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terça-feira, 31 de março de 2020

IMUNIDADE E COMUNHÃO




Por Marcelo Barros


É preciso cuidar da imunidade para proteger a saúde, mas não se imunizar contra a solidariedade e a sensibilidade que nos faz sofrer com quem sofre e nos alegrar com quem se alegra.

Nesse tempo de riscos de contágio e de proliferação do coronavírus, é importante refletir sobre o que é a imunidade e que vem a ser a comunidade. É urgente distinguir de quais vírus devemos ser imunes e como ser imunes, sem perder a comunhão que nos liga a tudo e a todos.

De fato, imunidade e comunidade são dois termos que parecem se opor. Quem é imune deixou de ser comune, termo que poderia designar o elo que cria comunhão. Em latim antigo, o termo communio designa a comum união, mas também parece que vinha do fato de se assumir juntos os múnus. Com múnus era a capacidade de carregar juntos o peso uns dos outros. Na tradição cristã, a comunhão é a interdependência que existe entre todas as pessoas de fé (comunhão dos santos), mas também a falta de imunidade espiritual entre todos (a comunhão nas coisas santas). Assim, o bem que um faz contagia a todos, como o pecado de um faz mal a todos. A comunhão possibilita, como escreveu o apóstolo, sermos um só, como um corpo que tem muitos membros. Cada membro tem sua função própria, mas o corpo é um só. Por isso, é preciso saber bem em que comungamos e em que devemos nos precaver de uma falsa comunhão que seria autodestrutiva.   

A imunidade é o que possibilita a autoproteção e o isolamento de qualquer mal que possa nos invadir. Fisicamente, nosso organismo tem células de defesa que impedem que um vírus ou bactéria se instalem. Quando essas células são destruídas, a imunidade se enfraquece e qualquer enfermidade se instala. Então, a imunidade fisiológica é fundamental e necessária. No entanto,  Eduardo Galeano advertia de que vivemos em uma “sociedade do desvínculo”. Parece contraditório porque o próprio fato de viver em sociedade já seria um vínculo, mas a sociedade se tornou um acordo comercial que gera uma multidão de excluídos. Ninguém sabe se o Coronavírus foi produzido biologicamente como arma de guerra. Grupos de direita dizem que deve ter sido gerado na China e gente de esquerda garante que foram soldados dos Estados Unidos que o levaram para China na ocasião dos jogos militares de 2019. Seja como for, o próprio fato de que um vírus assim possa ser produzido como arma em laboratório revela o modelo de sociedade em que vivemos. Evidentemente, temos de tomar todo o cuidado com o corona, mas sabemos que os vírus do ódio, da intolerância, da xenofobia, do racismo, do machismo e da discriminação social matam mais do que essa pandemia atual. Em nossas cidades, diariamente se assassinam jovens negros nas periferias. As estatísticas denunciam que os feminicídios têm aumentado. E a fome, provocada pela iniquidade da desigualdade social,  provoca mais enfermidades e morte do que qualquer um desses vírus estranhos que, de vez em quando, assolam o mundo. Para o coronavírus estão  se buscando vacinas. Em Cuba, o uso do interferon tem ajudado como preventivo. Para os vírus mais profundos que destroem em nós o que nos torna humanos só existe uma vacina: o amor solidário. A opção de que a vida é para ser convivência e comunhão tem de ser sorvida e experimentada até a última gota. Sem nenhum medo. Amor não mata.

Daqui a alguns dias, vamos celebrar a Páscoa. Nas comunidades judaicas se chama “a festa da nossa libertação”. No Cristianismo, o centro de tudo é a proclamação de que Jesus ressuscitou. Em um mundo como o nosso, afirmar que Jesus ressuscitou é testemunhar que o amor é maior do que a morte e o bem-viver mata todos os vírus da indiferença em relação aos outros e do desamor. Vamos, então, com cristãos e com toda a humanidade, reafirmar que, como escreveu o profeta João, “nós somos as pessoas que cremos no Amor”.


 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com






segunda-feira, 30 de março de 2020

RELACIONALIDADE: AS LIÇÕES DA PANDEMIA





                         Maria Clara Lucchetti Bingemer

Foi tudo tão rápido que nem sei onde e quando começou. De repente havia um inimigo à solta.  Começou na China, estava longe.  Depois atingiu outros países da Ásia.  Quando chegou à querida Itália começamos a tremer.  E quando percebemos estava instalado no país.  Junto com ele, a apreensão e o medo. 
O vírus não tem rosto, é insidioso. Infiltra-se pela mão mal lavada, um toque no rosto, um gesto distraído nos cabelos. Alia-se aos gestos mais cotidianos e normais: a maçaneta aberta, o botão do elevador pressionado. Ou mais ainda nos gestos afetivos: apertos de mão, abraços, beijos, tudo que aproxima, conforta e afaga os corpos e corações humanos.
Diziam primeiro que era mais inofensivo que as gripes anteriores, depois percebeu-se que na verdade não era assim. Assaltou violentamente nossos mais inofensivos desejos: estar juntos, conversar, partilhar comida e bebida, divertir-se. Feriu de morte tudo que é lazer: festas, reuniões, eventos. De repente o inimigo sem rosto, se não estava já instalado no próprio corpo, alojava-se ameaçadoramente no corpo do outro.
E então os cientistas, governantes e autoridades começaram a dar-nos orientações totalmente na contramão do que sempre acreditamos ser correto fazer: isolar-se, afastar-se, fechar-se, não sair de casa.  Não ir ao encontro das pessoas, não abandonar seu confinamento por nada. Parecia tão monstruoso, tão fora de propósito.  Mas agora, após vários dias da quarentena que é nosso único caminho de salvação, começamos a aprender muitas lições.
A primeira é que a antropologia filosófica e teológica, a psicologia e todas as ciências humanas não podem estar mais certas.  Somos indubitavelmente seres relacionais.  Apenas na interação com o outro nos sentimos existindo plenamente em nossa humanidade. É isso que nos faz o que somos: seres dialogais, de linguagem, feitos para interagir, conviver, trocar experiências. Seres que se autocompreendem a partir do rosto do outro e dos sinais que ele emite. 
A segunda é que nunca ficou tão evidente que tudo e todos naquilo que se chama de vida estão interligados. Tanto se desequilibrou a natureza, tanto se agrediu a mãe terra, a casa comum, os recursos naturais, em suma tanto se desumanizou a vida que agora vemos as forças da morte emergindo do caos que nós mesmos criamos. A pandemia apocalíptica que nos ameaça dá bem a medida do tamanho da irresponsabilidade com que vimos tratando a vida, não só a nossa, mas a do planeta e a de todos os seres vivos. 
No entanto, há também boa notícia – Evangelho – em meio a tanta desolação e tristeza.  O medo e a morte não têm a última palavra em todas as situações.  A coerção dura sobre a expressão da relacionalidade fez em muitos casos surgir – que maravilha! – uma criatividade nunca vista em expressão dessa mesma relacionalidade.  E isso só comprova a tese antropológica que apenas na relacionalidade somos, nos movemos e existimos. 
Senão vejamos: moradores confinados vão às janelas para cantar, aplaudir os profissionais de saúde, acenar a vizinhos que mal se cumprimentavam antes, freneticamente correndo para produzir e fazer dinheiro. Jovens anônimos se oferecem por meio de bilhetes para fazer as compras do mercado a fim de que os anciãos, mais ameaçados pela doença, não precisem sair de casa e fiquem protegidos. Os avós, sofrendo por não poder ver e abraçar os netos, recebem destes vídeos amorosos, cheios de carinho, beijos, afeto. 
Mas há mais ainda: os profissionais da saúde arriscam as vidas até o extremo para não deixar de atender os doentes, correndo a cada momento risco de contaminação.  Médicos são infectados na linha de frente. E com eles, enfermeiros e agentes de saúde que priorizam a saúde alheia e dão testemunho heroico de solidariedade.  Muitos destes sucumbiram à carga viral. Médicos e agentes de saúde cruzam os ares para ajudar outros países, carentes de recursos. Tenores emprestam a voz para encher os ouvidos temerosos de más notícias com uma renovada esperança. 
Na combalida Itália, sempre tão ensolarada e alegre, um sacerdote já idoso faz um gesto de santidade, cedendo seu respirador para que outro doente, mais jovem e com mais perspectiva de vida, possa usá-lo. O Papa Francisco, idoso e sem boa parte de um pulmão, peregrina pelas ruas de Roma vazia a fim de rezar pelo povo que geme sob a pandemia.
Tudo é relação e dela depende.  Tomara que a humanidade saia dessa crise iluminada por todos esses ensinamentos e revigorada por tantos testemunhos, mesmo em meio ao caos que alguns poucos irresponsáveis insistem em instalar e estimular. 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros
  
Copyright 2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sexta-feira, 27 de março de 2020

O CORONAVÍRUS: A AUTO-DEFESA DA PRÓPRIA TERRA





Por Leonardo Boff

A pandemia do coronavírus nos revela que o modo como habitamos a Casa Comum é nocivo à sua natureza. A lição que nos transmite soa: é imperioso reformatar nossa forma de viver sobre ela, enquanto planeta vivo. Ela nos está alertando que assim como estamos nos comportando não podemos continuar. Caso contrário a própria Terra irá se livrar de nós, seres excessivamente agressivos e maléficos ao sistema-vida.

Nesse momento, face ao fato de estarmos no meio da primeira guerra global, é importante conscientizar nossa relação para com ela e a responsabilidade que temos pelo destino comum Terra viva-Humanidade.

Acompanhem-me neste raciocínio: o universo existe já há 13,7 bilhões de anos. A Terra há 4,4 bilhões. A vida há 3,8 bilhões. O ser humano há 7-8 milhões. Nós, o homo sapiens/demens atual há 100 mil anos. Todos somos formados com os mesmos elementos físico-químicos (cerca de 100) que se formaram, como numa fornalha, no interior das grandes estrelas vermelhas, por 2-3 bilhões de anos (portanto há 10-12 bilhões de anos): o universo, a Terra e nós mesmos.

A vida, provavelmente, irrompeu a partir de uma bactéria originária, mãe de todos os viventes. Acompanhou-a um número inimaginável de micro-organismos. Diz-nos Edward O.Wilson, talvez o maior biólogo vivo: só num grama de terra vivem cerca de 10 bilhões de bactérias de até 6 mil espécies diferentes (A criação: como salvar a vida na Terra, 2008, p. 26). Imaginemos a quantidade incontável desses micro-organismos, em toda a Terra, sendo que somente 5% da é visível e 95%, invisível: o reino das bactérias, fungos e vírus.

Acompanhem-me ainda: hoje é tido como um dado científico, depois de 2002, quando James Lovelock e sua equipe demonstraram perante uma comunidade científica de milhares de cientistas na Holanda, que a Terra não só possui vida sobre ela. Ela mesma é viva. Emerge como um Ente vivo, não no sentido de um organismo ou um animal, senão de um sistema que regula os elementos físico-químicos e ecológicos, como fazem os demais organismos vivos, de tal forma que se mantém vivo e continua a produzir uma miríade de formas de vida. Chamaram-na de Gaia.

Outro dado que muda nossa percepção da realidade. Na perspectiva dos astronautas seja da Lua seja das naves espaciais, assim testemunharam muitos deles, não vigora uma distinção entre Terra e Humanidade. Ambos formam uma única e complexa entidade. Conseguiu-se fazer uma foto da Terra, antes de ela penetrar no espaço sideral, fora do sistema solar: aí ela aparece, no dizer do cosmólogo Carl Sagan, apenas como ”um pálido ponto azul”. Pois, nós estamos dentro deste pálido ponto azul, como aquela porção dela, que num momento de alta complexidade, começou a sentir, a pensar, a amar e a perceber-se parte de um Todo maior. Portanto, nós, homens e mulheres, somos Terra, somos húmus (terra fértil), o Adam bíblico (terra arável) inteligente e amante.

Ocorre que nós, esquecendo que somos uma porção da própria Terra, começamos a saquear suas riquezas no solo, no subsolo, no ar, no mar e em todas as partes. Buscava-se realizar um projeto ousado de acumular o mais possível de bens materiais para o desfrute humano, na verdade, para a sub-porção poderosa e já rica da humanidade. Em função desse propósito se criou a ciência e a técnica. Atacando a Terra, atacamos a nós mesmos que somos Terra. Levou-se tão longe a cobiça deste grupo pequeno de gente, que ela atualmente se sente exaurida a ponto de terem sido tocados seus limites intransponíveis. É o que chamamos tecnicamente de a Sobrecarga da Terra (the Earth overshoot). Tiramos dela mais do que pode dar. Ela não consegue repor o que lhe subtraímos. Então dá sinais de que adoeceu, perdeu seu equilíbrio dinâmico, aquecendo-se de forma crescente, formando tufões e tsunamis, nevascas nunca dantes vistas, estiagens prolongadas e inundações aterradoras. Mais ainda: liberou micro-organismos como o sars, o ebola, o dengue, a chikungunya e agora o coronavírus. São formas das mais primitivas de vida, quase no nível de nanopartículas, só detectáveis sob potentes microscópios eletrônicos. E podem dizimar o ser mais complexo que ela produziu e que é parte de si mesma, o ser humano, homem e mulher, pouco importa seu nível social.

Até agora o coronavírus não pôde ser destruído, apenas impedido de se propagar. Mas está aí produzindo uma desestabilização geral na sociedade, na economia, na política, na saúde, nos costumes, na escala de valores estabelecidos.

De repente, acordamos, assustados e perplexos: esta porção da Terra que somos nós, pode desaparecer. Em outras palavras, a própria Terra se defende contra a parte rebelada e doentia dela mesma. Pode sentir-se obrigada a fazer uma ablação, como fazemos de uma perna necrosada. Só que desta vez, é toda esta porção tida por inteligente e amante, que a Terra não quer mais que lhe pertença e acabe eliminando-a.
E assim será o fim desta espécie de vida que, com sua singularidade, é uma entre milhões de outras existentes, também partes da Terra. Esta continuará girando ao redor do sol, empobrecida, até que ela faça surgir um outro ser que também é expressão dela, capaz de sensibilidade, de inteligência e de amor. Novamente se irá percorrer um longo caminho de moldagem da Casa Comum, com outras formas de convivência, esperamos, melhores que aquela que nós moldamos.

Seremos capazes de captar o sinal que o coronavírus nos está passando ou continuaremos com o mesmo propósito letal, ferindo a Terra e nos auto-ferindo para acumular irracionalmente bens materiais?

Leonardo Boff escreveu: Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010.


quinta-feira, 26 de março de 2020

DEZ DICAS PARA ENFRENTAR A RECLUSÃO




por Frei Betto

       Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.
       Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forcada pela pandemia:
       1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.
       2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.
       3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.
       4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.
       5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.
       6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.
       7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico. 
       8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua. 
       9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.
       10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.


quarta-feira, 25 de março de 2020

O SOFRIMENTO DE DEUS



Padre Fabio dos Santos




Muita gente se contagia com minha alegria. Todavia ela não é de alguém anestesiado ou lombrado. Em meu coração passeiam as angústias do mundo e minhas próprias angústias.

Vida, dor, sofrimento e morte. Diante de tudo isso, no meu pobre e frágil coração, bailam revoltadamente uma interrogação. Deus seria um sarcástico e indiferente assistindo de camarote do alto do céu o drama, a tragédia e a comédia da existência humana cá embaixo, comendo ele o manjar dos deuses enquanto nós nos viramos comendo o pão que o diabo amaçou?  É verdade que Deus nos ama? Todos e a cada um? Não se espante. Como nos salmos da bíblia, também nos salmos desse padre são salmodiados cânticos cheio de lágrimas.

Epicureo, na antigüidade, já questionava: “Ou bem Deus deseja suprimir o mal, mas não pode, ou Ele pode mas não quer. Se Deus o quer mas não pode, Ele é impotente, o que é contrário à sua natureza. Se Ele pode mas não quer, Ele é malvado, o que é contrário à sua natureza. Se Ele o não o quer nem o pode, Ele é ao mesmo tempo impotente e malvado, o que significaria dizer que Ele não é Deus. Mas se Ele pode e quer, o que só convém a Ele, de onde vem então o mal e por que Ele não lhe suprime?”

Amado irmão e irmã, o Cristianismo tem a honestidade de não ter uma explicação. Ao longo dos séculos e hoje, muitos tentam toda sorte de explicação para responder a questão do mal: nos astros, no esoterismo, no carma, na reencarnação, nas forças misteriosas do além. Estamos diante do mistério de Deus, do mistério da mulher e do homem e do mistério dos cosmos. E o mistério não podemos agarrá-lo, escapa-nos das mãos.

Porém, o Cristianismo tem algo maior do que toda e qualquer explicação. Não se assuste! Deus é o primeiro escandalizado com o escândalo do mal, aquele que mais sofre. Deus sofre com a gente e muito mais do que a gente com o mal que devasta o mundo: a fome, as guerras, as catástrofes, as doenças, o sofrimento e morte de inocentes, o mal moral causado pelos homens que ele criou livres e inteligentes... Sofre também pelo “não” do homem ao seu plano de amor e plenitude começada já aqui e completada no céu, esse “não” do homem que faz o homem sofrer. Ele não é um espectador desinteressado e distante, ele sofre por nós, conosco e em nós. Mais, Deus sofre em si mesmo.

Ele sofre por nós, quando por nós e para nossa salvação assumiu nossa carne de agonia e de prazer, de vida e de morte, ressuscitando depois para dar sentido a nossa totalidade psicossomático e espiritual. Ele sofre conosco chorando nossas lágrimas em solidariedade e consolo. Ele sofre em nós, no mais íntimo, ou no outro, quando bem disse: “tive fome, sede, dor, solidão...” ( Mt 25,35).

Falo de um sofrimento de Deus e em Deus. O sofrimento de Deus começou com a queda de nossos pais, tão expressiva na narrativa alegórica do livro dos gêneses. Deus experimenta um fracasso na criação e sai a procurar o homem e a mulher. “Onde você está?”(Gn 3,9). Desde esse dia Deus nos procura. Na aliança com Israel  Deus amarga de novo um fracasso. “Eu dizia. ‘eis-me aqui, eis-me aqui!’ a um povo que não invoca meu nome”( Is 65,1), e ainda: “Meu povo ouve minha voz, Israel não quer saber de mim... Ah, se meu povo me escutasse!” ( Sl 81,12.14). Seria ousadia falar também de um fracasso na redenção?  “ Ele estava no mundo... mas o mundo não o reconheceu. Veio para o que era seu e os seus não o receberam” ( Jo 1,10-11). Não é uma verdade ainda para hoje?  Jesus não continuaria a chorar sobre Jerusalém do mundo? “ E, como estivesse perto de Jerusalém, Jesus viu a cidade e chorou sobre ela, dizendo: ‘Ah! Se neste dia também tu conhecesses a mensagem de paz!...  não reconheceste o tempo em que foste visitada!”( Lc 19, 41.44b).

Falar de um Deus sofredor pode soar como um escândalo para a razão. Se Deus existe, Ele existe sofrendo de um sofrimento de amor. Um sofrimento assim de Deus e em Deus não pode ser compreendido como imperfeição, mas como a perfeição mesmo, seu ato puro, isto é, o amor. E o amor é tanto gozo e alegria, como também é dor e sofrimento. Deus sofre!

Sejamos como Deus, sensível, solidário e salvação para com os sofredores. Se sou eu e você a sofrer agora, sintamos sua ternura, carinho, afago e consolação.

Fabio dos Santos é presbítero, membro da Comissão de Justiça e Paz, coordenador da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso na Arquidiocese de Olinda e Recife e capelão da igreja Nossa Senhora da Assunção das Fronteiras.


terça-feira, 24 de março de 2020

ÁGUA, NECESSIDADE E DIREITO DE TODOS OS SERES VIVOS




Marcelo Barros

A ONU proclama o dia 22 de março como dia internacional da água. Cada dia mais é urgente que a humanidade inteira se dê conta de que a defesa das águas é intimamente ligada à própria sobrevivência humana e à defesa da vida no planeta.

No Rio de Janeiro, as pessoas precisam comprar água mineral para beber e reclamam que a água das torneiras vem com cor e aparência suspeitas. Os rios, cuja vida, as mineradoras  em Minas Gerais e na Amazônia destruíram, continuam assassinados. Em várias regiões do Brasil, ao mesmo tempo que as chuvas provocam destruições, a carência de água potável é cada vez mais sentida. Em várias regiões do mundo, governos mantêm conflitos pelo uso de rios que banham as fronteiras de dois ou mais países. Cada rio é reivindicado como propriedade nacional.
Nestes dias, assustados por notícias de que o Coronavírus se espalha por diversos países do mundo, cientistas começam a ligar a epidemia que nos ameaça com a destruição da natureza, a poluição das águas e o desequilíbrio do clima no planeta Terra. Pode ser que o vírus tenha se espalhado pela poluição das águas.
Os cientistas concordam que a vida surgiu de dentro das águas. Há milhões e milhões de anos, os seres humanos e os grandes mamíferos evoluíram de seres aquáticos. A água é bem essencial para a vida. Não se trata só de recurso econômico e instrumento de poder político. Em muitas tradições espirituais, a água é sinal e instrumento do amor divino. Alguns mitos indígenas contam que o primeiro sorriso divino se deu com as águas. A divindade sorriu de felicidade, quando contemplou a beleza das águas, sua primeira criação, útero de toda a vida no planeta Terra. Na Bíblia, a criação de todo o universo começa pelo Espírito Divino que pairava sobre as águas. É essa ação amorosa divina que está por princípio (expressão bíblica do Gênesis) e por trás ou no plano mais íntimo de cada ser criado.
Assim sendo, Deus só pode estar muito feliz pelo fato da ONU ter consagrado o dia 22 de março como “Dia internacional de proteção e defesa das águas”. Em outras épocas, não seria necessário dedicar um dia do ano ao problema da água. Agora, sim. No século XXI, mais de um bilhão de pessoas sofre carência de água potável e mais de 80% das doenças que, no mundo inteiro, dizimam crianças e pobres, estão ligadas ao uso de águas poluídas ou impróprias para o consumo humano. Além disso, em todos os continentes, Organismos internacionais da ONU e da sociedade internacional civil trabalham para que a água seja declarada como direito básico universal de todas as pessoas e todos os seres vivos. A água não poderia jamais ser mercantilizada e vendida como propriedade privada de multinacionais que a exploram e, através da apropriação das fontes de água, dominam povos inteiros. Índios e lavradores se reúnem em conferências regionais para curar a Terra e fazer carinho à Mãe Água. Da sociedade civil internacional sobe o apelo cada vez maior: vamos libertar a água da prisão humilhante e indigna da mercantilização e privatização.
Toda pessoa e até todo ser vivo têm direito de viver e de receber uma cota de água potável e gratuita por dia (50 litros?) para beber, cozinhar e para a sua higiene. As constituições nacionais da Bolívia e do Equador privilegiam a noção indígena do “bem viver” como meta a qual o Estado e a sociedade civil devem garantir para todos. A Constituição Bolivariana da Venezuela também defende o direito universal à Água que não deve ser privatizada, nem vista apenas como mercadoria.
Para os cristãos, no evangelho, Jesus proclama: “Se alguém tiver sede, venha a mim e beba toda pessoa que crê em mim. Como diz a Escritura: do interior do Messias, jorrarão rios de água viva” (Jo 7, 37- 39). Pela ressurreição, que celebraremos nesta Páscoa, Jesus derrama sobre nós o seu espírito de amor, como água que jorra para a vida eterna e nos faz ver em toda a água que existe no mundo sinal do amor divino.


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com

sexta-feira, 20 de março de 2020

SÃO JOSÉ, SANTO DO POVO, DOS ANÔNIMOS, DOS OPERÁRIOS




leonardo boff

Hoje, dia 19 de março é o dia de São José, o santo tão venerado pelos nordestinos e por tantos outros cristãos. Se não chover até o dia de São José, a seca virá. Por isso ele é venerado com grande expectativa e unção especialmente pelos camponeses.

Escrevi um livro sobre São José, produto de 20 anos de pesquisa (São José a personificação do Pai, Verus 2005 e Vozes 2012). Não se pode pensar concretamente no mistério da encarnação do Filho Jesus sem a presença de José. Foi ele quem acolheu Maria grávida e criou as condições reais para uma vida de família.
Mas na tradição nunca se deu muita importância a ele. Só se pensa em sua missão e, uma vez cumprida, ele pode desaparecer e ser esquecido. Na verdade, Maria, sem José, não teria condições de cuidar da vida do menino Jesus, especialmente ameaçado de ser morto pelo terrível Herodes. Os primeiros sermões sobre São José só começaram a ser feitos a partir dos anos 800. Por aí se percebe a pouca importância que lhe era atribuída, explico no livro.
A razão é que vivemos num tipo de Igreja na qual o que conta é quem detém a palavra e poder de decisão, que são os bispos e os padres,numa palavra, a Hierarquia. De São José não temos nenhuma palavra. Ele apenas teve sonhos. Nem sabemos sua origem e quem foram seus pais. A Igreja não sabia o que fazer com São José. Só em 1870, foi proclamado patrono da Igreja. Mas, na verdade, ele é patrono da Igreja dos invisíveis e anônimos, dos milhões e milhões de cristãos que vivem no seu dia a dia os valores do evangelho da solidariedade, do respeito e do amor desinteressado. Vejo em São José a representação de milhões de cristãos que nunca aparecem nem podem falar e decidir sobre suas vidas e os rumos da sociedade em que vivem.
Dei em 2013 a Walter Sebastião a seguinte entrevista que transcrevo.
Qual o sentimento do senhor diante da cena do nascimento de Jesus?
Precisamos resgatar a inteligência emocional e cordial que vai além da razão intelectual. Quando nasce uma criança, nos enchemos de admiração e dizemos: sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda acredita na humanidade. Assim devemos entender os relatos bíblicos sobre o nascimento de Jesus. A comunidade cristã, quando escreveu os evangelhos, cerca de 40-50 anos depois da crucificação de Jesus e de sua ressurreição, já havia entendido que atrás daquela criança se escondia o próprio filho de Deus. Por isso cercam a cena do Natal de significados celestiais, como anjos que cantam, a estrela no céu, os sábios (magos) que vêm de longe.
Como tudo historicamente aconteceu não o sabemos pela razão intelectual, mas pela inteligência emocional e cordial intuímos que aí há um mistério ao qual nos acercamos com reverência e respeito. E criamos símbolos adequados que conferem relevância a esse fato, que, em si, pareceria banal.
Que tipo de paternidade São José enseja ou inspira?
A teologia cristã diz que ele exerceu todas as funções de pai, que foi a de cuidar de Maria em sua gravidez e de proteger Jesus e sua mãe, Maria, quando tiveram que fugir para o exílio no Egito. Viveu como esposo e iniciou o filho nas tradições religiosas do povo e na profissão de carpinteiro que era uma espécie de fac-totum (telhados, mesas, janelas etc).
Dogmaticamente, nada impede que ele tivesse sido pai biológico de Jesus. Os evangelhos falam que “Jesus é filho de José”, ou “o filho do carpinteiro”. Mas não é isso que testemunha toda a tradição cristã.
A gravidez de Maria se deve à ação do Espírito Santo que foi a primeira Pessoa divina a vir a esse mundo. Veio morar nela, quer dizer, a elevou à altura divina para gerar um Filho que também fosse divino como observa São Lucas no seu evangelho. Desta forma, com Jesus deu origem a uma nova humanidade, totalmente purificada do peso da história, marcada pela dimensão do negativo, da ruptura com a criação, com os outros e especialmente com Deus. Ele foi pai adotivo e legal no sentido semita, aquele que dá o nome à criança, como refere o evangelho de São Mateus. Assim se torna o pai social. De toda forma, Maria e Jesus formam a família de José.
Como a dimensão do masculino se afirma a partir de São José?
José mostra o lado melhor da paternidade, que é o de ser o cuidador, o educador e provedor,aquele que está sempre ao lado da esposa e do filho. A Bíblia fala que era um “homem justo”. Na linguagem da época significava que socialmente assumia uma liderança e era considerado um ponto de referência para todos.
Hoje, sofremos com o eclipse da figura do pai. Isso produz sentimento de insegurança nos filhos e filhas e sua falta de limites. José foi um educador. Se Jesus mais tarde vai chamar Deus de “paizinho querido”(Abba) isso significa que ele teve uma experiência de grande intimidade com o pai José. Freud mostrou que a base para uma imagem boa de Deus provém de uma relação boa com o próprio pai.
Os tempos de José e os nossos são diferentes. Mas a missão é a mesma: ser aquela figura que cuida, que provê tudo o que a família precisa, que inicia nos valores éticos e espirituais da sociedade e que aceita correr riscos em defesa da família, como quando teve que enfrentar o deserto a caminho do Egito.
Aí aparece a dimensão do masculino ( do “animus”, a coragem, a direção e a determinação), que junto com o feminino (a “anima”, o afeto, o cuidado e o amor) ajudam a constituir uma personalidade integrada e feliz, pois cada pessoa carrega seu lado feminino e masculino.
Qual a importância teológica de São José?
Tenho defendido a tese, até hoje nunca ajuizada pelas autoridades doutrinárias da Igreja, de que São José é a personificação do Pai celeste. Deve haver um equilíbrio no mistério de Deus que se auto-entregou e se revelou à humanidade. O Espírito Santo, segundo Lucas, veio sobre Maria e fez morada nela, quer dizer, ficou permanentemente nela. Em seu seio, por causa da presença do Espírito Santo, começou a se formar a santa humanidade do Filho do Pai.
O Filho se encarnou em Jesus, nascido de Maria. E o Pai não ficou de fora desse processo. Ele é bem representado pela figura de José, porque o Pai é o mistério absoluto representado pelo silêncio (não fala, quem fala é o Filho), é o criador de todas as coisas. O grande psicanalista C.G. Jung mostrou que o sonho representa o Profundo, o lado de Mistério do ser humano. São José só teve sonhos, nele o Profundo se manifestou.
Ele também é o homem do silêncio e o trabalhador. Este, o trabalhador, não fala com a boca, mas pelas mãos que constroem a casa, os bancos, as janelas e os telhados. O Pai celestial é o que cuida de todo o universo e de cada um de nós, à semelhança de São José, que cuidou da família em tudo o que fosse necessário.
São José comparece como a figura mais adequada para receber em sua vida a vinda do Pai que também veio morar conosco. Se o sonho é expressão do mistério no ser humano, o Pai é o Mistério absoluto. Portanto, há uma adequação entre São José e o Pai celeste.
Identifiquei na Igreja de São Francisco Xavier, na pequena vila de Saint François du Lac, em Quebec, no Canadá, um quadro de 1742 que representa são José com o mesmo rosto do Pai celeste que aparece no alto. Daí me veio a ideia de que São José é a personificação do Pai celeste. Assim temos a família divina encarnada na família humana.
A totalidade do mistério da Santíssima Trindade entrou em nossa história e a santificou. São José é parte desta entrega total do Deus-família à família humana. Os cristãos deveriam refletir mais sobre essa conexão para se sentir mais envolvidos pela presença divina e ficar sabendo que o nosso Deus é um Deus próximo e que se revelou assim como é, como Pai (em José) como Filho (em Jesus) e como Espírito Santo (em Maria).
Leonardo Boff é teólogo e escreveu São José: a personificação do Pai, Vozes, Petrópolis 2012


quinta-feira, 19 de março de 2020

MEU LADO MULHER





Frei Betto

         Meu lado mulher incomoda-se de receber homenagens em um único dia do ano - 8 de março -, enquanto meu lado homem se farta com 364 dias. Talvez se faça necessária esta efeméride, dor recente de cicatriz antiga. Porque vive-se em uma sociedade machista: matrimônio -  o cuidado do lar; patrimônio - o domínio dos bens.

         O marido possui casa, carro, mulher, que incorpora ao nome o da família dele. A casa, ele exige que se limpe todo dia. O carro, envia à oficina ao menor defeito. Mas à mulher, ser polivalente, cabe o dever de cuidar da casa, dos filhos, das compras e do bom-humor do marido, que nem sempre se lembra de cuidar dela.

         Meu lado mulher nunca viu o marido gritar com o carro, ameaçá-lo ou agredi-lo. Nem sempre, entretanto, ela é tratada com o mesmo respeito. Ele esquece que marido e mulher não são parentes, são amantes. Ou deveriam ser.

         Na Igreja Católica, os homens têm acesso aos sete sacramentos. Podem até ser ordenados padres e, mais tarde, obter dispensa do ministério e contrair matrimônio. Toda a hierarquia da mais antiga instituição do mundo é de homens. Mas o que seria dela e deles se não fossem as mulheres?

         As mulheres, consideradas pela teologia vaticana um ser naturalmente inferior, só têm acesso a seis sacramentos. Não podem receber a ordenação sacerdotal, embora tenham merecido de Jesus o útero que o gerou; o seguimento de Joana, de Susana e da mãe dos filhos de Zebedeu; a defesa da mulher adúltera; o perdão à samaritana; a amizade de Madalena, primeira testemunha de sua ressurreição.

         Meu lado mulher tem pavor da violência doméstica; do imbecil que diz bobagens quando a garota passa; do pai que assedia a filha, jogando-a nas garras da prostituição; do patrão que exige préstimos sexuais da funcionária; do marido que ergue a mão para profanar o ser que deu à luz seus filhos.

         Diante da TV, das imagens na internet ou de uma banca de revistas, meu lado mulher estremece: ela é a burra, a idiota que rebola no fundo do palco, mergulha na banheira exposta no palco, expõe-se na casa dos brothers, associa-se à publicidade de cervejas e carros, como um adereço a mais de consumo. Diante do poder despótico, meu lado mulher estremece: o presidente desbocado e debochado humilha, ofende, agride e pratica o estupro virtual.

         Meu lado mulher tenta resistir ao implacável jogo da desconstrução do feminino: tortura do corpo em academias de ginástica; anorexia para manter-se esbelta; vergonha das gorduras, das rugas e da velhice; entrega ao bisturi que amolda a carne segundo o gosto da clientela do açougue virtual; silicone e botox a estufar protuberâncias. E manter a boca fechada, até que haja no mercado um chip transmissor automático de cultura e inteligência, a ser enxertado no cérebro. E engolir antidepressivos para tentar encobrir o buraco no espírito, vazio de sentido, ideais e utopia.

         Meu lado mulher se esforça por livrar-se do modelo emancipatório que adota, como paradigma, meu lado homem. Serei ela se ousar não querer ser como ele. Sereia em mares nunca dantes navegados, rumo ao continente feminino, onde as relações de gênero serão de alteridade, porque o diferente não se fará divergente. Aquilo que é só alcançará plenitude em interação com o seu contrário. Como ocorre em todo verdadeiro amor.

Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

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O CRISTIANISMO DE SÃO PAULO ENTRA NUMA FASE DE DECLÍNIO?




por Eduardo Hoornaert

O presente texto apresenta algumas reflexões que me vierem ao tomar conhecimento de um livro da autoria de George Luttikhuizen, professor emérito da Universidade de Groningen, na Holanda. Existe uma tradução em espanhol sob o título ‘La pluriformidad del cristianismo primitivo’ (Cordoba, Ediciones El Almendro, 2007).

1. A pluriformidade cristã nas origens.

O autor nos lembra uma história largamente esquecida: o cristianismo nasceu pluriforme. Em sua origem, se apresentou de diversas formas. Embora a história dessa pluriformidade nos seja apenas conhecida por informações esporádicas e tardias, sabemos que entre as primeiras comunidades cristãs, em Jerusalém e na Galileia, pelo menos três grupos se destacaram: os nazareus, os ebionitas e os elkasaítas.

- Os nazareus, como o termo indica, são seguidores do ‘nazareu’ Jesus, ou seja, de Jesus de Nazaré. Temos informações a respeito nas obras de Epifânio (ca. 310- 403) e Jerônimo (337-420), que invariavelmente criticam os nazareus porque continuam seguindo a Lei de Moisés, leem a Bíblia em hebraico e o evangelho de Mateus em aramaico, coisas - afinal - perfeitamente normais na primeiríssima tradição de Jesus, que é exclusivamente judaica. Impressionante a resistência desses nazareus, ao longo de séculos. Há documentos que provam sua existência até os inícios do século V, na parte ocidental da Síria. Perseguidos sem tréguas pelo cristianismo ortodoxo, paulino, eles são provavelmente herdeiros de cristãos galileus fugitivos da Palestina, no século I dC.

- Os ebionitas, assim chamados a partir do termo hebraico ‘ebjonim’, que significa ‘pobre’, chegam ao nosso conhecimento por intermédio do mesmo Epifânio. Como os nazareus, seguem a Lei de Moisés. De outro lado, não divinizam Jesus, repudiam Paulo e afirmam que Jesus ‘veio para abolir os sacrifícios’.

- Os elkasaítas. Hipólito (170-235) e Orígenes (184-253) mencionam grupos, conhecidos pelo nome do anjo Elkasai, que atuam em Roma por volta de 220. Seu líder, Alcibíades, proveniente da Síria, embora faça propaganda a favor da circuncisão (um rito tipicamente judeu), defende posturas de mútua compreensão entre judeus cristãos, cristãos ortodoxos (paulinos) e seguidores de diversas religiões existentes no Império Romano.

Eis os grupos conhecidos. Deve ter havido mais, pois há de se considerar que a tradição de Jesus, nos primeiros séculos, se espalha principalmente entre gente analfabeta, que na época constitui mais de 90 % da população. Provavelmente houve grupos nunca registrados por escrito.

Lembro que o horizonte referencial de Jesus de Nazaré e de seus primeiros seguidores é completamente judeu. Nos poucos anos em que atua, Jesus lidera um movimento de reforma dentro do judaísmo de sua época. É perfeitamente normal que os primeiros judeus cristãos (não ‘judeu-cristãos’) mantenham a Lei de Moisés e vejam em Jesus um profeta, um ‘ungido’ de Deus, dentro da tradição de Israel. Em certas regiões, esse cristianismo judeu se mantém por séculos. Ainda no século V dC, há cristãos que comemoram o Yon Kippur (a festa judaica do perdão) e usam o talith godol (pano na cabeça) na hora de rezar.

Outro dado interessante: dispomos da Carta de Tiago, irmão de Jesus e líder da comunidade cristã em Jerusalém, que em 62 é condenado à morte pelas autoridades. Essa carta é um testemunho raro do movimento de judeus cristãos. Ulteriormente combatido, ao mesmo tempo, por um judaísmo rabínico (em rápida formação depois da destruição do Templo em 70) e por um cristianismo ‘ortodoxo’ (paulino) em formação, ao mesmo tempo banido das sinagogas e das eucaristias, o movimento dos judeus cristãos, com o tempo, sucumbe e desaparece dos registros históricos.

2. O cristianismo de São Paulo.

O grande vencedor é Paulo Apóstolo. Os historiadores concordam em dizer que ele é o fundador do cristianismo mundial tal qual o conhecemos hoje, e que, por conseguinte, pode ser chamado ‘o cristianismo de São Paulo’. O modo de pensar e vivenciar o cristianismo desse movimento peculiar, com o tempo, passa a se apresentar como ortodoxo (certo), incorpora elementos diversos das tradições e, ao mesmo tempo, marginaliza, combate e mesmo elimina expressões consideradas inaceitáveis (heresias).

Os Atos dos Apóstolos (dos anos 120) contam a seu modo como se passa da pluriformidade original à ortodoxia paulina. Nos primeiros capítulos, eles descrevem a vida cristã nesses primeiros anos: os judeus cristãos se reúnem diariamente no Templo de Jerusalém, participam do culto da oferenda, etc. Mas, a partir do capítulo 13, o foco muda bruscamente e a narrativa passa a se concentrar unicamente nos trabalhos e nas viagens de Paulo. A intenção desse redirecionamento da história parece ser a seguinte: Paulo faz parte de uma evolução normal do movimento cristão, ele carrega a herança de Israel e de seus profetas que, via Jesus e seus apóstolos, desemboca em seu ministério. Paulo: um elo normal numa longa tradição ininterrupta. Na mesma linha, os Atos apresentam Pedro como o primeiro a se abrir ao mundo não judeu. Paulo seria, pois, continuador de Pedro. Sem problemas.

Acontece que essa narrativa não combina com o que lemos nas cartas do próprio Paulo (principalmente na Carta aos Gálatas), onde ele se queixa amargamente de ser hostilizado pelos apóstolos em Jerusalém e enfrenta Pedro por ele ter tomado uma atitude dúbia na questão dos não-judeus. Isso significa que Paulo não é um continuador de Pedro, não está dentro da tradição. É um inovador, trilha novos caminhos, rompe clausuras judaicas e descobre o sentido universal do evento Jesus, além de separações étnicas, políticas, sociais.

A postura de Paulo, sem dúvida, merece aplausos. Ele abre o mundo romano, com suas religiões peculiares, ao cristianismo. Como se imaginar um cristianismo que obrigaria a todos de se deixar circuncidar, respeitar o sábado e seguir as complicadas orientações alimentícias do judaísmo?  A novidade de Paulo consiste em considerar tudo isso supérfluo: basta crer em Jesus para ser cristão.

O cristianismo hegemônico é, pois, obra de um homem só, resultado de uma intuição genial: a mensagem de Jesus é universal, atinge todos os homens. Uma intuição que encontra ampla ressonância nas numerosas comunidades judaicas espalhadas na ‘dispersão’ (diáspora), principalmente cidades do Império Romano, onde se pratica um ativo intercâmbio comercial e cultural entre judeus e não-judeus.

Mas há um problema com Paulo. Embora sendo contemporâneo de Jesus, ele nunca o encontrou pessoalmente e só chegou a conhecê-lo, ao que parece, por meio de conversas com cristãos judeus fugidos da Palestina, em Antioquia da Síria, por volta do ano 45. Não sabemos de que modo esses foragidos lhe apresentaram Jesus. De qualquer modo, Paulo fica profundamente impressionado e emocionado, se retira por um tempo do convívio humano e, quando reaparece, passa a apresentar sua imagem de Jesus, sua interpretação da figura de Jesus.

Jesus, para Paulo, é o ‘Ungido de Deus’ (Cristo; Paulo é o primeiro de usar esse termo), ator principal de um drama cósmico. A morte e ressurreição de Jesus Cristo passem a ser apresentadas como formando um só evento, um só drama, que envolve a humanidade toda. É a luta entre o bem e o mal, entre a graça e o pecado, o drama da salvação (redenção).

Em outras palavras, Paulo enxerga Jesus pelo prisma de uma teologia da salvação. Ele escreve textos paradigmáticos dentro dessa teologia: o salvador ‘vence’ o pecado, ou seja, o poder cósmico que mantém a humanidade em estado de escravidão, o pecado que entra no mundo por Adão e do qual o mundo se liberta por Jesus, o ‘segundo Adão’:

Por um só homem o pecado entrou no mundo
E, pelo pecado, a morte se propaga entre os homens,
Desse modo todos pecaram.
Da mesma forma o ato de um só justo
levou todos os homens à salvação, que é a vida.
Agora estamos em paz com Deus
graças ao nosso Senhor Jesus, o Ungido (tradução livre de Rm 5, 12-20).

Ou, na Primeira Carta aos Coríntios:

O primeiro Adão
lodo tirado da terra;
O segundo Adão
tirado do céu.
Como o primeiro homem foi lodo
Todos são lodo (tradução livre de 1Cor 15, 45-49).

‘Por Adão o pecado entrou no mundo, por Jesus a redenção do pecado’ (Rm 5, 12). Paulo rebaixa ao máximo o ‘primeiro Adão’ (e com ele a humanidade inteira) para realçar a grandeza do ‘segundo Adão’, Jesus salvador.

Ao centrar a história da humanidade na ideia de pecado-redenção, Paulo (sem o querer) abre espaço para que a antiquíssima imagem de um Deus soberano, ofendido pelo pecado, entre sub-repticiamente em cena. Um Deus ciumento, que não tolera falta de respeito por parte do ser humano, de Adão e Eva: ‘vocês podem comer à vontade de todas as árvores do jardim, mas não da árvore da experiência do bem e do mal’ (Gn 2, 17). Adão e Eva, inteligentes como são, querem conhecer tudo que existe no paraíso, inclusive a fruta proibida. Não veem nisso falta de respeito a Deus. Mas são expulsos do paraíso.

A redenção, operada por Jesus, consiste em reconquistar o paraíso perdido, escapar do inferno, renegar o ‘primeiro Adão’, aderir ao ‘segundo Adão’. O ser humano está diante de uma opção fundamental: céu ou inferno, salvação ou condenação eterna. Um painel de forte impacto no imaginário religioso.

Com o tempo, a teologia de Paulo vem a ser considerada a única leitura ‘verdadeira’ (ortodoxa) da mensagem evangélica.  Não há mais espaço para a pluriformidade. Inicia-se uma tradição hegemônica que, ao mesmo tempo em que incorpora elementos considerados compatíveis provenientes de diversas formações cristãs, hostiliza impiedosamente os que considera incompatíveis. Infelizmente, nisso se incluem movimentos que venham a relacionar a vida de Jesus com dificuldades enfrentadas por populações pobres. Isso é um ponto negativo da pregação de Paulo: ele dá pouca ou nenhuma atenção ao que mais importa na vida das pessoas que ele congrega: o problema da concentração da riqueza nas mãos de poucos, a exploração do povo por impostos, o sistema sacerdotal, o desamparo à velhice e à viuvez, a desvalorização da mulher, a falta de coesão social, a conformação com situações de pobreza, o abandono de empregados e empregadas domésticos que labutam na intimidade de casas particulares (nas cidades) ou de trabalhadores no campo, na imensa dispersão de agrupamentos humanos num espaço que vai de Lyon na França até Edessa na Síria oriental.

O Jesus Cristo de Paulo contracena, com sucesso, com as grandes imagens da época: o Osiris dos epípcios, o Adonis dos sírios, o Dionísio dos gregos, o Asclépio dos doentes, o Mitra dos legionários romanos. E vence todos esses embates (que duram séculos), sai vitorioso e, a partir do século IV, reina soberano sobre o imaginário de grandes segmentos da população do Império Romano, tanto no Oriente grego como no Ocidente latino. Um sucesso espetacular.

E então, na Idade Média, o cristianismo paulino descarrilha. Cede à ‘híbris’, ao excesso de poder, como costuma acontecer com movimentos vitoriosos. Pregadores irresponsáveis usam as imagens traumatizantes do inferno paulino para manter as populações camponesas nas mãos de um clero sempre mais poderoso. Basta visitar, na Europa, igrejas de estilo romano (séculos XI-XIII) para ver como elas andam cheias de referências ao inferno. Basta visitar museus onde se encontram famosas pinturas do Último Juízo (Van der Weyden em Beaune na França, Fra Angélico em Florença, o Miguelangelo na Capela Sistina do Vaticano, sem esquecer o Bosch do Museu Prado em Madrid). O supermosteiro de Cluny (século XI) despeja durante séculos mensagens na linha da ‘pastoral do medo’ por toda a extensão do Ocidente cristão (Delumeau, J., La Peur en Occident [O medo no Ocidente], Fayard, Paris, 1978: um clássico).  Consequências diretas ou indiretas do cristianismo de São Paulo.

Com isso dou uma parada, pois este texto não foi escrito para discursar mais profundamente sobre esse tema. Apenas lembro de passagem a teologia do ‘pecado original’ de Santo Agostinho (século V), ou a teologia da ‘satisfação’ de Anselmo de Cantuária (‘Cur Deus Homo? [por que Deus se fez homem?], 1094-1098).

3. O cristianismo de São Paulo entra numa fase de declínio?

Não se proclama hoje com som de trombeta que o cristianismo de São Paulo estaria passando, mas todos sentimos que algo está se movendo: no estilo adotado pelas igrejas, nas liturgias, nas pregações, nos comportamentos de autoridades eclesiásticas, nas reações dos fiéis. Por ora, os sinais são discretos, mas persistentes.  

O sinal mais claro parece ser o do inferno, tão importante no passado, e que lentamente sai de cena. Pastores e pregadores bem sabem que não é mais para amedrontar os fiéis com imagens de terror infernal. Um tema principal da pregação cristã de séculos desaparece discretamente. Ainda pouco tempo atrás (pelo que sei, ainda nos anos 1960), as missões populares no Nordeste brasileiro costumavam se iniciar com uma pregação contundente sobre o inferno. Hoje, os pregadores sabem que uma pregação sobre o inferno os afasta dos ouvintes. As pessoas já não aceitam a terrível imagem do inferno, a tradicionalmente mais temida arma na boca dos pregadores. Nos documentos do Concílio Vaticano II da igreja católica, o tema do inferno aparece tão discretamente que praticamente não se encontram comentários a seu respeito. Os temas paulinos de condenação e redenção, pecado e salvação não encontram mais a ressonância de antes. A pastoral do medo não funciona mais, ela é substituída pela pastoral do acolhimento e da cordialidade. Raramente ainda se ouvem xingamentos tão em voga no passado, como, por exemplo, ‘vá pro inferno’, ‘o diabo o carregue’, ‘dane-se’, ‘diacho’, ‘capeta’, ‘Deus o condene’.

Hoje, como nos primeiríssimos anos da tradição cristã, convivemos com diversas formas de se vivenciar a fé. Estamos em condições de compreender que, afinal, todos os modos históricos de se viver a mensagem de Jesus são marcados por aquela provisoriedade e incompletude que marca toda a história humana. O cristianismo de Paulo conta com uma hegemonia de dois mil anos, mas isso não significa ele expresse a mensagem de Jesus de modo perfeito. Continuamente, através da história, aparecem novas modalidades, novos temas, novos desafios. O ecumenismo facilita a compreensão desse fenômeno e nos torna capazes de resgatar elementos positivos, por onde se encontrem.

Pode-se dizer que, na atual evolução do cristianismo, aparece de modo sempre mais claro o tema do Reino de Deus. Um tema central no ensino de Jesus de Nazaré. Nos anos 1950 aparece a ‘teologia das realidades terrestres’ (Gustave Thils), nos anos 1970 a ‘teologia da libertação’ e a ‘teologia da prosperidade’, duas teologias que aparecem contraditórias, mas que no fundo são complementares: para que se libertar, senão para viver uma vida de prosperidade?

Nesse contexto não me parece fora de propósito tecer algumas considerações acerca de esforços empreendidos por estudiosos do Novo Testamento que, desde meados do século XIX, vão à procura de ‘Jesus histórico’. Suas pesquisas resultam hoje em numerosos trabalhos valiosos, como comprova o livro do sacerdote espanhol J. A. Pagola ‘Jesus, aproximação histórica’ (Vozes, Petrópolis, 2010). Claro, esses estudos nos convencem de que temos de nos conformar com o fato de só possuirmos informações precárias e imprecisas acerca de Jesus. Existem relativamente poucas ‘âncoras historiográficas’ (referências que passam pelo crivo da crítica histórica) a respeito do homem de Nazaré, mas elas são suficientes para nos mostrar um Jesus socialmente engajado. Em 1985, Robert Funk criou, nos Estados Unidos, o ‘Jesus Seminar’, que organiza dois seminários por ano, abertos ao público. O ‘Seminar’ publica regularmente trabalhos de especialistas, que você pode acessar na Internet. Deles resulta um quadro histórico com os seguintes pontos: Jesus nasceu e cresceu num ambiente de pobreza; o povo camponês da Galileia pagava 14 % de seus rendimentos a Roma e 21 % ao templo de Jerusalém; os que não pagavam eram flagelados (informação do historiador judeu Flávio Josefo); o contraste entre ricos e pobres era muito grande; os camponeses se alimentavam mal (esqueletos da época demonstram falta de ferro e proteínas); social e politicamente, a Galileia era controlada pelo Templo de Jerusalém;dos dezoito mil sacerdotes, ligados ao Templo, que percorriam a Palestina, um bom número penetrava nas pequenas ou médias povoações da Galileia como Caná, Naim, Genesaré, Corazim, Giscala, Mágdala e Cafarnaúm.

Eis uma amostra de dados históricos que permitem situar devidamente as falas de Jesus acerca do Reino de Deus. Fincamos os pés no chão seguro de trabalhos históricos autorizados quando dizemos que Jesus era uma pessoa socialmente engajada e é nesse sentido que se entende seu tema principal: o Reino de Deus.

Por fim peço licença para voltar por uns instantes a alguns movimentos dos primeiríssimos tempos, como os acima citados de ebionitas, elkasaítas ou nazareus. Eles não lutam, como Jesus, para realizar o Reino de Deus na terra? Os ebionitas, por exemplo, ao dizer que ‘Jesus veio para abolir os sacrifícios’, não seguem a teologia do pecado e da redenção, rejeitam o sacrificialismo que desvia a atenção do que realmente importa. E ao declarar que Jesus não necessita ser divinizado para ser mestre de vida e de comportamentos e ao sustentar essa fé por séculos, essas antiquíssimas testemunhas da fé nos dizem algo que soa novo. 


Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.