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sábado, 30 de maio de 2020

TEUS ALTARES: CONFISSÃO A UMA AMIGA



 

por Kinno Cerqueira

 

 

Maria,

Nossa amizade não é tão antiga. Durante a minha infância, não nutri tanta simpatia por ti nem te olhei com ternura. Ocorria-me como repugnante que tu, sendo mãe dos pobres, habitasses os altares portentosos que se erguiam em teu louvor. E que, elevada à altura das frontes humanas, recebesses louvores e glórias, cantos e palmas, petições e promessas, mimos propícios para a satisfação de teu ego feudal.

 

Com o passar do tempo, comecei a perceber que os

mimos com os quais te acercavam eram, na verdade, expressão dos desejos egóicos dos que se queriam deuses. Dor inaudita rasgou-me o coração quando da descoberta de que aqueles altares não eram tua morada, mas teu tenebroso cativeiro.

 

Agora, Maria, descortinava-se diante de mim tu mesma, nua, suja,  indigente, camponesa. Descobria teus verdadeiros altares: os corpos mutilados pelas injustiças e as vozes que se erguem destemidas em prol de um mundo novo.

 

Maria,

Sem mimos nem panos nem altares, a nossa amizade nasceu qual clandestina açucena a romper a terra seca para embelezar o mundo.

 

Com ternura,

Teu amigo

 

 

Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos


sexta-feira, 29 de maio de 2020

UMA LEITURA DE CEGO DA ENCÍCLICA ECOLÓGICA LAUDATO SI


Por Leonardo Boff

              

Um cego capta com as mãos ou com seu bastão as coisas mais relevantes que encontra pela frente. Pois assim tentaremos fazer uma leitura de cego acerca da encíclica ecológica do Papa Francisco, Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum, cujos 5 anos (24/05/2015) acabamos de celebrar. Quais são seus pontos relevantes?

Antes de tudo, não se trata de uma encíclica verde que se restringe ao ambiente, predominante nos debates atuais. Propõe uma ecologia integral que abarca o ambiental, o social, o político, o cultural, o cotidiano e o espiritual.

Quer ser uma resposta à generalizada crise ecológica mundial porque “nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum, como nos últimos dois séculos”(n.53); fizemos da Casa Comum “um imenso depósito de lixo (n.21). Mais ainda:”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia… nosso estilo de vida insustentável só pode desembocar em catástrofes”(n.161). A exigência é de “uma conversão ecológica global”(n.5;216)) que implica “novos estilos de vida”(repete 35 vezes) e “converter o modelo de desenvolvimento global”(n.194).

Chegamos a esta emergência crítica por causa de nosso exacerbado antropocentrismo, pelo qual o ser humano”se constitui um dominador absoluto”(n.117) sobre a natureza, desgarrado dela, esquecendo que “tudo está interligado e por isso ele “não pode se declarar autônomo da realidade”(n.117;120). Utilizou a tecnociência como instrumento para forjar “um crescimento infinito…o que supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta que leva a espremê-lo até ao limite para além dele”(n.106).

Na parte teórica, a encíclica incorpora um dado da nova cosmologia e da física quântica: que tudo no universo é relação. Como num ritornello insiste que “todos somos interdependentes, tudo está interligado e tudo está relacionado com tudo “(cf. nn.16, 86,117,120) o que confere grande coerência ao texto.

Outra categoria que constitui um verdadeiro paradigma é o do cuidado. Este, na verdade, é o verdadeiro título da encíclica. O cuidado, por ser da essência da vida e do ser humano, segundo a fábula romana de Higino, tão bem explorada por Martin Heidegger em Ser e Tempo é recorrente em todo o texto da encíclica. Vê em São Francisco “o exemplo por excelência do cuidado”(n.10).“Coração universal…para ele qualquer criatura era uma irmã unida a ele por laços de carinho, sentindo-se chamado a cuidar de tudo o que existe”(n.11).

É interessante observar que o Papa Francisco une a inteligência intelectual, apoiado nos dados da ciência, à inteligência sensível ou cordial. Devemos ler com emoção os números e relacionarmo-nos com a natureza “com admiração e encanto (n.11)…prestar atenção à beleza e amá-la pois nos ajuda a sair do pragmatismo utilitarista”(n.215). Importa “ouvir tanto o grito da Terra quanto o grito dos pobres”(n.49).

Consideremos este texto, carregado de inteligência. emocional:”Tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos, como irmãos e irmãs, numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também com terna afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio, e à Mãe Terra”(n.92). Importa “incentivar uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade”(n.231), pois assim “podemos falar de uma fraternidade universal”(228).

Por fim, é essencial à ecologia integral a espiritualidade. Não se trata de derivá-la de ideias, mas “das motivações que dão origem “a uma espiritualidade para alimentar a paixão pelo cuidado do mundo…Não é possível empenhar-se em coisas grandes, apenas com doutrinas sem uma mística que nos anima, sem uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária”(n.216). Novamente evoca aqui a espiritualidade cósmica de São Francisco (n.218).

Concluindo, releva enfatizar que com esta encíclica, ampla e detalhada, o Papa Francisco se coloca, como notáveis ecologistas o reconheceram, na vanguarda da discussão ecológica mundial. Em muitas entrevistas, referiu-se aos riscos que corre nossa Casa Comum. Mas sua mensagem é de esperança:”caminhemos cantando, que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta, não nos tirem a alegria da esperança”(n.244).

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu:Francisco de Assis e Francisco de Roma, Mar de Ideias, Rio 2014.

 


quinta-feira, 28 de maio de 2020

COVID 19 - HOMILIA DE PENTECOSTES EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


Por Frei Aloísio Fragoso

 

     Logo mais iremos cantar com especial emoção "A Nós Descei Divina Luz".

     Para nossa sensibilidade religiosa, foi uma dor na alma não ter podido celebrar festivamente a PÁSCOA do Senhor, há semanas atrás, assim como o é, neste próximo domingo, não poder celebrar PENTECOSTES. Isso sob o olhar da tradição, porque, sob a luz da Fé, nunca tivemos uma oportunidade tão viva de estar em comunhão com o Senhor morto e ressuscitado, bem como aguardar, ardentemente, a vinda do Espírito Santo, com seus 7 dons.

     Desta vez, no entanto, em lugar de manter o estilo de nossas seguidas "REFLEXÕES", gostaria de sentir-me diante de uma grande assembléia litúrgica, e proferir a seguinte homilia:

     Queridos irmãos e irmãs. Hoje não quero lhes falar "sobre" o Espírito Santo. Dele não sei nada, nada que me faça capaz de dizer quem Ele é, como Ele é, e outras curiosidades teológicas. Quero, antes, convidar vocês para falar "ao" Espírito Santo, suplicar-lhe que venha com urgência até o nosso cenáculo, pois estamos isolados e amedrontados, como estavam os apóstolos, depois da Ascensão de Jesus. O Espírito desceu sobre eles, em forma de línguas de fogo, e ficaram todos transfigurados com a sua presença. É isso o que queremos: ser transfigurados.

     Alguns teólogos contemporâneos vêem no Espírito Santo a expressão feminina da Trindade. O Pai é o Amante. O Filho é o Amado. O Espírito Santo é o Amor. E este Amor se manifesta com palavras do gênero feminino, como ternura, misericórdia, gratuidade, mansidão, paciência, e assim por diante. Usemos então a linguagem do coração.

     Quando observou a tristeza dos apóstolos, na Última Ceia, por causa da sua despedida, Jesus prometeu-lhes enviar o Espírito Santo. Este viria esclarecer suas mentes sobre tudo que eles não tinham compreendido até aquele momento. E sua tristeza se converteria em grande alegria; em outras palavras, seriam novamente transfigurados.

     O Espírito veio de fato, mas não agiu como em um passe de mágica, não! Pelo que aconteceu logo a seguir, podemos imaginar quais teriam sido as suas palavras: "o que vocês estão fazendo aí, trancados como crianças medrosas?  Levantem-se e andem!". Para eles tinha passado o tempo do isolamento, pois o vírus dos fariseus, dos doutores da lei, dos sacerdotes do Templo, de Pilatos, de Herodes e dos Cesáres romanos já não fazia nenhum efeito nocivo nos seus seguidores. Eles estavam vacinados pela Fé na Ressurreição. Quanto a nós, não chegamos ainda a este ponto, temos que esperar mais algumas semanas, para termos direito também à nossa transfiguração. Contudo, esta começa a partir de nós mesmos, da nossa abertura, da nossa fidelidade, da nossa perseverança.

     Esta semana fiquei impressionado com a interpretação de uma jovem amiga ao otimismo que perpassa em nossas "REFLEXÕES": "entendo este otimismo, frei, como o olhar do Espírito Santo sobre as realidades humanas". Uma excelente idéia esta, que nos leva a perguntar: como podia ser diferente o seu olhar sobre Algo que tem origem Nele mesmo? Por outra parte, este olhar divino nos ilumina e estimula a realizar as mudanças indispensáveis, a fim de que seus dons não sejam inutilizados pela nossa passividade.

     Ao rezar com a Igreja "Enviai o vosso Espírito e tudo será criado, e renovareis a face da terra", estamos afirmando nossa fé de que Ele penetra em todos os seres, em todas as almas. Isso Ele faz, segundo outras passagens bíblicas, à maneira de um fogo ardente, de uma água corrente, de uma brisa suave. Não há nenhum espaço que não possa ser ocupado pela sua presença, exceto ali onde ela seja rejeitada.

     Contudo, não basta proclamar a ação global do Espírito Santo. Ele quer operar em cada um de nós, particularmente. "Vós não sabeis que sois templos do Espírito Santo e que o Espírito de Deus habita em vossos corpos?" 1Cor.3,16.

     Este nosso frágil corpo, capaz, no entanto, de imaginar as mais belas fantasias, de criar idéias poderosas, de realizar grandes façanhas, por vezes desfalece, fraqueja, desanima, deprime-se, entrega os pontos. Há momentos em que ele é contagiado por um vírus chamado "tédio de viver neste mundo" e tem vontade de isolar-se ou desaparecer. É aí que temos de lembrar onde se encontra o  nosso poder de conversão: o Espírito de Deus habita em nós, seus templos. Nele tudo se renova. Nele tudo se refaz!

     Que Ele venha visitar-nos com força total. Que venha agora, quando somos humilhados e enfraquecidos por um sentimento de impotência, uma sensação de que estamos perdendo os rumos e as rédeas do nosso destino. Que, entre outras coisas, livre-nos dessa crosta de insensibilidade  e hipocrisia, que trava nossa confiança no futuro do país. Amém? Não! Ainda não! Resta fazer uma advertência: nada de desânimo! Nada de pânico! Além da quarentena, precisamos manter a calma e o foco. A calma está em nós, o foco é Ele, o Espírito Santo de Deus. Como tem acontecido numerosas vezes no passado, Ele só espera o momento de nos surpreender outra vez com seu Fogo Incandescente. Apressemos este tempo de espera, pelo poder da Fé, suplicando com Santo Agostinho:

     "Oh como és grande nas coisas grandes e profundo nas coisas pequenas! Jamais te afastaste de nós, nós é que penamos para retornar a Ti. Age em nós, Espírito Divino! Agora! Agita-nos! Convoca-nos! Dá-nos tua Luz! Faze-nos sentir teu poder e tua doçura! Então poderemos nos amar e correr alegres pelas verdes pastagens!"

Amém!

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 


ÉTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA


Por Frei Betto

 

            A pandemia causada pelo coronavírus veio nivelar a humanidade. E suscitar sérias questões éticas. Não faz distinção de classe, como a anemia e o raquitismo, que resultam da fome; ou de gênero, como as doenças da próstata.

            Trata-se, agora, de enfrentar um inimigo invisível que exige urgente mobilização global para deter o seu avanço. E é em momentos de crise como este que as pessoas se revelam.

            A questão ética fundamental que a pandemia levanta é quanto ao valor da vida humana. Para o capitalismo, em si tem valor zero, a menos que revestida de adereços com valor de mercado e robustecida por bens patrimoniais e financeiros. Prova disso é o descaso humano em nossas cidades, cujas calçadas se enchem de pessoas maltrapilhas que sobrevivem da caridade alheia. Não têm valor nenhum e, ao cruzar com elas, muitos evitam se aproximar, receiam o mau cheiro e o assédio. 

            Suponhamos que um deles ganhe uma fortuna na loteria e, pouco depois, apareça a bordo de um reluzente Mercedes Benz. Imediatamente passará a ter valor social e ser reverenciado pelo respeito e pela inveja de quem o observa. Portanto, eis o patamar antiético ao qual o sistema capitalista nos conduz: valemos pelo que portamos e não pelo simples fato de sermos humanos.

            Agora, o espectro da morte nos nivela. A devastação letal provocada ocupa praticamente todo o noticiário. Somos todos obrigados a redimensionar nossos critérios, valores e hábitos. Até as nações mais ricas descobrem que o dinheiro não é suficiente para evitar a pandemia. Só a ciência é capaz de detê-la, mas andava muito ocupada em descobrir, nos laboratórios, como aumentar os lucros das empresas farmacêuticas, enquanto faltavam recursos para combater a fome e o aquecimento global.

            A Itália nos mostrou como a pandemia coloca sérios dilemas éticos. Médicos e enfermeiros tiveram que optar entre um e outro paciente, devido à falta de recursos suficientes. E nossos parentes e amigos infectados devem padecer sozinhos nos hospitais, sem que possamos consolá-los, exceto pelo celular quando ainda não entraram no respiradouro. 

           Os falecidos, não temos direito de pranteá-los no velório e nem mesmo cumprir seus últimos desejos, como ser enterrados ou cremados com tal roupa ou símbolo religioso. Como se fossem anônimos, são descartados tal como ocorria na Idade Média com os infectados pela peste. Estão proibidos de rituais fúnebres. Assim, o Covid-19 rouba-lhes a dignidade. E nos apunhala ao nos obrigar a ficar afastados de quem somos mais próximos. É uma tríplice morte: a individual, do paciente; a familiar, dos ausentes; a social, causada pela interdição de velório, enterro e culto religioso.

            Outra dimensão ética suscitada pela pandemia é o conflito entre solidariedade e competitividade. Todos conhecemos gestos meritórios de solidariedade visando a aplacar o nosso isolamento e favorecer o socorro às vítimas, como o da jovem do apartamento 404 que, todos os dias, prepara a refeição da idosa do 302, obrigada a dispensar a cozinheira; o empresário que distribui quentinhas aos moradores das ruas de sua vizinhança; o universitário que se apresentou como voluntário em um hospital disposto a carregar macas e limpar enfermos. Ou como o do bombeiro carioca Elielson dos Santos que, do topo da escada Magirus, oferece músicas com seu trompete a moradores do Rio. 

            Há que ressaltar também a solidariedade entre países que enviaram recursos a outros povos, especialmente Cuba, que deslocou centenas de médicos para reforçar o socorro na Itália, na Espanha, na França e em muitos outros países.

            No entanto, falou mais alto a competitividade, valor supremo do capitalismo. O chinês Jack Ma, fundador da plataforma de vendas online Alibaba e um dos homens mais ricos do mundo, ofereceu gratuitamente kits de testes para diagnosticar Covid-19 e respiradores a 50 países, inclusive Cuba. Porém, a transportadora aérea era de bandeira usamericana, e a Casa Branca, desprovida do mínimo senso humanitário, valeu-se do genocida bloqueio imposto à ilha do Caribe para impedir que a carga chegasse a seu destino. 

            Em nome de caprichos políticos, sacrifica-se a vida de nações. Algo semelhante ocorreu com o governo da Bahia, que comprou equipamentos da China no valor de R$ 42 milhões. Ao passar de navio pelos EUA, a encomenda foi apropriada pelo governo da nação imperial.

            As implicações éticas suscitadas pela pandemia se assemelham às de situações de guerra. O governo Bolsonaro, monitorado pelo FMI, havia aplicado ao Brasil rigoroso ajuste fiscal coroado pelo teto de gastos e os juros elevados. Desde a posse alegava não ter dinheiro e precisar promover reformas, como a da Previdência, para poupar recursos. 

            Dinheiro nunca falta quando se trata de pagar os juros da dívida pública e saciar o voraz apetite dos bancos. Desde que assumiu o Ministério da Economia, Guedes transferiu para os bancos R$ 433 bilhões, dinheiro do povo sonegado da educação, da saúde, do saneamento etc. O que vale mais, o lucro dos bancos ou a vida de milhões de brasileiros? 

            O combate à pandemia exigiu medidas urgentes e, como por milagre, apareceu R$ 1,3 trilhão! Recursos há, mas não vontade política de quem qualificou a pandemia de “gripezinha” e demonstrou não se importar com a morte em proporções geométricas.

            Deixo à nossa reflexão o poema “Esperanza”, do cubano Alexis Valdés:

 

Cuando la tormenta pase

Y se amansen los caminos

y seamos sobrevivientes

de un naufragio colectivo.

 

Con el corazón lloroso

y el destino bendecido

nos sentiremos dichosos

tan sólo por estar vivos.

 

Y le daremos un abrazo

al primer desconocido

y alabaremos la suerte

de conservar un amigo.

 

Y entonces recordaremos

todo aquello que perdimos

y de una vez aprenderemos

todo lo que no aprendimos.

 

Ya no tendremos envidia

pues todos habrán sufrido.

Ya no tendremos desidia

Seremos más compasivos.

 

Valdrá más lo que es de todos

Que lo jamás conseguido

Seremos más generosos

Y mucho más comprometidos

 

Entenderemos lo frágil

que significa estar vivos

Sudaremos empatía

por quien está y quien se ha ido.

 

Extrañaremos al viejo

que pedía un peso en el mercado,

que no supimos su nombre

y siempre estuvo a tu lado.

 

Y quizás el viejo pobre

era tu Dios disfrazado.

Nunca preguntaste el nombre

porque estabas apurado.

 

Y todo será un milagro

y todo será un legado

y se respetará la vida,

la vida que hemos ganado.

 

Cuando la tormenta pase

te pido Dios, apenado,

que nos devuelvas mejores,

como nos habías soñado.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.

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terça-feira, 26 de maio de 2020

COVID 19 - TRIGÉSIMA - TERCEIRA REFLEXÃO - PENTECOSTES EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


por  Frei Aloísio Fragoso

    No próximo domingo celebraremos a festa de Pentecostes. Eu não vacilaria um instante em invocar o Espírito Santo para término e coroamento destas "REFLEXÕES", que chegam hoje ao sugestivo número de 33. Sem esta Luz Sobrenatural, fazendo a ponte entre mim e os leitores, entre o dom da palavra e o dom do entendimento, tudo o que está escrito não vai além da pequenez humana e será esquecido em pouco tempo.

     VINDE, ESPÍRITO SANTO!

     Se pedirem uma definição Dele, não haverá resposta. Nós que  mal conhecemos os segredos do nosso espírito, como poderíamos definir o Espírito Divino? Contudo se, desinteressados de saber quem Ele é, perguntarem o que Ele faz, com certeza numerosas testemunhas se apresentarão prontas a declarar: "algumas coisas já me aconteceram que não encontram explicação, a não ser crendo que um Ser Superior entrou na minha vida."

     Quando nos faltam palavras determinativas, recorremos a metáforas, imagens, alegorias. Assim, no livro do Gênese, a ação do Espírito Santo é simbolizada pelo substantivo "ruah", que significa vento, hálito, sopro. Já no Evangelho de Mateus 3,16, esta presença é representada na figura de uma pomba. Por fim, no dia de Pentecostes, Ele aparece aos Apóstolos em forma de línguas de fogo. Mergulhemos na simbologia destas imagens. SOPRO VITAL,  uma vez acionado, dá origem a toda nova vida. FOGO, queima, destrói, mas também ilumina, purifica, transforma. E a SUAVE POMBINHA,  simbolizando o anseio maior do espírito humano, a Paz. O Espírito Santo está, pois, no início, no percurso e no fim da História Universal.

     Diante desta visão de um Espírito em constante movimento, temos direito a levantar algumas questões da ordem do dia: onde é que Ele se encontra neste momento? Como perceber seu sopro poderoso neste nosso planeta mal-assombrado pela presença de um fantasma tenebroso?

     Talvez Ele esteja abrindo nossos olhos para algumas verdades que, de tão cegos, surdos e mudos,  em tempos normais, nós só conseguimos enxergar em situações de grandes crises. Antes de avaliar estas verdades, consideremos o seguinte: não devemos esperar, da parte do Espírito Santo, consolações lamuriosas, de quem muda nosso choro em risos, fazendo-nos esquecer suas causas. Ele quer nossa cura definitiva e isso não é possível por meio de paliativos e sim de mudanças radicais, mormente quando se trata de extirpar pela raiz as causas morais de nossas enfermidades.

     Não temos o controle dos acontecimentos da História, sejam eles produzidos por mãos humanas, sejam desencadeados pelas forças da natureza irracional. A parte que depende de nós, de nossa fé, coragem, iniciativa, é um instantezinho de nada, um pequenino pingo d'água perdido nos oceanos de milhões de anos. Embora devamos assumir nossa tarefa de operários em construção,  o fio condutor da História está nas mãos de um Ser Supremo que garante seus resultados.

     Em nosso brevíssimo tempo de ver as coisas, só enxergamos o COVID 19 como ele de fato aparece aos nossos olhos, uma enorme e escura catástrofe. No entanto, como ele será avaliado pelas futuras gerações? Talvez elas venham a provar que o coronavirus não foi a causa incipiente de tantas dores e mortes e sim consequência do nosso modo de viver e organizar o mundo. Por outro lado, poderão ser generosas conosco, e absolver-nos da culpa, pelo fato de que muitos de nós arriscaram ou até sacrificaram suas vidas, e, com isso, apressaram a descoberta da vacina salvadora, poupando os nossos descendentes de uma terrível pandemia que, se hoje nos surpreendeu, poderia surpreendê-los, algum dia.

     Se o modelo que escolhemos para o desenvolvimento humano tivesse priorizado, em lugar do poder e do prazer, o bem real das pessoas, sua saúde física e mental e as relações harmoniosas entre elas, talvez já tivéssemos descoberto os meios eficazes de superar esta  e outras pandemias possíveis. Na última hora, olhamos para trás e temos de reconhecer: como somos pequenos, nós que nos julgávamos reis onipotentes da Criação!

     Segundo um dos relatos do livro do Gênese, após criar diversas categorias de seres, Deus contemplou sua obra e "viu que tudo era muito bom". Repete esta expressão até chegar a vez de criar o homem e a mulher. Aí Ele se cala. Podemos entender esta simbologia como um aviso de que nós, seres humanos, ainda não fomos criados,  nosso processo de criação ainda não terminou, ainda não "somos muito bons" porque fomos criados para a perfeição e agora somos nós os responsáveis de levá-lo adiante, até o seu acabamento. Como é normal na gestação e no parto de novas vidas, é inevitável que haja riscos, medos e sofrimentos.

     Há um profundo significado teológico em algumas cenas da Paixão e Ressurreição de Jesus. Depois de flagelado, escarnecido e coroado de espinhos, Ele é levado a Pilatos e este exclama: "ECCE HOMO!" (Eis o homem!). Quando, após a Ressurreição, o apóstolo Tomé o reconhece, crê e exclama  "MEU SENHOR E MEU DEUS!", (como se dissesse "Eis o Deus!"), Jesus aponta os sinais de suas chagas e lhe diz "olhe aqui, toque aqui, por que duvidaste?". Enquanto homem e enquanto Deus, Ele se faz reconhecer nas marcas do sofrimento humano. Que significa isso? Ele está divinizando o nosso sofrimento? Não! Na verdade, Ele está livrando-nos  do desespero, com a possibilidade sobre-humana de transformar sofrimento em provas de amor.

      Há muita coisa ainda que precisamos entender sob a Luz do Espírito Divino. Voltaremos a este assunto antes do dia de Pentecostes. Até lá, vamos repetir, como um mantra, de face voltada para o nosso mundo enfermo: VINDE, ESPÍRITO SANTO....

Amém.

  Amém. FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 


SEMANA DA UNIDADE EM TEMPOS DE ISOLAMENTO


 

Por Marcelo Barros

 

 Cada ano, no Brasil, a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, promovida pelo Conselho Nacional de Igrejas (CONIC), cai nestes dias em que preparamos para a festa de Pentecostes (próximo domingo). Desta vez, a Semana da Unidade cai nestes tempos de quarentena e nos propõe meditarmos sobre o tema: Gentileza gera gentileza. 

 

Neste período em que o mundo inteiro parou em quarentena obrigatória para evitar a contaminação do coronavírus, as Igrejas cristãs têm sido chamadas a se unirem na solidariedade a grupos mais vulneráveis. Além disso, o papa Francisco, o patriarca Bartolomeu I, primaz das Igrejas Ortodoxas e pastores evangélicos do Conselho Mundial de Igrejas buscam ajudar à humanidade a sair desta tragédia para novas formas de convivência social. É preciso organizar a sociedade, a partir do cuidado com a mãe Terra e toda a natureza.

Para este trabalho, é indispensável que as Igrejas que se olhavam de longe e cada uma se pensava como autossuficiente se conscientizem que precisam umas das outras. A cada ano, desde os últimos anos do século XIX, algumas Igrejas cristãs consagram os dias anteriores à festa de Pentecostes, portanto esta semana em que agora estamos, à oração e a gestos proféticos pela unidade cristã. No Brasil, a Semana de oração pela unidade é coordenada pelo Conselho de Igrejas Cristãs (CONIC). Cada ano, é proposto um tema ligado à missão comum das Igrejas no mundo. Neste 2020, o tema escolhido e com subsídios preparados por cristãos da ilha de Malta é Gentileza gera Gentileza. Este tema se baseia em um texto do livro dos Atos dos Apóstolos. Ali é narrado que, quando Paulo foi levado como prisioneiro para Roma, afim de ser julgado, o navio no qual ele viajava naufragou. Paulo e um grupo de prisioneiros conseguiu escapar desembarcando em uma ilha desconhecida que encontraram no caminho. Os habitantes da ilha os acolheram com toda hospitalidade e gentileza (At 28, 2). A partir desta história que está na mesma Bíblia, lida pelas mais diferentes Igrejas, esta atual Semana da Unidade propõe exercitarmos em nossas vidas essa atenção aos irmãos e irmãs que precisam da nossa hospitalidade e gentileza.

Atualmente, existe o isolamento provocado pela pandemia do Coronavírus e existem isolamentos forçados pelo modo como o mundo se organiza. A ONU acaba de reconhecer que 1% da humanidade se acha com o direito de se apropriar e usufruir de 90% de todas as riquezas do planeta, enquanto deixam os outros 10% para a multidão dos 99% dos habitantes da terra. Para isso ser possível, os países globalizam o comércio. Assim os ricos ganham mais. No entanto, criam barreiras para conter a horda de pobres e famintos que tentam sobreviver no mundo dos ricos. Em todos os continentes, se erguem muros que separam povos. Atualmente, na América do Norte, um muro imenso separa os Estados Unidos do México. Na Europa, uma muralha foi construída para isolar a Espanha do Marrocos e outro muro separa a Grécia da Turquia. No Oriente Médio, a Cisjordânia ainda palestina é separada por muro de Israel. Na Ásia, um muro eletrificado divide em dois o mesmo país e separa a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. Assim, se contam pelo mundo 18 muros que não reconhecem o outro ser humano como irmão. De acordo com a Declaração dos Direitos Humanos, assinada pela ONU em 1948, todo ser humano teria direito de migrar de um país a outro. Hoje a solidariedade aos migrantes, em países como a Itália, pode ser crime passível de prisão. Por isso, o tema desta Campanha da Fraternidade sobre gentileza como proposta cristã se torna um grito profético: Gentileza gera gentileza.

No Brasil,  nestes dias, alguns governantes e empresários preferem salvar o lucro do comércio, mesmo à custa de milhares de vidas humanas. O presidente e os cristãos que o cercam condenam milhares de brasileiros, principalmente os mais pobres e vulneráveis à morte, enquanto gritam: Deus acima de todos!  Esta Semana da Unidade vem nos recordar uma palavra de Simone Weil, intelectual francesa da primeira metade do século XX. Ela afirmava: “Eu reconheço quando alguém é de Deus não por me falar de Deus e sim pelo modo como trata as outras pessoas”.

Esta Semana de oração pela Unidade dos Cristãos nos interpela a sairmos de nosso fechamento eclesiástico. Pede de nós reconhecer os cristãos e cristãs de outras tradições como irmãos e irmãs. Recomenda termos a gentileza como estilo de vida. E nos chama à unidade, mesmo em meio a todas as diferenças. O projeto é que obedeçamos ao mandamento de Jesus de sermos unidos. Que as Igrejas respeitem a autonomia de cada uma, mas construam juntas uma comunhão. Assim, poderão testemunhar ao mundo a gentileza de Deus conosco e trabalharmos pela justiça, paz e defesa da Terra e da natureza criada e habitada pelo Amor Divino.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


segunda-feira, 25 de maio de 2020

O NECESSÁRIO DIÁLOGO ENTRE A FÉ E A CIÊNCIA


 

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 

O caos que se apossou do Brasil com a chegada do coronavírus apresenta várias dimensões: sanitária, política, ideológica, econômica.  No entanto, há igualmente uma outra dimensão, que eu chamaria aqui de caos do discurso pseudocientífico – em boa parte artificialmente produzido.

 Enquanto os cientistas – médicos, pesquisadores, sanitaristas, técnicos em saúde – explicam à população como se porta a doença, quais as medidas necessárias para combatê-la, outras vozes parecem interferir no processo dessa comunicação adotando uma linguagem que instaura a confusão.   

A ciência é um dos motores do desenvolvimento da humanidade e da vida. Seu progresso tem sido responsável por grandes melhorias na vida humana, sobretudo no decurso do último século, ainda que os frutos desse progresso não tenham sido repartidos equitativamente pelo mundo.  Por outro lado, o mau uso que muitas vezes é feito dos conhecimentos científicos foi, no mesmo século passado, causa das piores provações pelas quais a humanidade teve que passar. Por isso, ainda que o progresso da ciência que a racionalidade moderna possibilitou seja altamente positivo; ainda que se considere correta a afirmação de que a ciência é o motor do desenvolvimento em todas as frentes; os esforços feitos por muitos países e regiões do globo no domínio científico ainda permanecem muito aquém de um mínimo julgado desejável. E boa parte das razões para tal é a manipulação que interesses econômicos, políticos e ideológicos fazem contra a objetividade e a excelência que deve caracterizar toda ciência.  

No momento em que explodiu a pandemia viral, a ciência – a medicina, a biologia, a infectologia e todas as áreas científicas que tratam da vida – ocuparam a linha de frente das atenções.  Buscaram-se orientações, explicações, argumentos lógicos que ajudassem a administrar a tragédia que vivíamos. 

Por outro lado, competições ideológicas e embates políticos, muitas vezes se atravessaram no caminho do trabalho científico.  E isso aconteceu por diversas formas: seja a do obscurantismo, que ataca retoricamente a liberdade de pesquisa científica, seja com políticas públicas retrógradas que cortam verbas e esvaziam institutos e laboratórios de pesquisa.  Em um momento em que a crise ecológica atinge proporções nunca antes vistas, os impactos climáticos são minimizados, e os alertas emitidos pela comunidade científica desprezados como se não fossem evidências objetivas e sim opiniões casuais e não fundamentadas. 

Com o Covid-19 a ciência voltou a ocupar seu papel de baluarte da verdade objetiva e verificável. Tornou-se um refúgio firme para uma sociedade assustada e vulnerabilizada pelo avanço descontrolado da doença e a subida dos números de vítimas fatais. A ciência é, hoje, a linha de frente no combate à pandemia. Fornece à população números, informações, percentagens que permitem ter um quadro do que se passa.  E podem ser vistos ao mesmo tempo inúmeros laboratórios empenhados em encontrar remédios que tratem a doença causada pelo vírus, sequenciando o genoma do vírus em tempo recorde, buscando pelos caminhos da pesquisa apaixonada e responsável uma vacina. 

Há, no entanto, tentativas de travar esse trabalho, muitas delas invocando o nome de Deus.  Contestam-se os dados fornecidos pela ciência, contradizem-se informações precisas e objetivas e se dão orientações conflitantes à população. Afirma-se que Deus salvará a todos do vírus, que o que os cientistas dizem é um exagero, e que o que há que fazer é orar porque Deus nos salvará do vírus.

Desde sempre, em todas as religiões, mas muito concretamente nas religiões monoteístas e mais especificamente no judeu-cristianismo, Deus não se imiscui nos negócios humanos para interferir na ação da própria humanidade na resolução de seus problemas.  O Espírito de Deus inspira, anima, orienta, consola, mas não toma as ferramentas das mãos da humanidade para resolver, em um passe de mágica, as dores e os problemas que essa própria humanidade está passando. 

Toda tentativa ao longo da história de converter Deus em árbitro da ciência, impedindo-a de avançar, já foi suficientemente desmascarada e situada em seu devido lugar: é falsidade e embuste. Assim, governantes despóticos e irresponsáveis que buscam desautorizar os cientistas que dizem a verdade em meio a um momento grave como o que estamos vivendo terão que responder diante do tribunal da história.  E também diante do tribunal divino, que fará cair os véus, desvelando suas tentativas de vendar os olhos do povo com ilusões e falácias, na sua mais atualizada forma: as fake news. 

Em meio à pandemia, a comunidade científica tem construído uma rede sólida de informações, colocando a ciência na vanguarda das políticas de combate à pandemia. Assim, se pode combater o obscurantismo institucionalmente, usando de transparência e honestidade, atualizando constantemente as medidas adotadas e procurando adequar as condições da saúde às reais necessidades decorrentes da própria pandemia.  E a fé não pode estar ausente dessa rede e desse diálogo. 

Falar de Deus em tempos de coronavírus implica  dialogar com a ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe é própria. Não misturar epistemologias ou querer tratar o que releva do campo do biológico com instrumentos falsamente espirituais que matam em vez de curar e alimentam políticas genocidas, empurrando as pessoas para o contágio e muito provavelmente para a morte. 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros

 

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