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sábado, 9 de maio de 2020

COVID - 19 - VIGÉSIMA SEXTA REFLEXÃO - A MORTE EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


 


por Frei Aloísio Fragoso

    A despeito do título acima, não é minha intenção falar sobre a morte e sim sobre alguns segredos que ela esconde, no seu duelo com a vida, e, eventualmente, revela. Nestes tempos de pandemia, as duas andam se encontrando com muita frequência e forçando-nos a proximidade com seus insondáveis mistérios.

     Esta semana ela me tomou um grande amigo e vizinho, na rua onde moro, na Comunidade do Coque. Ela agiu com muita surpresa e rapidez, não devia ter feito isso conosco. Não digo que levasse outro no lugar dele, mas que poupasse o Osvaldo, poupasse o irmão indispensável àquela Comunidade, tão carente de pessoas generosas, sonhadoras e combatentes. Pobre, ele tinha clara compreensão sobre as verdadeiras razões de haver tantos condenados à pobreza, e não recusava transformar em luta sua lucidez.

     Fiz a encomendação do seu corpo (na Fé católica, encomendar um corpo é depositá-lo nas mãos do Pai Celeste). Foi uma cerimônia de cenas inusitadas e comoventes, envolvendo quatro presenças: as duas filhas, o coveiro e o padre. E, naturalmente, a alma dele, não o corpo, pois somente a alma podia explicar a transfiguração daquele momento. Realizei o rito sagrado, pronunciei palavras de Fé e consolação, por meio de dois aparelhos celulares, um em minhas mãos, outra nas de Ceça e Karla, suas filhas, estando eu a uma distância de mais de mil metros. Foi impossível não misturar as preces com as lágrimas.

     Daí vieram as indagações: como chamar estas mortes numerosas, violentas, indiscriminadas causadas pelo coronavirus? Dar aos que se foram os rótulos tradicionais de defuntos, finados, mortos? Seria empobrecer sua memória com palavras inadequadas. Chamá-los simplesmente de "vítimas da pandemia? Não. Eles não são números a ser registrados em relatório funcional ou ata de ofício.

     É de estranhar que não se ouçam gritos de revolta pelas perdas irreparáveis. A revolta parece tranferir-se para outras áreas, como, por ex., a insensibilidade de um Presidente incapacitado e patético.

     Em meio a sensações de impotência, é preciso escutar algumas vozes proféticas, intuindo o futuro. Uma destas intuições vislumbra um mundo que "nunca mais será o mesmo", após a pandemia. Haverá mudanças revolucionárias nos hábitos, com o aprimoramento da qualidade de vida. Reaprenderemos o valor insubstituível das coisas simples, da convivência fraterna, da partilha solidária de sofrimentos e emoções. Teremos chances de construir uma Economia Solidária, do suficiente para todos, em lugar do esbanjamento das minorias.

    Se for esta a nossa convicção (ou nossa firme esperança), então não há mais dúvidas, temos já um nome para designar as vítimas fatais do COVID 19. São MÁRTIRES. No confronto com um Modelo de Desenvolvimento, do qual pode resultar um cataclismo universal, foram sacrificadas, deixando como legado, este grito de alerta: morremos em defesa da Vida, ameaçada por formas enganosas de vivê-la, em um mundo desumanizado. Talvez nossos netos contarão para seus filhos a história de um tempo em que seus avós deram a vida a fim de que eles desfrutassem de uma existência saudável e feliz.

     Neste caso, o clamor destes mártires se assemelha ao de Jesus, no Calvário: "Meu Deus, por que me abandonaste?" E logo a seguir: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito". Este segundo grito de conformação carregava em si a semente da ressurreição. Poucos dias depois, seus discípulos saíram espalhando por toda parte a boa nova que chegou até nossos dias: "O SENHOR ESTÁ VIVO MO MEIO DE NÓS".

     Temos razões de sobra para repetir este mesmo anúncio, ao lembrar os entes queridos que partiram: "ELES ESTÃO VIVOS NO MEIO DE NÓS".    Amém. Frei Aloísio Fragoso.

 

   Segue um poema que este assunto, algum dia, me inspirou:

 

RENASCIMENTO 


As coisas pelas quais em vão cansei

E as outras que alcancei, porém passaram,

Eternas não seriam e floresceram

Pelo tempo em que me ensinaram

 

A ver a vida muito além da minha vida

E as doces ilusões que inda sobraram

Entregues para outras fantasias

Mais claras do que quando a mim chegaram.

 

Quando penso neste fim dos meus instantes,

Se rompem as barreiras do presente

E a morte me parece uma terra santa

 

De outras utopias delirantes,

Onde a seiva do passado ressurgente

Faz cada planta nascer de outra planta.

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 


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