O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Navegar é preciso



por FREI BETTO

Fiz  uma viagem literária pelo Rio Negro na primeira semana de maio. Uma centena  de pessoas lotou o navio Iberostar para conversar sobre literatura com os  escritores Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, Cadão Volpato (que  fez ali o lançamento de seu primeiro romance, Pessoas que passam pelos  sonhos, editado pela Cosac Naify), Xico Sá e eu.
       

      A atriz Clarice Niskier nos  apresentou uma leitura dramática de sua próxima peça, A lista,  monólogo de autoria da canadense Jennifer Tremblay. A banda Projeto Coisa  Fina animou nossas noites e nos ofereceu um verdadeiro concerto em  homenagem ao músico pernambucano Moacir Santos (1926-2006), radicado nos  EUA, e cujo repertório influenciou compositores como Tom  Jobim.

       Em suas duas primeiras  edições, o projeto “Navegar é preciso”, promovido pela Livraria da Vila, de  São Paulo, levou ao Rio Negro os escritores José Eduardo Agualusa,  Laurentino Gomes, Ignácio de Loyola Brandão, Cristovão Tezza, Mary del  Priore, Ilan Brenmam, Walter Hugo Mãe e Milton  Bonder.

   Navegamos quase 200  quilômetros. Nosso ponto de retorno foi Novo Airão, município ribeirinho de  6 mil habitantes. A cidade de Velho Airão, invadida por formigas, sucumbiu à  voraz agressão desses insetos.

     Nossa  embarcação, de 95 camarotes distribuídos em quatro andares, deslizava pelo  rio de águas escuras, ácidas, desprovidas de mosquitos. A decomposição dos  vegetais no leito rico em magnésio, potássio e ferro, impede que as larvas  se proliferem. Nesta época do ano o rio sobe de oito a 10 metros (no ano  passado, excepcionalmente chegou a 17 metros), ampliando os igarapés e  inundando a mata de igapós. Em geral, os igapós são fechados no alto pela  copa das árvores, deixando a impressão de claustros aquáticos.

    Em suas águas se abriga o poraquê, também  chamado de enguia-elétrica, que emite descarga de eletricidade de 300 a  1.500 volts, dependendo do tamanho. Com esse recurso, ele derruba os frutos  das árvores que tremulam sob o efeito do choque, garantindo-lhe alimentação.

      No interior dos igapós é costume se  deparar com a majestosa macucu-do-rio-negro, imponente árvore que se  sobressai por seu tronco plissado. Índios e ribeirinhos apreciam a  carapanaúba, árvore cuja casca, rica em quinino, tem propriedades  cicatrizantes e dela se faz o chá que reduz os efeitos da malária e da febre  amarela.

      Provamos a seiva branca,  leitosa, da sorva, que serve de matéria-prima ao chicletes e, na falta de  leite materno, é utilizada para alimentar o bebê. Já o cipó da piranheira  aplaca, na falta de cigarros, o vício dos  ribeirinhos.
      O curare, abundante na  região, é um poderoso anestésico, utilizado também pelos índios, em suas  zarabatanas, para imobilizar caças e facilitar a captura. Já a matamatá é  uma árvore cuja fibra resistente se usa no artesanato local e para amarrar  caibros de casas.

       Os passeios de  barcas nos permitiram atracar nas margens do Rio Negro, caminhar pelas  trilhas da floresta e conhecer a tapiba, árvore que, após leve tapa em seu  tronco, exala milhares de microscópicas formigas que, esmagadas na pele,  imprimem um odor que serve de repelente para que índios e caboclos se  protejam de insetos e peçonhas.

      No  leito do rio apreciamos o espetáculo dos botos-vermelhos, quase sempre em  duplas, arqueando sobre as águas. São eles os principais predadores das  piranhas, frequentes na região. Um boto chega a consumir por dia de 10 a 15  quilos desses peixinhos de dentes afiadíssimos e apetite de  vampiros.

       Do navio desfrutamos  cenários esplendorosos, como o nascer e o pôr do sol na floresta amazônica  e, próximo a Manaus, o encontro das águas, quando os rios Negro e Solimões  mesclam aos poucos seus leitos negro e barrento e se juntam para formar o  Amazonas.

      Mais do que literatura, a  viagem nos propiciou um contato direto com a mais importante floresta  tropical do mundo, que comporta 12% da água potável do planeta e abriga uma  biodiversidade de três mil diferentes espécies vegetais e animais por  quilômetro quadrado.

      Ao som da música  da banda Coisa Fina, enquanto bebíamos sucos de cupuaçu, açaí e  graviola, à espera de refeições fartas em tucunaré e pirarucu, comentamos  como seria importante descolonizar a cabeça dos brasileiros de classes média  e rica. Em vez de levar filhos e netos à Disneylândia, incutindo-lhes o  consumismo, melhor e mais sábio seria trazê-los à floresta amazônica, ao  Pantanal mato-grossense, à Chapada dos Veadeiros, de modo a educá-los no  senso de preservação ambiental, respeito aos povos indígenas e ribeirinhos,  e amor ao Brasil.

Frei Betto é escritor, autor, em  parceria com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e  espiritualidade” (Agir), entre outros livros. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário