos. Eles são tratados como Senadores do Império. Cito o texto: ‘Destacamentos da guarda imperial e de outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas desembainhadas. Os homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados, até o coração dos aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com o imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do reino de Cristo, de um sonho, em vez da realidade’ (Eusébio de Cesareia, Vita Constantini, 3, 15. Cit. Crossan, J.D., O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo, Imago, Rio de Janeiro, 1994. 462).  

Eis um texto precioso, pois flagra o momento exato em que a igreja muda. Os mais diversos termos são utilizados pelos historiadores para descrever esse momento histórico. Uns falam em constantinismo, cesaropapismo, cristandade, outros em triunfalismo e cristandade. Uma formulação que me parece particularmente apropriada é inspirada num ensaio escrito em 1933 pelo sociólogo Norbert Elias sob o título: ‘A sociedade de corte’ (Zahar, Rio de Janeiro, 2001; o texto original é de 1933). Nesse livro, o autor faz da ‘corte’ um paradigma histórico fundamental. A corte e uma forma de se organizar a sociedade. Elias analisa a luta pelo prestígio, a maledicência, o ritual, as cerimônias, o protocolo, o bom comportamento, a adulação, a arte de falar, o papel do ‘bobo na corte’ e do ‘outsider’ etc. Se a gente segue o modo em que Elias analisa a história, então a gente compreende que a coisa mais importante de Niceia não é o famoso ‘Credo de Niceia’ (que ainda hoje se reza nas missas do domingo), mas o impacto psicológico causado nos bispos pela recepção na Residência Imperial. Os bispos mudam: de simples, rudes, espontâneos, sinceros, soltos, diretos, eles se tornam suaves, polidos, civilizados, educados e finos. Capricham na maneira de falar e se comportar, aprendem a arte retórica, controlam a fala e os gestos. Enfim, mudam de hábito (no sentido original do termo). Paulo de Samósata (260-272), o primeiro bispo ‘cortês’ da história do cristianismo, já forma em seu redor uma miniatura da corte romana, uma corte episcopal. Claro, não há só fascínio. Os bispos passam a desfrutar de residências melhores, meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através das ‘vias romanas’, doações para construção de suas basílicas e igrejas. Mas a principal novidade consiste na aprendizagem das regras da corte. Podemos dizer que, em Niceia, a igreja vira uma ‘sociedade de corte’.

Apresento aqui sete pontos em que há ruptura flagrante entre o movimento de Jesus dos três primeiros séculos e a igreja cristã do século IV por diante. Aparecem novas palavras, uma nova linguagem, novas vestes, uma nova administração, nova política, nova disciplina e nova liturgia. Há outros pontos, sem dúvida, não se pode dizer tudo.

(1) Novas palavras.

O vocabulário cristão ganha em Niceia uma nova palavra: ‘religio’. É uma palavra que provém da diplomacia imperial. Não se encontra na Bíblia nem tem seu equivalente na cultura helenística. Pertence à política romana e indica o culto ao Imperador. Por meio da ‘religião’, que é o elo entre cada cidadão romano e o Imperador, esse último penetra no mundo sagrado e adquire uma autoridade inconteste. O cerne da questão é de ordem imaginária: divide-se espaço da vida em dois campos, o sagrado e o profano. As pessoas vivem a vida de cada dia no campo profano, ou seja, fora do templo, que é a imagem do mundo sagrado. O termo latino ‘pro fanum’ significa ‘anterior ao templo’. Mas quando as pessoas se dirigem ao templo, elas penetram num campo sagrado. Depois de trabalhar, as pessoas oferecem o fruto de seu trabalho à divindade. Trata-se de uma antiga tradição agrícola, que a diplomacia imperial romana transforma em instrumento político. Muitos líderes cristãos aceitam a distinção entre profano e sagrado, pois percebem que ela aumenta sua autoridade junto ao povo. Eles começam a usar termos superlativos: santíssimo, reverendíssimo e excelentíssimo. Falam em ‘Deus todo-poderoso e onipotente’, como nas primeiras palavras do Credo de Niceia: ‘Creio num só Deus, pai onipotente, criador do céu e da terra...’.


(2) Nova linguagem.

Aparece, no seio do cristianismo, uma nova linguagem. Os líderes das comunidades se tornam ‘ministros sagrados’. Os apóstolos se transformam em sacerdotes. De pescador e exorcista de sucesso, o apóstolo Pedro se torna ‘pontífice’. Ainda no século III, o escritor cristão Tertuliano considera o uso do termo como um insulto (em seu tratado ‘De pudicitia’). Ele critica o bispo de Roma, que começa a usar o título de ‘pontífice romano’, e escreve a ele: ‘tenha vergonha, você se comporta como um pagão! ’. Mas no século IV, a sensibilidade eclesiástica muda completamente. Pedro é entronizado e revestido de vestes sacerdotais, faz seu Introito na Basílica e se dirige à ‘Cathedra Petri’, o trono imperial. Doravante, os bispos são ‘sucessores dos apóstolos’, conforme construção literária do historiador Eusébio de Cesareia que, nos capítulos 4 a 7 de sua História Eclesiástica, elabora longas listas ‘dinásticas’ para as principais cidades, muitas delas puramente imaginárias, criando desse modo a imagem de uma ‘sucessão apostólica’ e dinástica ininterrupta, que atravessa os séculos.

(3) Novas vestes.

No século IV, a veste talar faz sua entrada na igreja. Até Jesus ganha uma roupa que o cobre até os pés. Um afresco na Catacumba de São Calisto, em Roma, do século III, ainda apresenta Jesus como o bom pastor, vestido por uma túnica que vai até os joelhos e deixa pernas e braços desnudos. No ombro uma mochila a tiracolo, na mão direita as patas de uma ovelha enrolada nos ombros e na outra mão uma chaleira, caldeira ou panela, provavelmente para preparar alimentos. Depois do século IV, esse Jesus da vida diária nunca mais aparece. Quanto aos bispos, eles herdam dos sacerdotes de Mitra as suas ‘mitras’ (o termo ficou até os nossos dias). Mas o importante mesmo é a veste talar.

(4) Nova administração.

Simpatizantes de Roma, principalmente por causa das facilidades organizatórias (viagens, uso dos correios imperiais, isenção de impostos), os bispos colaboram com a administração romana no sentido de promover a unificação do Império. É nesse sentido que eles combatem as heresias e qualquer outra ameaça à unidade. Eles adotam o modelo diocesano, ou seja, dividem o mundo cristão em ‘territórios’, segundo o modelo romano. A diocese é uma opção administrativa fundamental, pois ela possibilita a implementação do grande projeto católico no século V. Outro procedimento administrativo consiste na divisão entre clero e laicato, ou seja, na separação entre ‘os de dentro’ e ‘os de fora’ (os outsiders), como diria Norbert Elias (veja seu livro: ‘Os estabelecidos e os outsiders’, Zahar, Rio de Janeiro).

(5) Nova política.

No século IV, os clérigos cristãos rivalizam com os sacerdotes da oficialidade romana. Para ter mais força, eles se unem numa corporação. Doravante a igreja será uma corporação clerical, de grande coesão interna e destacada separação com os ‘de fora’, os leigos.


(6) Nova disciplina.

Os clérigos aprendem a disciplinar o riso, seguindo um dos requisitos fundamentais da vida na corte. Já no século III, Clemente de Alexandria escreve que o cristão ‘sério’ não se altera, não ri. Mais tarde, no final do século IV, o metropolita João Crisóstomo afirma que Cristo nunca riu (Migne, Patrologia grega, 57, 69). Em geral, nos escritos dos Padres da Igreja (os intelectuais cristãos da época), o tema do prazer e da expansão dos sentimentos é abordado de forma negativa. Os cristãos se educam antes para o sofrimento que para o prazer, ficam mais ocupados com afazeres intelectuais e espirituais que com ‘carnais’. Em seu romance ‘O Nome da Rosa’, Umberto Eco conta que o velho bibliotecário de um mosteiro medieval bem sabe que ‘o riso é incentivo à dúvida’ (p. 159 da edição brasileira) e não permite que os jovens monges discutam sobre o riso de Cristo. Os monges não podem conhecer o Cristo brincalhão, o Arquivo Secreto da Biblioteca guarda sua memória. Pois Jesus alegre contradiz a sisudez do abade, do bispo e do papa. É dentro desse contexto que germina a ideia do seminário de formação sacerdotal, um dos maiores sucessos da história da igreja. O seminário visa antes de tudo o autocontrole, que no fundo fez parte da educação da classe A na sociedade romana. Os trabalhos de Peter Brown mostram que o controle do corpo, que desemboca na exaltação do celibato, não deve ser entendido no sentido de rejeição da sexualidade, mas do controle do homem superior (Brown, P., Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1990). O cidadão de classe superior tem de mostrar superioridade diante dos escravos e dos empregados por meio do autocontrole. Assim o clérigo diante dos fiéis.

(7) Nova liturgia.

Adotando o modelo da corte, a liturgia cristã se ‘teatraliza’, ou seja, deixa de ser comunitária e imita o cerimonial romano. Isso repercute na arquitetura das igrejas, que daqui por diante parecem antes salas de teatro que casas comunitárias. A arquitetura da primeira Basílica cristã, a Hagia Sofia de Constantinopla (hoje Istambul), é concebida segundo o modelo de uma sala de teatro. Por sinal, as pessoas têm razão quando falam em ‘assistir à missa’. O aspecto mais negativo da teatralização da liturgia consiste no fato que ela deixa o indivíduo isolado. A liturgia deixa de criar laços, vira um espetáculo religioso.

3. O ano 420: a formulação do projeto católico.

Até agora tratei da reviravolta operada no seio do cristianismo pela política do imperador Constantino. Um ponto seguinte consiste em considerar como se formula um projeto católico propriamente dito. Esse projeto é igualmente resultado de condicionamentos históricos.

Em 410, Roma, a invicta e invencível cidade eterna, é tomada pelas tropas de Alarico, o visigodo, e saqueada por três dias (os dias 24 a 26 de agosto de 410 ficam por muito tempo gravados na memória). A imensa população escrava fica na cidade, enquanto os ricos fogem para longe. É um desastre. A população da cidade cai bruscamente de um milhão a 200 mil. Lactâncio, autor cristão, atribui o desastre à ‘ira de Deus’, e muitos concordam com ele. O rumor atinge o norte da África, onde o talentoso escritor Agostinho é bispo da pequena cidade de Hipona. O bispo se sente tão impressionado pelo quadro do mundo de referências que desmorona diante de seus olhos, que se dedica durante quinze anos à elaboração de uma obra gigantesca em 22 livros: a ‘cidade de Deus’. Essa cidade é um sonho grandioso da salvação da humanidade depois da queda de Roma, identificada com a ‘cidade do homem’. A cidade de Caim, marcada pelo sinal indelével do pecado (original), caminha para a perdição. Enquanto isso, os peregrinos da ‘cidade de Deus’, a cidade de Abel, caminham para a salvação. Os da cidade de Caim andam à toa, pois só buscam o poder e a glória, enquanto os habitantes da cidade de Abel peregrinam, em meio a muitas dificuldades, em demanda da vida eterna na presença de Deus. Uma imagem fascinante, que seduz muitas gerações de dirigentes cristãos. Vê-se a igreja católica como uma luz de santidade em meio à perversidade do mundo. Agostinho é um sonhador, ele não se preocupa com as questões administrativas que a eventual transformação de seu sonho em projeto político pode acarretar. Não enxerga, por exemplo, que sua ‘cidade de Deus’ não abre espaço para a liberdade, pois tudo está baseado na obediência.

Leiamos uns trechos, eles dizem mais que os melhores comentários.

A paz da cidade é a concórdia bem ordenada dos cidadãos na obediência. A paz é a tranquilidade da ordem. Essa ordem é a disposição de seres desiguais, que indica a cada um o lugar que convém. Os miseráveis, que são infelizes, certamente não têm a paz, não gozam da tranquilidade da ordem. Mesmo assim, não podem ficar fora da ordem. Pois, caso se revoltem contra a lei pela qual se rege a ordem natural, serão mais infelizes ainda’ (Cidade de Deus, livro 19, capítulo 13, 1).

No capítulo 16 do mesmo livro, Agostinho trata da ‘paz doméstica’. E escreve: ‘Se, na casa, alguém perturba a paz doméstica por sua desobediência, deve ser corrigido por palavras ou chicote (chibata), por todo castigo justo e legítimo, em conformidade com o que a sociedade humana permite, e fim de conduzi-lo de novo, em seu próprio interesse, à paz da qual se separou’ (19, 16).

A igreja é um instrumento de educação das massas. Eis como Agostinho fala da educação: ‘É você que educa e ensina. Você submete as mulheres aos seus maridos por uma casta e fiel obediência. Você confere aos maridos autoridade sobre suas mulheres. Você submete as crianças aos seus pais por uma espécie de servidão e coloca os pais acima das crianças numa piedosa dominação. Você ensina aos escravos a respeitar seus amos, não tanto pela necessidade de sua condição como pelo charme do dever. Você ensina aos reis como vigiar sobre os povos e adverte os povos a se submeterem aos reis’ (De moribus ecclesiae catholicae, 1, 30, 63).

Com o tempo, Agostinho se agarra sempre mais à ideia da obediência incondicional, a tal ponto que nos últimos quinze anos de sua vida ainda se mete numa infeliz disputa com o monge Pelágio, que defende a liberdade. O grande escritor se afunda no fundamentalismo e termina sua vida no amargor, como se pode verificar lendo as Confissões. Mesmo assim, as lideranças católicas se empolgam com Agostinho, pois ele confere uma aparência de legitimidade ao que de fato acontece na igreja em termos de dominação e poderio. No entusiasmo do momento, poucos percebem que a ‘cidade de Deus’ é na realidade uma cópia da sociedade imperial romana, onde os súditos obedecem e se submetem à vontade dos governantes.

O sonho de Agostinho se concretiza na paróquia. A paróquia é a expressão mais clara do projeto católico. É um reduto. O viajante pelo interior da Europa pode observar como as casas, nas aldeias, se agrupam em torno da igreja paroquial. Parecem pintinhos em baixo das asas da galinha. O ‘pastor’ cuida das ovelhas (os paroquianos) e os defende diante dos perigos de fora. A paróquia é uma defesa, ela defende a ‘cidade de Deus’ diante dos ataques da ‘cidade de Caim’, que são os judeus, islamitas, vagabundos e heréticos. A paróquia não é feita para acolher os que pensam de forma diferente, pois o paroquiano costuma ter um comportamento defensivo. Na paróquia, as pessoas se acomodam a uma vida na obediência. Quem não aguenta essa vida vai para a cidade.  As virtudes da paróquia são as virtudes feudais: fidelidade (até a morte), coragem (imagem da espada), proteção ao fraco (cavaleiro medieval), voto perpétuo. A cruz e a espada, as duas espadas, a cruzadas, o bom combate contra os hereges, luta, fraternidade, lealdade, o rei sagrado (padre, bispo, papa). A paróquia é uma távola (tabula) redonda do rei Artur, ou seja, do vigário. Aí Parsifal, Tannhäuser, Tristão (e Isolde), Orlando, Sigfrido são os leigos engajados, destemidos, totalmente dedicados à boa causa. Eles defendem as ovelhas contra os perigos de fora.
Ainda há muito a se comentar sobre esses pontos, mas por enquanto basta dizer que os anos em que Agostinho elabora sua ‘Cidade de Deus’ (de 420 por diante) são fundamentais para a formação da igreja católica tal qual funciona até nossos dias.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA IGREJA CATÓLICA EM TRÊS FLASHES: OS ANOS 150, 325 E 420


Por Eduardo Hoornaert







1. O ano 150: palavras que não entendemos mais.

Há como descobrir traços da atual igreja católica, como instituição, na história dos três primeiros séculos do movimento de Jesus? Os que tentaram descobrir esses traços têm de reconhecer: os documentos disponíveis não respondem às nossas perguntas. As palavras não colam. Isso se deve ao fato que fazemos perguntas a partir de uma igreja enorme, de mais de um bilhão de adeptos, e os documentos não respondem. Por volta do ano 150, quando emerge uma literatura cristã com certa envergadura, autores como Justino, Atenágoras, Barnabé e o autor anônimo da carta a Diogneto não respondem aos questionamentos de hoje. Eles não falam em ‘religião’, por exemplo. Na carta de Tiago se lê: ‘o culto puro e sem mácula consiste em assistir a órfãos e viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo’ (1, 26). Ele não usa o termo ‘religião’, mas fala em culto, o que significa dedicação, empenho. O Novo Testamento não tem um vocábulo equivalente ao termo latino ‘religio’, que provém do universo imperial romano. Em vez de falar em religião, os primeiros autores recorrem a termos como ‘caminho’, ‘modo de vida’, ‘escola’, ‘seguimento’, vida ‘fora da cidade’ ou ‘fora das portas’ (na Carta aos Hebreus).  Para os observadores de fora, os cristãos são ‘ateus’, ou seja, não participam de cultos programados pela administração do império. Outro exemplo: os termos ‘paróquia’ e ‘papa’ não têm, em 150, o sentido que lhes é atribuído hoje.  

Enfim, não encontramos a igreja católica de hoje nos escritos dos três primeiros séculos. A imagem de uma árvore genealógica’ do cristianismo, com um tronco original do qual derivariam as diversas confissões cristãs de hoje, não corresponde ao que os documentos dos três primeiros séculos nos informam. O que existe é a multiplicidades de comunidades que formulam projetos locais provisórios, passageiros e incompletos, inspirados no evangelho de Jesus. Não se enxerga, nos documentos dos primeiros séculos, uma linha de continuidade entre o projeto de Jesus e a igreja bizantina (ortodoxa) e, depois, católica, ou ainda protestante, etc. Pelo simples fato que Jesus não fundou uma instituição religiosa, mas lutou para renovar a fundo a instituição herdada de Moisés.

Além disso e mais fundamentalmente, desde o início ficou claro que não é fácil compreender o projeto de Jesus (Veja: Moingt, J., Deus que vem ao homem, I: do luto à revelação de Deus, Loyola, São Paulo 2010, 348-363). O Evangelho de Marcos mostra em diversos episódios que os apóstolos dificilmente compreendem Jesus. Marcião, o melhor teólogo do século II, confirma o que já está em Marcos: muitos seguidores de Jesus não entendem seu projeto.

2. O ano 325: a sedução da corte.

O ano 325 pode ser considerado a data de fundação da igreja católica. Nesse ano, bispos cristãos, que representam um movimento ainda muito recentemente perseguido pela administração romana, são acolhidos em 325, com todas as honrarias, na própria Residência de Verão do Imperador Constantino em Niceia, perto da nova metrópole Constantinopla, que está em plena construção. Constantino sabe o que faz quando recebe esses bispos, pessoas rudes do interior, com tantas honrarias. O que ele tem na cabeça? Ao que tudo indica, Constantino percebe que a política de seu predecessor Diocleciano, que perseguia implacavelmente os cristãos, tem de ser interrompida. Ele observa com apreensão o surgimento, em muitos setores da administração, um de um retrocesso a formas ditatoriais e totalitários, além de muita corrupção. Ele procura forças vivas, de alto padrão ético, capazes de reanimar a sociedade e corrigir um sistema corroído por falta de ética e é nesse sentido que ele resolve mudar radicalmente a política diante do cristianismo. Em vez de perseguição, ele opta pelo acolhimento.

Há um relato memorável do historiador Eusébio de Cesareia que mostra o impacto da recepção em Niceia na mente dos bispos. Eles são tratados como Senadores do Império. Cito o texto: ‘Destacamentos da guarda imperial e de outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas desembainhadas. Os homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados, até o coração dos aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com o imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do reino de Cristo, de um sonho, em vez da realidade’ (Eusébio de Cesareia, Vita Constantini, 3, 15. Cit. Crossan, J.D., O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo, Imago, Rio de Janeiro, 1994. 462).  

Eis um texto precioso, pois flagra o momento exato em que a igreja muda. Os mais diversos termos são utilizados pelos historiadores para descrever esse momento histórico. Uns falam em constantinismo, cesaropapismo, cristandade, outros em triunfalismo e cristandade. Uma formulação que me parece particularmente apropriada é inspirada num ensaio escrito em 1933 pelo sociólogo Norbert Elias sob o título: ‘A sociedade de corte’ (Zahar, Rio de Janeiro, 2001; o texto original é de 1933). Nesse livro, o autor faz da ‘corte’ um paradigma histórico fundamental. A corte e uma forma de se organizar a sociedade. Elias analisa a luta pelo prestígio, a maledicência, o ritual, as cerimônias, o protocolo, o bom comportamento, a adulação, a arte de falar, o papel do ‘bobo na corte’ e do ‘outsider’ etc. Se a gente segue o modo em que Elias analisa a história, então a gente compreende que a coisa mais importante de Niceia não é o famoso ‘Credo de Niceia’ (que ainda hoje se reza nas missas do domingo), mas o impacto psicológico causado nos bispos pela recepção na Residência Imperial. Os bispos mudam: de simples, rudes, espontâneos, sinceros, soltos, diretos, eles se tornam suaves, polidos, civilizados, educados e finos. Capricham na maneira de falar e se comportar, aprendem a arte retórica, controlam a fala e os gestos. Enfim, mudam de hábito (no sentido original do termo). Paulo de Samósata (260-272), o primeiro bispo ‘cortês’ da história do cristianismo, já forma em seu redor uma miniatura da corte romana, uma corte episcopal. Claro, não há só fascínio. Os bispos passam a desfrutar de residências melhores, meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através das ‘vias romanas’, doações para construção de suas basílicas e igrejas. Mas a principal novidade consiste na aprendizagem das regras da corte. Podemos dizer que, em Niceia, a igreja vira uma ‘sociedade de corte’.

Apresento aqui sete pontos em que há ruptura flagrante entre o movimento de Jesus dos três primeiros séculos e a igreja cristã do século IV por diante. Aparecem novas palavras, uma nova linguagem, novas vestes, uma nova administração, nova política, nova disciplina e nova liturgia. Há outros pontos, sem dúvida, não se pode dizer tudo.

(1) Novas palavras.

O vocabulário cristão ganha em Niceia uma nova palavra: ‘religio’. É uma palavra que provém da diplomacia imperial. Não se encontra na Bíblia nem tem seu equivalente na cultura helenística. Pertence à política romana e indica o culto ao Imperador. Por meio da ‘religião’, que é o elo entre cada cidadão romano e o Imperador, esse último penetra no mundo sagrado e adquire uma autoridade inconteste. O cerne da questão é de ordem imaginária: divide-se espaço da vida em dois campos, o sagrado e o profano. As pessoas vivem a vida de cada dia no campo profano, ou seja, fora do templo, que é a imagem do mundo sagrado. O termo latino ‘pro fanum’ significa ‘anterior ao templo’. Mas quando as pessoas se dirigem ao templo, elas penetram num campo sagrado. Depois de trabalhar, as pessoas oferecem o fruto de seu trabalho à divindade. Trata-se de uma antiga tradição agrícola, que a diplomacia imperial romana transforma em instrumento político. Muitos líderes cristãos aceitam a distinção entre profano e sagrado, pois percebem que ela aumenta sua autoridade junto ao povo. Eles começam a usar termos superlativos: santíssimo, reverendíssimo e excelentíssimo. Falam em ‘Deus todo-poderoso e onipotente’, como nas primeiras palavras do Credo de Niceia: ‘Creio num só Deus, pai onipotente, criador do céu e da terra...’.


(2) Nova linguagem.

Aparece, no seio do cristianismo, uma nova linguagem. Os líderes das comunidades se tornam ‘ministros sagrados’. Os apóstolos se transformam em sacerdotes. De pescador e exorcista de sucesso, o apóstolo Pedro se torna ‘pontífice’. Ainda no século III, o escritor cristão Tertuliano considera o uso do termo como um insulto (em seu tratado ‘De pudicitia’). Ele critica o bispo de Roma, que começa a usar o título de ‘pontífice romano’, e escreve a ele: ‘tenha vergonha, você se comporta como um pagão! ’. Mas no século IV, a sensibilidade eclesiástica muda completamente. Pedro é entronizado e revestido de vestes sacerdotais, faz seu Introito na Basílica e se dirige à ‘Cathedra Petri’, o trono imperial. Doravante, os bispos são ‘sucessores dos apóstolos’, conforme construção literária do historiador Eusébio de Cesareia que, nos capítulos 4 a 7 de sua História Eclesiástica, elabora longas listas ‘dinásticas’ para as principais cidades, muitas delas puramente imaginárias, criando desse modo a imagem de uma ‘sucessão apostólica’ e dinástica ininterrupta, que atravessa os séculos.

(3) Novas vestes.

No século IV, a veste talar faz sua entrada na igreja. Até Jesus ganha uma roupa que o cobre até os pés. Um afresco na Catacumba de São Calisto, em Roma, do século III, ainda apresenta Jesus como o bom pastor, vestido por uma túnica que vai até os joelhos e deixa pernas e braços desnudos. No ombro uma mochila a tiracolo, na mão direita as patas de uma ovelha enrolada nos ombros e na outra mão uma chaleira, caldeira ou panela, provavelmente para preparar alimentos. Depois do século IV, esse Jesus da vida diária nunca mais aparece. Quanto aos bispos, eles herdam dos sacerdotes de Mitra as suas ‘mitras’ (o termo ficou até os nossos dias). Mas o importante mesmo é a veste talar.

(4) Nova administração.

Simpatizantes de Roma, principalmente por causa das facilidades organizatórias (viagens, uso dos correios imperiais, isenção de impostos), os bispos colaboram com a administração romana no sentido de promover a unificação do Império. É nesse sentido que eles combatem as heresias e qualquer outra ameaça à unidade. Eles adotam o modelo diocesano, ou seja, dividem o mundo cristão em ‘territórios’, segundo o modelo romano. A diocese é uma opção administrativa fundamental, pois ela possibilita a implementação do grande projeto católico no século V. Outro procedimento administrativo consiste na divisão entre clero e laicato, ou seja, na separação entre ‘os de dentro’ e ‘os de fora’ (os outsiders), como diria Norbert Elias (veja seu livro: ‘Os estabelecidos e os outsiders’, Zahar, Rio de Janeiro).

(5) Nova política.

No século IV, os clérigos cristãos rivalizam com os sacerdotes da oficialidade romana. Para ter mais força, eles se unem numa corporação. Doravante a igreja será uma corporação clerical, de grande coesão interna e destacada separação com os ‘de fora’, os leigos.


(6) Nova disciplina.

Os clérigos aprendem a disciplinar o riso, seguindo um dos requisitos fundamentais da vida na corte. Já no século III, Clemente de Alexandria escreve que o cristão ‘sério’ não se altera, não ri. Mais tarde, no final do século IV, o metropolita João Crisóstomo afirma que Cristo nunca riu (Migne, Patrologia grega, 57, 69). Em geral, nos escritos dos Padres da Igreja (os intelectuais cristãos da época), o tema do prazer e da expansão dos sentimentos é abordado de forma negativa. Os cristãos se educam antes para o sofrimento que para o prazer, ficam mais ocupados com afazeres intelectuais e espirituais que com ‘carnais’. Em seu romance ‘O Nome da Rosa’, Umberto Eco conta que o velho bibliotecário de um mosteiro medieval bem sabe que ‘o riso é incentivo à dúvida’ (p. 159 da edição brasileira) e não permite que os jovens monges discutam sobre o riso de Cristo. Os monges não podem conhecer o Cristo brincalhão, o Arquivo Secreto da Biblioteca guarda sua memória. Pois Jesus alegre contradiz a sisudez do abade, do bispo e do papa. É dentro desse contexto que germina a ideia do seminário de formação sacerdotal, um dos maiores sucessos da história da igreja. O seminário visa antes de tudo o autocontrole, que no fundo fez parte da educação da classe A na sociedade romana. Os trabalhos de Peter Brown mostram que o controle do corpo, que desemboca na exaltação do celibato, não deve ser entendido no sentido de rejeição da sexualidade, mas do controle do homem superior (Brown, P., Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1990). O cidadão de classe superior tem de mostrar superioridade diante dos escravos e dos empregados por meio do autocontrole. Assim o clérigo diante dos fiéis.

(7) Nova liturgia.

Adotando o modelo da corte, a liturgia cristã se ‘teatraliza’, ou seja, deixa de ser comunitária e imita o cerimonial romano. Isso repercute na arquitetura das igrejas, que daqui por diante parecem antes salas de teatro que casas comunitárias. A arquitetura da primeira Basílica cristã, a Hagia Sofia de Constantinopla (hoje Istambul), é concebida segundo o modelo de uma sala de teatro. Por sinal, as pessoas têm razão quando falam em ‘assistir à missa’. O aspecto mais negativo da teatralização da liturgia consiste no fato que ela deixa o indivíduo isolado. A liturgia deixa de criar laços, vira um espetáculo religioso.

3. O ano 420: a formulação do projeto católico.

Até agora tratei da reviravolta operada no seio do cristianismo pela política do imperador Constantino. Um ponto seguinte consiste em considerar como se formula um projeto católico propriamente dito. Esse projeto é igualmente resultado de condicionamentos históricos.

Em 410, Roma, a invicta e invencível cidade eterna, é tomada pelas tropas de Alarico, o visigodo, e saqueada por três dias (os dias 24 a 26 de agosto de 410 ficam por muito tempo gravados na memória). A imensa população escrava fica na cidade, enquanto os ricos fogem para longe. É um desastre. A população da cidade cai bruscamente de um milhão a 200 mil. Lactâncio, autor cristão, atribui o desastre à ‘ira de Deus’, e muitos concordam com ele. O rumor atinge o norte da África, onde o talentoso escritor Agostinho é bispo da pequena cidade de Hipona. O bispo se sente tão impressionado pelo quadro do mundo de referências que desmorona diante de seus olhos, que se dedica durante quinze anos à elaboração de uma obra gigantesca em 22 livros: a ‘cidade de Deus’. Essa cidade é um sonho grandioso da salvação da humanidade depois da queda de Roma, identificada com a ‘cidade do homem’. A cidade de Caim, marcada pelo sinal indelével do pecado (original), caminha para a perdição. Enquanto isso, os peregrinos da ‘cidade de Deus’, a cidade de Abel, caminham para a salvação. Os da cidade de Caim andam à toa, pois só buscam o poder e a glória, enquanto os habitantes da cidade de Abel peregrinam, em meio a muitas dificuldades, em demanda da vida eterna na presença de Deus. Uma imagem fascinante, que seduz muitas gerações de dirigentes cristãos. Vê-se a igreja católica como uma luz de santidade em meio à perversidade do mundo. Agostinho é um sonhador, ele não se preocupa com as questões administrativas que a eventual transformação de seu sonho em projeto político pode acarretar. Não enxerga, por exemplo, que sua ‘cidade de Deus’ não abre espaço para a liberdade, pois tudo está baseado na obediência.

Leiamos uns trechos, eles dizem mais que os melhores comentários.

A paz da cidade é a concórdia bem ordenada dos cidadãos na obediência. A paz é a tranquilidade da ordem. Essa ordem é a disposição de seres desiguais, que indica a cada um o lugar que convém. Os miseráveis, que são infelizes, certamente não têm a paz, não gozam da tranquilidade da ordem. Mesmo assim, não podem ficar fora da ordem. Pois, caso se revoltem contra a lei pela qual se rege a ordem natural, serão mais infelizes ainda’ (Cidade de Deus, livro 19, capítulo 13, 1).

No capítulo 16 do mesmo livro, Agostinho trata da ‘paz doméstica’. E escreve: ‘Se, na casa, alguém perturba a paz doméstica por sua desobediência, deve ser corrigido por palavras ou chicote (chibata), por todo castigo justo e legítimo, em conformidade com o que a sociedade humana permite, e fim de conduzi-lo de novo, em seu próprio interesse, à paz da qual se separou’ (19, 16).

A igreja é um instrumento de educação das massas. Eis como Agostinho fala da educação: ‘É você que educa e ensina. Você submete as mulheres aos seus maridos por uma casta e fiel obediência. Você confere aos maridos autoridade sobre suas mulheres. Você submete as crianças aos seus pais por uma espécie de servidão e coloca os pais acima das crianças numa piedosa dominação. Você ensina aos escravos a respeitar seus amos, não tanto pela necessidade de sua condição como pelo charme do dever. Você ensina aos reis como vigiar sobre os povos e adverte os povos a se submeterem aos reis’ (De moribus ecclesiae catholicae, 1, 30, 63).

Com o tempo, Agostinho se agarra sempre mais à ideia da obediência incondicional, a tal ponto que nos últimos quinze anos de sua vida ainda se mete numa infeliz disputa com o monge Pelágio, que defende a liberdade. O grande escritor se afunda no fundamentalismo e termina sua vida no amargor, como se pode verificar lendo as Confissões. Mesmo assim, as lideranças católicas se empolgam com Agostinho, pois ele confere uma aparência de legitimidade ao que de fato acontece na igreja em termos de dominação e poderio. No entusiasmo do momento, poucos percebem que a ‘cidade de Deus’ é na realidade uma cópia da sociedade imperial romana, onde os súditos obedecem e se submetem à vontade dos governantes.

O sonho de Agostinho se concretiza na paróquia. A paróquia é a expressão mais clara do projeto católico. É um reduto. O viajante pelo interior da Europa pode observar como as casas, nas aldeias, se agrupam em torno da igreja paroquial. Parecem pintinhos em baixo das asas da galinha. O ‘pastor’ cuida das ovelhas (os paroquianos) e os defende diante dos perigos de fora. A paróquia é uma defesa, ela defende a ‘cidade de Deus’ diante dos ataques da ‘cidade de Caim’, que são os judeus, islamitas, vagabundos e heréticos. A paróquia não é feita para acolher os que pensam de forma diferente, pois o paroquiano costuma ter um comportamento defensivo. Na paróquia, as pessoas se acomodam a uma vida na obediência. Quem não aguenta essa vida vai para a cidade.  As virtudes da paróquia são as virtudes feudais: fidelidade (até a morte), coragem (imagem da espada), proteção ao fraco (cavaleiro medieval), voto perpétuo. A cruz e a espada, as duas espadas, a cruzadas, o bom combate contra os hereges, luta, fraternidade, lealdade, o rei sagrado (padre, bispo, papa). A paróquia é uma távola (tabula) redonda do rei Artur, ou seja, do vigário. Aí Parsifal, Tannhäuser, Tristão (e Isolde), Orlando, Sigfrido são os leigos engajados, destemidos, totalmente dedicados à boa causa. Eles defendem as ovelhas contra os perigos de fora.
Ainda há muito a se comentar sobre esses pontos, mas por enquanto basta dizer que os anos em que Agostinho elabora sua ‘Cidade de Deus’ (de 420 por diante) são fundamentais para a formação da igreja católica tal qual funciona até nossos dias.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/

terça-feira, 26 de julho de 2016

O ESPÍRITO DAS OLIMPÍADAS

Por Marcelo Barros


Apesar de que os jogos olímpicos só começarão na sexta feira, dia 05 de agosto, tanto o Rio de Janeiro, como todo o Brasil, já respiram o clima das olimpíadas. Já estamos recebendo delegações de diversos países e uma multidão de expectadores que vêm acompanhar os jogos e torcer pelos diversos países. Serão 19 dias de competições nos quais ocorrerão 306 tipos de jogos e provas que valem medalhas em 42 modalidades diferentes, comuns às olimpíadas. O Brasil está mergulhado em uma crise política que a maior parte da sociedade internacional identifica, cada vez mais, como golpe parlamentar. O mundo, dominado por um sistema social e econômico desigual e cruel, o sustenta através de um clima de insegurança permanente. Depois dos ataques terroristas em Nice, na França, as autoridades reforçam os esquemas de segurança nas Olimpíadas no Rio de Janeiro. E até quem viaja de avião dentro do Brasil já sente medidas mais restritivas de segurança. Apesar disso, o esporte continua dando sinais e exemplos de convivência democrática e fraterna. Nesses dias, no futebol entre Portugal e Alemanha, o jogador que fez o gol decisivo da vitória nasceu na Guiné-Bissau. E Cristiano Ronaldo dedicou a vitória a todos os imigrantes. Um sinal bom contra a xenofobia e o racismo. Quem sabe, a Europa aprende a passar da convivência nos esportes à convivência cidadã? Nos jogos olímpicos, essa vocação de paz e universalidade é fundamental.

Em toda a história da humanidade, o esporte sempre foi um espaço de relação entre diferentes povos e culturas. E a própria bandeira olímpica, formada por cinco anéis entrelaçados, representa os cinco continentes e suas cores e mostra como a unidade pode ser vivida na diversidade.

A história dos jogos olímpicos se mescla com muitas lendas. Conforme reza a tradição, já no século VIII antes de nossa era, os gregos organizavam jogos com  a participação de atletas das muitas cidades independentes do país. Havia vários tipos e modalidades de jogos. Na cidade de Olímpia, de quatro em quatro anos, se realizavam os mais famosos, dedicados a Zeus, o deus supremo dos gregos. Esses costumes duraram ao menos até o domínio romano, quando imperadores cristãos consideraram esses jogos dedicados a um deus pagão como expressões de idolatria e os proibiram. Eles só foram retomados no final do século XIX. Mesmo tendo sido interrompidos em tempos de guerra, eles continuaram até agora e cumprem uma missão de integração e paz. Como nada fica alheio à conjuntura política, os próprios jogos já sofreram interferências políticas e até atentados terroristas. De todo modo, atletas e expectadores apostam na bandeira da paz e continuam a encantar o mundo com esse espetáculo de profissionalismo esportivo e cultura de paz.

Sem dúvida, já era de se esperar que grupos ligados à repressão tentassem criar um clima de terror. Espalham que os grupos de esquerda (sempre eles) tentarão fazer protestos e que as favelas (sempre o mundo dos pobres) estão cheias de africanos suspeitos e possibilidades de violência. Em 2014, a própria imprensa criou esse clima pesado e negativo com relação à Copa Mundial de Futebol. Apesar de alguns  episódios de protestos, absolutamente legítimos em qualquer sociedade democrática e nesse caso muito fortemente reprimidos pela polícia, o evento da Copa do Mundo transcorreu de forma pacífica e o Brasil deu ao mundo inteiro a imagem de um país hospitaleiro e fraterno. Embora tenhamos mudado para pior e o ambiente nacional seja mais repressivo, esperamos que, ainda dessa vez, predominem a paz e a irmandade internacional. É preciso que não aceitemos entrar nesse clima de pânico e prevenção que acaba em uma espécie de guerra preventiva, tão ao gosto de todos os que vivem da violência. Sem dúvida, no mundo atual, não se pode descuidar da segurança. As Forças Armadas garantem 38 mil homens e mulheres na vigilância do Rio de Janeiro nos dias dos jogos. No entanto, é importante apostarmos na paz e no diálogo entre os povos.

 Para os diversos caminhos de espiritualidade, a competição não é um valor positivo. Ela deve ser substituída pela colaboração. No entanto, nos esportes, a competição com um time adversário tem um objetivo que vai além do vencer o outro. E todos acabam aprendendo com todos. Quase todas as modalidades de esportes são treinadas em comum e os/as atletas aprendem uns com os outros a se apoiarem e se fortalecerem juntos na luta comunitária. No Novo Testamento, a imagem dos jogos foi usada pelo apóstolo Paulo para falar da nossa esperança cristã. Ele escreveu aos coríntios: "Vocês não sabem que nos estádios, todos correm, mas somente um ganha o prêmio? Todos correm para conquistar uma taça (um prêmio). Para ganhar uma coroa corruptível, os atletas se abstêm de tudo. Nós fazemos isso para alcançarmos uma coroa que é imperecível" (1 Cor 9, 24- 25).  

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 

segunda-feira, 25 de julho de 2016

VIVER: UM PERIGO CADA VEZ MAIOR

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 


             E agora foi a Festa Nacional Francesa: o 14 Juillet, a Queda da Bastilha em 1789, inicio da Revolução Francesa.  Em Paris havia arquibancadas no Champs Elysées para o desfile.  Em todas as cidades do país, comemorações.  Em Nice, na tradicional Promenade des Anglais, os fogos de artifício, programa das famílias, havia terminado e todos voltavam tranquilos para casa,  quando irrompeu o caminhão dirigido por Mohamed Lahouaiej Bouhlel, em velocidade furiosa por mais de dois quilômetros.

E a festa cívica transformou-se em uma quantidade impressionante de corpos mutilados, muitos deles de crianças.  Os feridos foram levados aos hospitais e os parentes iniciaram a via dolorosa para encontrá-los ou pelo menos saber notícias. Crianças gritavam desesperadas, perdidas de seus pais.  Um carro de bebê foi encontrado e resgatado por uma senhora, e os pais conseguiram encontrar o filho perdido no pânico.  Os habitantes da cidade abriam as portas para acolher os que fugiam desesperados.

O mundo soube horas depois.  As vítimas começaram a ser identificadas e as autoridades a se pronunciarem. E o Estado Islâmico a reconhecer a autoria.  Todos nós, observando, tínhamos a estranha sensação de já haver visto este filme, estas cenas, este enredo de horror.  Assim foi em Paris em novembro de 2015. Em Bruxelas, no metrô, poucos meses depois, e na redação do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015.  E etc etc etc.

Sempre a sensação do susto, da surpresa nefasta, do lugar escolhido a dedo para ter força simbólica, em macabra coerência, o terrorismo não quer apenas matar e destruir pessoas físicas.  Quer atingir símbolos, estilo de vida, valores, tudo aquilo que compõe a identidade cultural de uma nação.  Não mata apenas homens e mulheres, mas atinge em cheio a liberdade de expressão, o lazer, o prazer de viver, a participação em uma comemoração lúdica e patriota. Faz-se presente com seu potencial destruidor ali onde não seria esperado que estivesse, onde não era esperado, onde não havia por que estar presente.

Por isso, colhe as pessoas no exercício de sua identidade mais profunda, vivendo seus valores mais arraigados e queridos, atingindo não só as vidas, mas a forma como as pessoas escolheram viver suas vidas.  É como se dissesse: nada mais de lazer, de casa de shows, de restaurantes ao ar livre, de festas cívicas com fogos de artifício.

Como pode uma população defender-se contra isso?  Como, se justamente a estratégia é anular a capacidade de defesa, embotar a inteligência que procura antecipar-se à ação do terror, cercear a vigilância que sempre sai ludibriada?  Como se nada é coerente, se nada faz sentido, se tudo é um festival de perplexidades?

Por isso, mesmo é o terrorismo tão difícil de ser combatido.  Em situações como a nossa, na cidade e no país, a violência também é terrível e altamente mortífera.  Mas há algumas convergências que pelo menos nos permitem gestos e ações de autoproteção, que se não dão segurança real, pelo menos fazem efeito psicológico: não levar dinheiro consigo, não caminhar em certos lugares quando já é noite, não andar na rua e sim no shopping, não saltar do ônibus em lugares isolados, colocar trava elétrica nos carros para trancá-los.

 Porém, o que acontece na Europa e, sobretudo em certos países como a França, é diferente.  O perigo pode estar em qualquer tempo e espaço.  Todo lugar, toda situação é perigosa.  E quando se vê, a vida como um todo é perigosa e as pessoas passam a viver acuadas, com medo e insegurança permanentes.  As famílias voltam de férias antes da hora porque houve atentados.  E os que não voltam não conseguem mais aproveitar as férias.  Os terraços dos bares já não são cenários de despreocupação e alegria. Sobre eles pesa o estigma do acontecido em outros terraços, em outros espaços destinados ao lazer e à alegria de viver.

A lógica do terror é incompreensível e inassimilável.  Porque seu objetivo é o terror mesmo. A morte é parte do jogo.  O que importa é semear a insegurança e o medo, e transformar o mundo em espaço de perigo. Os desdobramentos de Nice não se sabe quais serão.  Em termos de discursos parecem bem semelhantes aos eventos anteriores.  Será, porém, que as potências ocidentais pretendem assumir ações efetivas, tais como fazer mudanças nas políticas migratórias, alterar seu modelo de vida a fim de incluir os que até agora se sentem intrusos e indesejados?  Em nome das vítimas, sobretudo das crianças de cá e de lá, que tiveram suas vidas e seu futuro roubados, é de se esperar e de se rezar por um SIM.

   Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de Teologia e literatura - Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)   
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