O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

A Eucaristia e o corpo feminino



Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER



     A  Eucaristia não é um ritual íntimo e privado. Pelo contrário, tem implicações profundas e radicais nos  níveis antropológicos e sociais. Além disso, o núcleo do mistério -que a Igreja celebra como o ápice da fé e  sacramento da salvação e do amor - pode ser lida a partir de diferentes perspectivas teológicas. Aqui optamos por fazer isso a partir da perspectiva do corpo feminino. Nossa intenção é demonstrar a afinidade simbólica estreita entre a Eucaristia e o corpo feminino, bem como as implicações políticas desta afinidade.

        Hoje podemos ver que a presença real das mulheres em espaços públicos tem crescido consideravelmente. Isso é verdade na Igreja, bem como na reflexão teológica ou orientação espiritual. O fato é que, em todos os casos, a presença das mulheres dentro do social e dos organismos eclesiais aumentou de forma notável. Além disso, a maneira como as mulheres experienciam Deus e pensam sobre o mistério de Deus está sendo considerada cada vez mais como um objeto de trabalho acadêmico que  inspira toda a vida da Igreja.

     Em um universo onde o corpo é tão visível e, principalmente masculino, as mulheres entram como um fator perturbador. Este "problema" ocorre porque seus corpos são “outros”, expressando e tornando visível a experiência de Deus, o pensamento e o discurso sobre Deus, de uma forma diferente e particular. O corpo feminino torna-se então a condição de possibilidade de as mulheres introduzirem uma identidade específica para a discussão sobre espiritualidade, misticismo, e teologia.

     Este corpo feminino tem sido o "lugar" em que as mulheres exibem as suas experiências de ser "presença real" de Cristo no mundo e na Igreja. No entanto, esses mesmos corpos têm sido, em várias ocasiões, fonte de discriminação que as mulheres sofreram e continuam a sofrer na Igreja. Este é um fato terrível, que exige séria reflexão. Se é possível lutar contra a discriminação intelectual (pelo acesso a estudos e de formação), contra a injustiça profissional (buscando especialização e provar capacidade), o que se pode fazer com o próprio corpo? Além disso, as mulheres devem negar e ignorar seus próprios corpos, criados por Deus para ser honrados e entrar em profunda comunhão com o Criador? 

     As mulheres têm uma maneira de experimentar e falar sobre suas experiências espirituais, que são inseparáveis ​​de seus corpos. Apresentam e tornam visível a  própria corporeidade, quando  falam sobre o mistério de Deus, introduzindo uma novidade para a compreensão da vida espiritual e da ação do Espírito de Deus no mundo. Além disso, esse mesmo mistério  de Deus, afetando e configurando a corporeidade sexuada criada da mulher, revela outros aspectos de sua identidade que enriquecem o Povo de Deus.

     Há uma dimensão da vida cristã em que as mulheres surgem como sujeitos privilegiados, e esta é a identificação da sua corporeidade com o sacramento da Eucaristia. O corpo feminino é a expressão exata do sacramento em termos de transubstanciação" e "presença real" em que o corpo e sangue do Senhor sob as espécies  do pão e do vinho, são dadas ao povo como comida e bebida. Alimentar  outros com o próprio corpo é a suprema forma que  o próprio Deus escolheu para estar  definitiva e ensivelmente  presente no meio do seu povo. O pão que partimos e consumimos, que confessamos ser o corpo de Jesus Cristo, remete-nos para o grande mistério da sua encarnação, morte e ressurreição. É sua pessoa dada como alimento, é a sua vida corpórea  feita fonte de vida para os irmãos.
     Antropologicamente, as mulheres são as que têm em sua corporeidade a possibilidade física de viver e proclamar a ação divina realizada na Eucaristia. Durante todo o processo de gestação, parto, proteção e alimento da vida nova, temos o sacramento da Eucaristia, o divino ato por excelência, acontecendo de novo e de novo.

     Por isso, por causa de sua vocação eucarística expressa corporalmente, as mulheres hoje são chamados a reinventar e recriar, no interior do Povo de Deus, uma nova forma de serviço e ministério. Seus corpos,  fonte de tanta desconfiança e preconceito ao longo da história, são uma forma poderosa e iluminadora para uma Igreja que busca uma linguagem e uma imagética nova para comunicar-se em um mundo secularizado e plural.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. é autora de “Crônicas de cá e de lá” (editora Subiaco), que  pode ser  encomendado diretamente à escritora pelo e-mail –  agape@puc-rio.br – R$ 20,00
Copyright 2013 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br) 

quinta-feira, 30 de maio de 2013

O que é arte?



  por FREI BETTO

     Sabemos, hoje, reconhecer uma obra de arte? O que conta mais, a fama do artista ou a qualidade da obra? Quem decide o valor de uma obra, o prestígio alcançado por ela na mídia ou seus atributos estéticos?

     O jornal Washington Post decidiu testar gosto e cultura artísticos do público. Levou um violinista para uma estação de metrô da capital dos EUA. Durante 45 minutos, ele tocou Partita para violino no. 2 de Bach; Ave Maria de Schubert; e peças de Manuel Ponce, Massenet e, de novo, Bach. 

     Eram oito horas de uma manhã fria. Milhares de pessoas circulavam pelo metrô. Quatro minutos após iniciar o concerto subterrâneo, o músico viu cair a seus pés seu primeiro dólar, atirado por uma mulher que não parou. Quem mais lhe deu atenção foi um menino que teria entre três e quatro anos de idade. Porém, a mãe o arrastou, embora ele mantivesse o rosto virado para o violinista enquanto se distanciava.

     Durante todo o tempo do concerto improvisado, apenas sete pessoas pararam um instante para escutar. Cerca de vinte jogaram dinheiro sem deter o passo. Ao todo, trinta e dois dólares e dezessete centavos no pote a seus pés. Quando cessou a música, ninguém aplaudiu.

     O músico era o estadunidense Joshua Bell que, dois dias antes, havia dado um concerto no Teatro de Boston, lotado de apreciadores que pagaram US$ 100 por um ingresso. Seu violino era um Stradivarius fabricado em 1713 e adquirido por quase US$ 4 milhões. Bell é professor no Massachusetts Institute Technology e na Royal Academy of Music de Londres.
     Bell fez, em solo, a trilha sonora dos filmes O violino vermelho, que mereceu o Oscar, e Mulheres de lavanda. Sua primeira gravação, em 2003, pela Sony Classical, foi Romance of the violin, que vendeu 5 milhões de cópias.
    Bell é um músico de prestígio internacional. No entanto, nessa sociedade neoliberal hegemonizada pelo paradigma do mercado, ele era um “produto” colocado na prateleira errada. Estava no metrô. Como se o fato de estar em local público tornasse sua música de menos qualidade. Estivesse um músico medíocre no palco do Teatro de Boston com certeza teria sido ovacionado.

     Fica uma pergunta: temos prestado atenção na qualidade das coisas? Ou nossas cabeças são feitas pela mídia estimuladora do consumismo, que nos impõe gato por lebre?
     Van Gogh jamais vendeu uma tela enquanto viveu, exceto a que seu irmão Theo, que era marchand, comprou na tentativa de ajudá-lo. Sem dinheiro para pagar o médico, o pintor presenteou-o com a tela Rapaz de quepe. O doutor, do alto de seu preconceito elitista, considerou que nada de valor poderia sair dos pincéis de um louco... Aproveitou o quadro para tapar um buraco no galinheiro de sua casa... Há pouco esta tela foi vendida por US$ 15 milhões!

     Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do Silêncio” (Rocco), entre outros livros.

  http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.

 Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

          

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Educar a partir das culturas



Por MARCELO BARROS

     O Brasil é um país pluriétnico e de grande diversidade cultural. Conforme o censo 0oIBGE, o censo de 2010, o numero de brasileiros que se definem como negros, mulatos ou pardos  superou a população que se considera branca. Entretanto, quando se fala em educação, em geral, no Brasil, ela ainda é pensada a partir dos parâmetros europeus e não considera as culturas afrodescendentes e indígenas como fonte que possa enriquecer a educação e trazer sabedoria de vida para todos. Até hoje, a maioria dos livros de história do mundo tem como olhar e perspectiva a cultura e interesse dos colonizadores. Durante séculos,  nas escolas do Brasil, se ensinava à juventude os nomes de cidades, rios e acidentes geográficos da Europa, mas nao havia o menor interesse em fazer os jovens conhecerem algo  da África e mesmo da América Latina. Até pouco tempo, qualquer estudante de ensino médio sabia onde fica Paris e Londres, mas podia não saber onde se situa Abidjan que é muito mais próxima tanto geograficamente, como culturalmente do nordeste brasileiro. Menos ainda conheciam Kinshasa na República Democrática do Congo e Cotonou no atual Benin. Entretanto, dessas regiões e cidades vieram muitos de nossos ancestrais ou avós dos avós de nossos vizinhos, amigos e parentes. Sem falar no conhecimento dos países irmãos da América Latina. 

     Neste ano, estamos celebrando o aniversário de dez anos em que o presidente da República oficializou a lei 10.639 de janeiro de 2003. Ela trata da inclusão do estudo da história da África e da cultura afro-brasileira no currículo escolar. A lei 11.645 de março de 2008 inclui o estudo das culturas indígenas e assim veio completar esse processo. Assim, agora temos uma legislação que nos chama a corrigir uma inversão educacional comum em nossa formação. Não podemos continuar a tratar como próximas culturas que sempre se colocaram distantes e se comportaram até agora como diametralmente opostas a nossas, enquanto vemos como estranhos povos e culturas com os quais dividimos experiências de uma história comum e de grande afinidade cultural e humana. Nossos filhos e netos merecem que transformemos isso.  

     Por outro lado, sabemos que não é a lei que pode mudar a realidade. É preciso uma transformação cultural mais profunda. Apesar dessas leis e da criação de vários centros de estudos africanos e indígenas em todo o Brasil, a educação escolar ainda não absorveu essa proposta pedagógica. Em artigo recente o Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser) mostra que menos da metade das escolas públicas de todo o país aplicam verdadeiramente a lei. Esse número é ainda menor nas escolas particulares. A pesquisa revelou também que o preconceito contra as religiões de matriz africana é o principal entrave para a abordagem de temas ligados à cultura afro-brasileira. Em todo o Brasil o preconceito se soma ao desconhecimento e impede até mesmo a simples discussão e aprofundamento do assunto. 

     Valorizar as culturas afrodescendentes e indigenas é uma divida moral com comunidades e grupos que sempre foram marginalizados e culturas que, por muito tempo, foram consideradas inferiores e até condenadas como primitivas ou selvagens. No caso das Igrejas, é bom recordar uma palavra de Tertuliano, cristao do século III: “Para quem é cristao, nada do que é humano pode ser estranho”. Muitos crentes associam os cultos afrodescendentes à condenaçao da Biblia aos antigos deuses das religioes cananeia, egipicia e babilonica. Nao é uma associaçao justa. A Biblia rejeitou deuses estrangeiros, cujos cultos serviam de legitimaçao para imperios opressores, enquanto  aceitou e incorporou ao culto javista cultos a divindades locais como o Deus da montanha (El Shaddai), o Deus dos exércitos (El Shabbaot), o Deus da aliança (El Berith) e outros. Jesus apontou a incompatibilidade entre Deus e o dinheiro tido como deus, mas aos discipulos que rejeitavam os samaritanos considerados pelos judeus rigidos como sendo hereges ou idolatras, Jesus afirmou amargamente: “Voces nao sabem que espirito sao animados!” (Lc 9, 56). Quem discrimina pessoas e grupos, principalmente por sua forma de crer e adorar a Deus, nao conhece o espirito de Jesus.

   Marcelo Barros, monge beneditino, escritor e peregrino de Deus

terça-feira, 28 de maio de 2013

Sinais do Espírito no mundo atual



Por LEONARDO BOFF

     Desenvolveu-se, já há bastante tempo, toda uma teologia dos “sinais dos tempos” como forma de percepção de um desígnio divino para a história humana. Esse procedimento é  arriscado, pois para conhecer os sinais precisa-se primeiramente conhecer os tempos. E estes nos dias atuais são complexos, quando não contraditórios. O que é sinal do Espírito para alguns pode ser um antissinal  para outros.

     Mas há alguns eventos que se impõem à consideração de todos, pois possuem uma evidência em si mesmos. Vamos nos referir a alguns pela densidade de sentido que contém.

     O primeiro é sem dúvida o processo de planetização. Esta, mais que um fato econômico e político inegável, representa  um fenômeno histórico-antropológico: a humanidade se descobre como espécie, habitando a mesma e única Casa, o planeta Terra, com um destino comum. Ele antecipa o que já Pierre Teilhard de Chardin dizia em 1933 a partir de seu exílio eclesiástico na China: estamos na antessala de uma nova fase da humanidade: a fase da noosfera, vale dizer, da convergência das mentes e dos corações constituindo uma única história junto com a história da Terra. O Espírito que é sempre de unidade, de reconciliação e de convergência na diversidade.

      Outro sinal relevante é constituído pelos Fóruns Sociais Mundiais que a partir do ano 2000 começaram a se realizar a partir de Porto Alegre, RS. Pela primeira vez na história moderna, os pobres do mundo inteiro, fazendo contraponto às reuniões dos ricos na cidade suíça de Davos, conseguiram acumular tanta força e capacidade de articulação que acabaram, aos milhares, se encontrando para apresentar suas experiência de resistência e de libertação e alimentar um sonho coletivo  de que um outro mundo é possível e necessário. Aí se notam os brotos do novo paradigma de humanidade, capaz de organizar de forma diferente a produção, o consumo, a preservação da natureza e a inclusão de todos num projeto coletivo que garanta um futuro de vida.

     A Primavera Árabe surge também como um sinal do Espírito no mundo. Ela incendiou todo o Norte da Africa e se realizou sob o signo da busca de liberdade, de respeito dos direitos humanos e na integração das mulheres, tidas como  iguais, nos processos sociais. Ditaduras foram derrubadas, democracias estão sendo ensaiadas, o fator religioso é mais e mais valorizado na montagem da sociedade mas deixando de lado aspectos fundamentalistas. Tais fatos históricos devem ser interpretados, para além de sua leitura secular e sociopolítica, como emergências do Espírito de liberdade e de criatividade.

    Quem poderia negar que numa leitura bíblico-teológica, a crise de 2008 que afetou principalmente o centro do poder econômico-financeiro do mundo, lá onde estão os grandes conglomerados  econômicos que vivem da especulação à custa da desestabilização de outros países e do desespero de suas populações, não seja também um sinal do Espírito Santo? Este é um sinal de advertência de que a perversidade tem limites e que sobre eles poderá vir um juízo severo de Deus: a sua completa derrocada.

   Em contrapartida ao sinal negativo anterior, está o sinal positivo dos movimentos de vítimas que se organizaram na Europa como os “indignados” na Espanha e na Inglaterra e os “occupies Wall Street” nos EUA. Eles revelam uma energia de protesto e de busca de novas formas de democracia e de organizar a produção, cuja fonte derradeira, na leitura da fé, se encontra no Espírito.

     Outro sinal do Espírito no mundo  ganhou forma na  crescente consciência ecológica de um número cada vez maior de pessoas no mundo inteiro. Os fatos não podem ser negados: tocamos nos limites da Terra, os ecossistemas mais e mais estão se exaurindo, a energia fóssil, o motor secreto de todo nosso processo industrialista, tem os dias contados e o aquecimento global que não para de aumentar e que, dentro de algumas décadas, pode ameaçar toda a biodiversidade.

     Somos os principais responsáveis por este caos ecológico. Faz-se urgente um outro paradigma de civilização que vai na linha das visões já testadas na humanidade como o ’bem-viver” e o “bem-conviver” (sumak kawsay) dos povos andinos, o “índice de felicidade bruta” do Butão, o ecossocialismo, a  economia solidária e biocentrada, uma bem entendida economia verde ou projetos cuja centralidade é posta na vida, na humanidade e na Terra viva.
Por fim, um grande sinal do Espírito no mundo é o surgimento do movimento feminista e do ecofeminismo. As mulheres não apenas denunciaram a dominação secular do homem sobre a mulher (questão de gênero) mas especialmente toda a cultura patriarcal. A irrupção das mulheres em todos os campos da atividade humana, no mundo do trabalho, nos centros de saber, no campo da política e das artes, mas principalmente com uma vigorosa reflexão a partir da condição feminina sobre toda a realidade, deve ser vista como uma irrupção poderosa do Espírito na história.

     A vida está ameaçada no planeta. A mulher é conatural à vida, pois a gera e cuida dela durante todo o tempo. O século 21 será, creio eu, o século das mulheres, daquelas que, junto com os homens, assumirão mais e mais responsabilidades coletivas. Será por elas que os  valores que elas mais testemunham como o cuidado, a cooperação, a solidariedade, a compaixão e o amor incondicional estarão na base do novo ensaio civilizatório planetário.

Veja de minha autoria A civilização planetária: desafios à sociedade e ao cristianismo, Sextante, Rio 2003