O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O PLANETA: PAIXÃO DAS NOVAS GERAÇÕES



Por Maria Clara Bingemer

Nós, que vivemos os tempos empolgantes do final dos anos 1960 e da década de 1970, muitas vezes nos perguntamos o que acontece com as novas gerações. Queríamos mudar o mundo, respirávamos utopia, apostávamos todas as fichas na luta por um mundo melhor.  E ficamos perplexos por não ver essa mobilização acontecendo com nossos filhos e netos, que nos parecem por vezes reféns de uma passividade imediatista que só deseja sorver o presente e cujo horizonte mais e mais se encurta. 

A sexta-feira da greve global pelo clima mudou esse nosso olhar e transformou igualmente a percepção de nossa geração sobre o imenso desafio que temos pela frente. As crianças e os jovens nos disseram o que os mobiliza, o que os apaixona, o que os faz perder noites de sono e ir às ruas cheios de esperança.  Trata-se do futuro do Planeta, da Mãe Terra, do habitat nosso e de todos, da Casa Comum. 

A liderança foi da ativista sueca Greta Thunberg, de 16 anos. Desde seus 15 anos Greta faz greve às sextas-feiras diante do Parlamento de seu país em favor do clima e contra a indiferença dos governos à ameaça que paira sobre o planeta. A greve foi convocada e a resposta surpreendeu: mais de 130 países aderiram, milhares de pessoas foram às ruas exigir medidas concretas contra a destruição do planeta.

A esmagadora maioria desses manifestantes é jovem, alguns recém-saídos da infância e entrando na adolescência.  O futuro do planeta os mobiliza, e eles e elas mostram aguda consciência do perigo que correm todos os humanos e todos os seres vivos se não for detida a destruição massiva que está em curso com o aquecimento global, as emissões de combustíveis, o desmatamento descontrolado e outras ocorrências que se multiplicam. Todos esses preocupantes sinais são impulsionados por um sistema que só visa lucro a qualquer preço e padece de crônica miopia por tudo que se situe além do imediatismo e do curto prazo. 

Entre os pensadores que refletem sobre o tema e dão as pautas a esse movimento está o Papa Francisco, que com sua encíclica publicada em 2015, Laudato Si, faz uma aguda análise da situação da ecologia em nível mundial.  Mas além disso adverte que aquilo que afeta o planeta, toca sobretudo nos mais vulneráveis de seus habitantes: os pobres, os oprimidos de toda sorte que são as primeiras vítimas da destruição da casa comum. 

Além de denunciar o mal que faz a destruição do planeta aos pobres da sociedade, a Encíclica apresenta a Terra como um desses pobres e vulneráveis, vítima de um progresso desordenado e desenfreado. Já no início do documento, Francisco afirma que “entre os pobres mais abandonados e maltratados, está nossa oprimida e devastada terra, que geme e sofre dores de parto”. Destacando a luminosa figura de Francisco de Assis, cujo cântico das criaturas dá o título à encíclica – Laudato sì – o Papa relembra que ele era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e em uma maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Alguém que mostra até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça com os pobres, o compromisso com a sociedade e a paz interior. 

Talvez sem o saber, essas crianças e jovens, muitos deles oriundos de países secularizados, estão em profunda sintonia com a Igreja naquilo que reivindicam. Em busca de um líder ao qual possam confiar seus desejos e reivindicações, encontrarão certamente o Papa Francisco que, em sua encíclica, apresenta ao mundo a urgência de uma conversão ecológica integral, a fim de que a criação de Deus e a vida que nela habita tenha futuro. 

A visão dos milhares de jovens e adolescentes manifestando e pedindo pelo planeta tinha a forma de uma grande liturgia.  Ali está a utopia de sua geração, sua paixão, aquilo pelo qual estão dispostos a tudo. De seus corpos e bocas saía a expressão da verdade que denuncia a hipocrisia e a irresponsabilidade dos poderes destruidores da terra e da vida. 

A multicolorida manifestação evoca uma frase de Jesus no Evangelho de Mateus: “Dos lábios das crianças e dos recém-nascidos suscitaste louvor’”. A indignação dos meninos é louvor ao Senhor da vida, cujo Espírito sopra e anima tudo que existe. E que deseja ver sua criação desabrochada e bela, jorrando vida em plenitude àqueles que a habitam. 

A jovem Greta passeou sua liderança indignada pelas ruas de Nova York e na sede das Nações Unidas fez um dramático apelo a todos nós.  Legamos à sua geração um mundo dizimado por duas guerras mundiais e estamos a ponto de destruir para sempre o planeta onde ela e seus filhos habitarão. 

É triste que essas crianças e jovens devam interromper sua infância e juventude, prejudicar sua escolaridade,  para lembrar-nos de nossas responsabilidades negligenciadas.  Mas ao mesmo tempo é fonte de muita esperança que o façam com tanta paixão e tanto compromisso.  Laudato si!

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc).

Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

Maria Helena Guimarães Pereira
mhgpal@gmail.com

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

DROGAS E RELIGIÃO



Frei Betto

        O uso de alucinógenos e outros aditivos químicos teve início historicamente em rituais religiosos, como ainda hoje ocorre com o  ayahuasca, utilizado  pelos adeptos do Santo Daime e da União do Vegetal.
        Na descrição que o evangelista Mateus faz do nascimento de Jesus, consta que os reis magos (astrólogos?) levaram de presente ao Messias ouro, símbolo da realeza; incenso, da espiritualidade; e mirra, do profetismo.
        O incenso, utilizado inicialmente no antigo Egito e extraído do tronco de árvores aromáticas, é uma “droga” que reduz a ansiedade e o apetite. Ao contrário do que muitos pensam, não é originário da Índia, e sim da Somália, da Etiópia e das montanhas do sul da Arábia Saudita.
        A mirra, originária da África tropical, é uma resina obtida dos arbustos do gênero Commiphora. Seu efeito analgésico se compara ao da morfina. No Evangelho de Marcos, aparece, mesclada ao vinho, oferecida a Jesus torturado antes de o crucificarem; ele rejeitou a bebida.
        Hoje, as substâncias químicas obtidas de plantas superaram o âmbito religioso e terapêutico, e se tornaram iscas à dependência química com suas nefastas consequências, como é o caso da coca, cuja folha é mascada pelos indígenas andinos para facilitar a respiração em regiões de oxigenação rarefeita.
        Há ainda a produção de drogas sintéticas e o “doctor shopping”, o médico que produz poderosos analgésicos capazes de provocar a morte de seus pacientes, como foram os casos de Michael Jackson e Whitney Houston.
        A repressão ao narcotráfico não mostra resultados satisfatórios. As famílias dos dependentes, desesperadas, buscam internações e terapias “miraculosas”.
        Médicos, remédios e terapias podem, sim, ajudar na recuperação de dependentes. O fundamental, porém, é o amor da família e dos amigos – o que não é nada fácil nessa sociedade consumista, individualista, na qual o “drogado” representa uma ameaça e um estorvo.
        A religião, adotada em algumas comunidades terapêuticas, pode favorecer a recuperação, desde que infunda no dependente um novo sentido à sua vida. Eis, aliás, o que evitou que a minha geração, aquela que tinha 20 anos na década de 1960, entrasse de cabeça nas drogas: éramos viciados em utopia. Nossa “viagem” consistia em derrubar a ditadura e mudar o mundo.
        Na questão das drogas há que distinguir segurança pública de saúde pública. Sou favorável à descriminalização dos usuários e penalização dos traficantes. Os usuários só deveriam ser afastados do convívio social se representarem ameaça à sociedade. Nesse caso, precisariam ser encaminhados a tratamento, e não a encarceramento.
        A religião nos mergulha no universo onírico, pois nos faz emergir da realidade objetiva e nos introduz na esfera do transcendente, imprimindo sacralidade à nossa existência. Mais do que um catálogo de crenças, ela nos permite experimentar Deus. Daí a etimologia, nos re-liga com Aquele que nos criou e nos ama, e no qual haveremos de desembocar ao atingir o limite da vida.
        Ocorre que, graças ao neoliberalismo e seu nefasto “fim da história” - uma grave ofensa à esperança -, e às novas tecnologias eletrônicas, às quais transferimos o universo onírico, já quase não temos utopias libertárias nem o idealismo altruísta de um mundo melhor. Queremos melhorar a nossa vida, a de nossa família, não a do país e da humanidade.
        Esse buraco no peito abre, nos jovens, o apetite às drogas. Todo “drogado” é um místico em potencial, alguém que descobriu o que deveria ser óbvio a todos: a felicidade está dentro, e não fora da gente. O equívoco é buscá-la pela porta do absurdo e não a do Absoluto.
        Um pouco mais de espiritualidade cultivada nas famílias, sobretudo em crianças e jovens, e não teríamos tanta vulnerabilidade à sedução das drogas.
        Enfim, incenso faz bem à alma.

Frei Betto é escritor, autor de “O vencedor” (Ática), romance sobre drogas, entre outros livros.


 Copyright 2019 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

POR BAIXO DA POEIRA: A IDENTIDADE DE JESUS




por Kinno Cerqueira [1]

Há dois mil anos, um camponês andou empoeirando os pés nas terras da Palestina. Na oficina de seu pai José, aprendeu um pouco de artesanato e na companhia de sua mãe Maria, aprendeu a cantarolar as cantigas de libertação que ela tanto cantava. Não conseguiu sucesso como artesão nem como cantor, mas soube integrar o ofício de artesão do pai ao gosto musical da mãe: tornou-se um artesão de sonhos, de utopias, de esperanças, fazendo de sua própria existência uma cantiga de revolução ao ritmo do amor. Que menino danado!

Como se não bastasse, descobriu-se com vocação para ser profeta. É que andou lendo demais o livro de um tal de profeta Isaías e, como reza um antigo provérbio: “Dizes-me o que andas lendo e direi o que tu serás”. Assim aconteceu com o menino-rapaz: quando se deu conta, já estava tomado pelas ideias revolucionárias do Isaías e não conseguia mais pensar noutro assunto que não fosse a instauração de um grande projeto de amor que revolucionasse o mundo a partir dos pobres e pequenos.

Após arregimentar mulheres e homens em torno de suas ideias, começou a peregrinar pelas cidades e aldeias de seu país, como também do exterior, anunciando que a vida poderia ser vivida de uma maneira nova. Queria um mundo sem pobreza e miséria. Queria transformar os terrenos pedregosos em jardins floridos. Algumas pessoas se mostraram simpáticas perante suas ideias; outras, porém, odiaram-nas. Nem todos gostam de jardins!

O menino-rapaz se reunia com os excluídos frequentemente. Suas reuniões soavam como uma espécie de conspiração contra a cúpula religiosa que figurava como o principal braço do governo opressor. Seus opositores tinham certa razão, pois as suas reuniões que aconteciam sob o pretexto de refeições comunitárias eram, na verdade, encontros de conscientização política. Ali, enquanto convivia com os excluídos, procurava deixar claro que o rosto de Deus desenhado pela cúpula religiosa era, na verdade, uma grande farsa com fins desonestos.

Contrariando os interesses dos poderosos, principiou uma política de saúde pública. O diagnóstico foi este: as histerias e enfermidades eram o reflexo da opressão religiosa e política perpetrada pelos donos do poder e que, por isso, o fundamentalismo religioso, aliado ao governo injusto, era o principal câncer social. A solução é radical: romper com a lógica de dominação que estratifica, estigmatiza e explora para viver segundo a lógica do amor que cura, restaura e vivifica.

O movimento popular liderado pelo profeta Jesus conquistou o ódio dos chefes da religião, os quais se reuniram sucessivas vezes para discutir as medidas a serem tomadas para acabar com a militância de Jesus. A maioria decidiu que a solução seria assassinar o líder do movimento.  Assim, em conluio com vários grupos reacionários e com o governo imperial, a elite religiosa tramou e executou o assassinato de Jesus mediante crucificação, estilo de condenação reservado para revolucionários e insurgentes.

O profeta foi posto no túmulo. Os poderosos saltavam de alegria, dizendo: “Vencemos! A força está conosco”.  Enquanto isso, os pobres choravam e pensavam: “Mais uma tentativa frustrada! Que será de nós agora?”. Não sabiam eles que a voz de um verdadeiro profeta não pode ser sepultada. Jesus ressuscita no coração dos discípulos e discípulas. Ele vive nas pessoas que se arriscam a viver como ele viveu e a tomar o lado que ele tomou. Ele habita os corações que pulsam pela transformação do mundo; é parceiro do povo que luta; é amigo e camarada do povo camponês, dos trabalhadores, dos sem teto, dos índios, dos negros, dos LBGTI’s e de todos os marginalizados.  

Por mais que tentem ocultar sua identidade sob a poeira dos religiosismos, o hálito de Deus sopra a poeira para que o mundo redescubra quem é Jesus. Jesus, o artesão do amor, é profeta que anuncia o Reino de Deus, quer dizer, uma nova maneira de ser-no-mundo na qual prevalece a liberdade guiada pelo amor enquanto serviço e compromisso com os pobres, contra a pobreza e pela justiça.

Redescobrir a identidade do profeta Jesus é reencontrar o caminho para um mundo novo, pois sua face interpela, inspira e encoraja a transformar pedreiras em jardins floridos e a fazer da vida um belíssimo poema de amor nos lábios do tempo.

[1] Kinno Cerqueira é pastor batista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

BIBLIOTECA VIVA DA JUSTIÇA E DO AMOR





Por Marcelo Barros

Neste próximo domingo, o último de setembro, as comunidades católicas festejam o Dia da Bíblia. É ocasião para recordarmos o bem que, na Igreja Católica, desde o começo do século XX, o Movimento Bíblico tem feito. Provocou a renovação de todo o jeito de ser da Igreja, de sua missão e da espiritualidade. Foi um dos pilares do Concílio Vaticano II.

A Bíblia nasceu em meio aos empobrecidos de Israel. No entanto, durante séculos, ficou em poder de intelectuais e pessoas abastadas. O medo de heresias e interpretações erradas fazia com que os católicos quase não pudessem ter acesso à Bíblia, a não ser em língua latina. Só a partir de meados do século XX, nos ambientes católicos, se espalharam, em nossas línguas, traduções da Bíblia. Apesar disso, a leitura bíblica ainda era restrita a quem estuda. Quem a interpretava fazia isso a partir do poder.

Em tempos de ditaduras, generais tomavam o poder, jurando sobre a Bíblia. Citando páginas bíblicas, papas e bispos organizaram exércitos para a guerra contra infiéis e queimaram hereges na fogueira. Até hoje, movimentos fundamentalistas e fanáticos se inspiram na Bíblia para defender o patriarcalismo, a homofobia e até mesmo o racismo. Tradicionalistas judeus se apoiam em  textos bíblicos para  apoiar a guerra de Israel contra o povo palestino. O governo dos Estados Unidos usa a Bíblia para justificar imperialismo e opressão. No Brasil e em outros países, pastores cristãos baseiam-se na Bíblia para condenar religiões negras e tradições indígenas. Leem ao pé da letra condenações da Bíblia aos ídolos estrangeiros e as aplicam às religiões dos pobres e oprimidos.

Ecologistas culparam a Bíblia pela destruição da natureza e ameaça à vida no planeta Terra. De fato, a Bíblia, lida ao pé da letra ensina que Deus criou o ser humano como “senhor da criação”, com poder sobre os animais e a terra. Entre todos os seres, o humano seria o único criado “à imagem e semelhança de Deus” (Cf. Gn 1, 28; Sl 8).

De fato, as Igrejas cristãs têm uma dívida enorme com a humanidade. Não basta afirmar que esses males têm sido produzidos por uma leitura equivocada da Bíblia, que em si não justificaria esses males. Lamentavelmente, grande parte da hierarquia católica, de pastores evangélicos e de grupos cristãos de todas as Igrejas ainda pregam o evangelho de forma dogmática e arrogante. Agem de forma que dão razão a quem pensa que a Bíblia é arma para quem suscita violências e sofrimentos à humanidade e ao planeta. É preciso purificar a leitura bíblica e o modo como se fala de Deus. É preciso revelá-lo como Amor e Compaixão e não como um déspota que impõe a sua vontade e castiga impiedosamente quem não o obedece. Tem sido justamente esse o esforço do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), cujo aniversário de 40 anos estamos comemorando nesse ano. Por iniciativa de frei Carlos Mesters e um pequeno grupo de amigos e amigas, o CEBI começou em Angra dos Reios, RJ, por uma roda de conversa entre pessoas que amam a Bíblia. Pouco a pouco, essa iniciativa se espalhou por todo o Brasil e outros países.

O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) parte do princípio de que a Bíblia é a escritura da palavra de Deus. É como uma partitura musical que só se torna música à medida que é executada. Assim, a Bíblia só se revela palavra divina à medida que é proclamada e vivida nas comunidades.

Jesus agradeceu ao Pai ter escondido os seus segredos aos sábios e entendidos do mundo e os ter revelado aos pequeninos. A eles e elas, Jesus revelou um Deus diferente, Pai que nos ama com amor maternal. Se é Deus, só pode ser amor e misericórdia. Nunca será ser vingativo e intolerante. Quer de nós amor e não nenhum sacrifício. Jesus tinha explicado que não basta espalhar a semente. Ela só será fecunda e dará fruto se cair em terreno favorável.

O CEBI sempre defendeu que o terreno melhor para se ouvir e praticar a palavra de Deus é a comunhão com os mais pobres. É a partir da vida dos oprimidos que, na leitura comunitária e orante da Bíblia, vamos discernindo a  revelação de um projeto divino de justiça, amor e vida para a humanidade e todo o universo. Na América Latina, multidões leem a Bíblia para encontrar força de viver. Em anos recentes, em vários países do continente, muitas pessoas foram presas e assassinadas por terem lido a Bíblia e nela descoberto que deviam consagrar suas vidas à transformação do mundo.

Se continuamos a amar a Bíblia e acolhemos sempre sua mensagem é porque, como lembrava o papa Paulo VI: “para se encontrar a Deus, é fundamental se encontrar o ser humano”.
  

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br  


sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A DESTRUIÇÃO DAS “INDIAS BRASILEIRAS”



Por Leonardo Boff

Em função do Sínodo panamazônico de outubro, comvém relembrar o que foi a destruição das Indias Brasileiras, no linguajar de Bartolomé de las Casas com referência à América Central.
O primeiro encontro a 21 de abril de 1500, narrado idilicamente pelo cronista Pero Vaz de Caminha, logo se transformou num profundo desencontro. Por culpa da voracidade dos colonizadores, não ocorreu uma reciprocidade entre o português e o índio, mas um confronto, desigual e violento, com desastrosas consequências para o futuro de todas as nações indígenas.
Como no resto da América Latina, negou-se-lhes a eles a condição de seres humanos. Ainda em 1704 a Câmara de Aguiras, no Ceará, escrevia em carta ao rei de Portugal que “missões com esses bárbaros são excusadas, porque de humano só tem a forma, e quem disser outra coisa é engano conhecido”. Foi preciso que o Papa Paulo III, com uma bula Sublimis Deus de 9 de julho de 1537, interviesse e proclamasse a eminente dignidade dos indígenas como verdadeiros seres humanos, livres e donos de suas terras.
Pelas doenças dos brancos contra as quais eles não tinham imunidade – a gripe, a catapora, o sarampo, a malária, e a sífilis – pela cruz, pela espada, pelo esbulho de suas terras, impossibilitando a caça e as plantações, pela escravização, por guerras declaradas oficialmente como por Dom João VI em 13 de maio de 1808 contra os Krenak no Vale do Rio Doce. Modernamente, ao se abrirem as grandes estradas e hidrelétricas na Amazônia usaram-se contra eles desfolhantes químicos, ataques com helicópteros e voos rasantes de aviões até por bactérias intencionalmente introduzida. Pela sistemática humilhação e negação de sua identidade, os cinco milhões foram reduzidos ao número atual de 930.00 mil. Vigorou, na relação aos indígenas, o propósito político de sua erradicação, seja pela aculturação forçada, seja micegenização espontânea e planejada, seja pela pura e simples exterminação, como fez o Governador Geral do Brasil, Mendes Sá com os Tupiniquim de Ihéus:”os corpos foram  colocados ao longo da praia, alinhados, na extensão

de uma légua”.
Citemos apenas um exemplo paradigmático que representa a lógica da “destruição das Indias brasileiras”. No começo do século quando os padres dominicanos iniciaram uma missão às margens do rio Araguaia, havia 6-8 mil Kaiapó em conflito com os seringueiros da região. Em 1918 foram reduzidos a 500. Em 1927 a 27. Em 1958 a um único sobrevivente. Em 1962 eram dados como extintos em toda aquela região.
Com a dizimação de mais de mil povos, em 500 anos de história brasileira, desapareceu para sempre uma herança humana construída em milhares de anos de trabalho cultural, de dialogação com a natureza, de invenção de línguas e de construção de uma visão do mundo, amiga da vida e respeitosa da natureza. Sem eles todos ficamos mais pobres.
O sonho de um índio Terena, recolhido por um bom conhecedor da alma brasileira e indígena, mostra o impacto desta devastação demográfica sobre as pessoas e os povos: “Fui até o velho cemitério guarani na Reserva e lá vi uma grande cruz. Uns homens brancos chegaram e me pregaram na cruz de cabeça para baixo. Eles foram embora e eu fiquei lá pregado e desesperado. Acordei com muito medo” (Roberto Gambini, O espelho índio, Rio de Janeiro 1980. p. 9).
Esse medo, pela continuada agressão do homem branco e bárbaro (arrogantemente se auto-denomina  civilizado), se transformou, nos povos indígenas, em pavor de que sejam exterminados para sempre da face da Terra.
Graças às organizações indígenas, às novas legislações proteccionistas do estado, ao apoio da sociedade civil, das Igrejas e da pressão internacional, os povos indígenas estão se fortalecendo e, mais, estão crescendo numericamente. Suas organizações revelam o alto nível de consciência e de articulação que eles atingiram. Sentem-se cidadãos adultos que querem participar dos destinos da comunidade nacional, sem renunciar à sua identidade e colaborando junto com outros sujeitos históricos com sua riqueza cultural, ética e espiritual.
Por isso, é extremamente ofensiva à sua dignidade, a forma como o estado brasileiro, especialmente sob o governo de Bolsonaro, os trata e maltrata com suas políticas indigenistas como se fossem primitivos e infantis. Na verdade, eles guardam uma integralidade que nós ocidentais perdemos, reféns de um paradigma civilizacional que divide, atomiza e contrapõe para mais dominar. Eles são guardiães da unidade sagrada e complexa do ser humano, mergulhado com outros na natureza da qual somos parte e parcela. Eles conservam a consciência bem-aventurada de nossa pertença ao Todo e da aliança imorredoura entre o céu e a terra, origem de todas as coisas.
Quanto em outubro de 1999 estive encontrando os indígenas noruegueses – os samis ou esquimós – em Umeo, eles me fizeram uma primeira pergunta, prévia à conversação:
– Os índios brasileiros conservam ou não o casamento entre o céu e a terra?
Eu, entendi logo a questão e respondi resolutamente:
– Lógico, eles mantém este casamento. Pois do casamento entre o céu e a terra nascem todas as coisas.Eles, felizes, responderam:
– Então, são ainda, verdadeiramente, índios como nós. Eles não são como os nossos irmãos de Estecolmo que esqueceram o céu e só ficaram só com a terra. Por isso se sentem infelizes e muitos se suicidam. Se mantivermos unidos céu e terra, espírito e matéria, o Grande Espírito e o espírito humano então salvaremos a humanidade e a nossa Grande Mãe Terra.
Essa, seguramente, é a grande missão dos povos originários e o seu maior desafio: ajudar-nos a salvar a Terra, nossa Mãe, que a todos gera e sustenta e sem a qual nada neste mundo é possível.
Precisamos ouvir sua mensagem e incorporarmo-nos em seu compromisso, para fazermo-nos também nós, como eles, testemunhos da beleza, da riqueza e da vitalidade da Mãe Terra.
Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu:  O Casamento entre o céu e a Terra, Mar de


quinta-feira, 19 de setembro de 2019

FACE AUTORITÁRIA DO NEOLIBERALISMO




Frei Betto

       Por paradoxal que pareça, a lei se tornou ferramenta do neoliberalismo para enfraquecer a democracia. O Estado de Direito vem sendo demolido por dentro, de modo a servir apenas aos interesses da elite.
       O tão esperado abalo do neoliberalismo, a partir da crise financeira de 2008, não ocorreu. Ao contrário, ele se fortalece com novas estratégias.
       O neoliberalismo é mais do que imposição de políticas de austeridade, privatização do patrimônio público, ditadura dos mercados financeiros. Ele implica uma racionalidade de abrangência mundial, que vai da economia de mercado à subjetividade das pessoas. Anula a soberania dos países aos submetê-los aos ditames do FMI, do Banco Mundial e da União Europeia. Demarca a linha divisória entre a parcela da humanidade com acesso ao consumo e a imensa multidão excluída até mesmo de direitos elementares, como alimentação, saúde e educação.
       O neoliberalismo já não necessita fazer concessões ao Estado de bem-estar social, pois desapareceu a ameaça comunista. Já não precisa posar de democrata. Agora, a imposição de um único modelo econômico deve se coadunar com a imposição de um único modelo político, o autoritário, de modo a favorecer a acumulação do capital e conter a insatisfação de amplos setores da população sem direito aos bens essenciais à vida digna.
       Os estrategistas do neoliberalismo sabem que suas políticas causam exclusão e sofrimento. Sabem também que é preciso conter a insatisfação dos excluídos, de modo a evitar a explosão que resultaria em caos político ou revolução. Assim, canalizam a miséria e a pobreza para o alívio virtual da religião, tornando-a, de fato, “ópio do povo”, capaz de aplacar a revolta e incutir espírito de sacrifício. Concentram o ressentimento e a descrença na democracia, e  transformam em bodes expiatórios partidos e políticos críticos ao neoliberalismo. Fazem convergir a baixa autoestima e a atual tendência à adoção de pautas identitárias para um amplo sentimento de identidade nacional marcado pela xenofobia.
       Em suma, encobrem as causas dos males sociais, e recobrem seus efeitos com ideologias que, ao tornar opacas as causas, acirram os ânimos diante dos efeitos. Por isso, o neoliberalismo mostra agora a sua face mais autoritária, com a construção de muros que separam nações e etnias; a supremacia do poder executivo sobre o legislativo e o judiciário; a desinformação via redes digitais; o culto à pátria; e a ofensiva descarada contra os direitos humanos.
       Por outro lado, reduz impostos para os mais ricos, precariza as relações de trabalho, suprime políticas sociais, corta investimentos na educação, acelera as privatizações e considera estorvo aos interesses do capital a proteção socioambiental.
       Henry Giroux qualifica de “fascismo neoliberal” essa formação política caracterizada por ortodoxia econômica, militarismo, desprezo por instituições e leis, ódio aos artistas e intelectuais, repulsa ao estrangeiro pobre, desconsideração pelos direitos e pela dignidade das pessoas, e violência para com os adversários.
       As reformas propostas pelo novo neoliberalismo, como, no Brasil, a trabalhista e a previdenciária, tendem a extinguir as redes de proteção social: sindicatos, ONGs, movimentos populares, e instituições corporativas (OAB, ABI, CNBB etc.) de defesa dos princípios democráticos.
       Como reagem os vencidos? Articulam as forças de oposição e se posicionam em favor de democracia? Antes fosse. De fato, os vencidos são como moscas presas no globo da lâmpada, cegos pelos encantos da sociedade de consumo. Não conseguem encontrar a saída e sofrem por estarem ali presos. Reagem ao se abster nas eleições, refugiar-se em suas bolhas digitais, dar apoio a quem vocifera em tom bélico. Toda raiva é a violência introjetada na alma.
       Resta aos críticos saírem de suas redomas acadêmicas para ajudar os vencidos a descobrir que possuem uma força capaz de virar o jogo e instaurar a democracia.

Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.
 Copyright 2019 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com



quarta-feira, 18 de setembro de 2019

QUANDO A IGREJA BRASILEIRA REDESCOBRE IBIAPINA




Por Eduardo Hoornaert

Dois sacerdotes que atuam na Paraíba, Ernando Teixeira e José Floren, lançaram recentemente um livro, intitulado ‘Padre Ibiapina por nossos bispos, Textos episcopais’ (Ideia Editora, João Pessoa, 2019, ISBN 978 85 463 0418 9). Um livro que, em sua modéstia, é marca de uma passagem histórica. Quatorze bispos, na maioria nordestinos, redescobrem Ibiapina e, com ele, as fundas raízes da tradição católica neste país. O que hoje é um vislumbre, pode ser amanhã alavanca de grandes transformações.

A importância da redescoberta de Ibiapina e, portanto, dos quatorze testemunhos episcopais reunidos nesse livro, se realça melhor quando situamos essa figura diante de um amplo painel histórico.

Duas forças históricas modelam as religiões, desde tempos imemoráveis: a devoção (a fé) e a instituição. A primeira na origem, a segunda como sustentáculo indispensável. A instituição, bem compreendida, é um serviço prestado à devoção. Devoção e instituição se apresentam como forças vinculadas, interdependentes, sendo que uma religião funciona a contento quando ambas as forças constituem uma só engrenagem.

Acontece que a história das religiões está repleta de casos em que a instituição desvia a força criativa da devoção para fins interesseiros, seja para fortalecer o poder do imperador do momento, seja para beneficiar classes privilegiadas, seja ainda para arregimentar o povo em guerras santas.

A história da religião cristã não escapa a esse processo de apropriação da devoção pelas forças da instituição. Um caso flagrante acontece no século IV, na chamada ‘reviravolta constantiniana’. Na época, muitos líderes de comunidades cristãs se deixam seduzir pelos modos em que a religião se organiza no Império Romano. A religião oficial romana consiste na drenagem do dinamismo espiritual dos povos subjugados para fins políticos, ao apresentar o Imperador como uma figura divina a merecer a devoção dos povos. Um péssimo exemplo. Infelizmente, é exatamente a imagem do Imperador romano que impacta os bispos reunidos na Capital do Império em torno de Constantino, a celebrar o Concílio de Niceia em 325. Os bispos cometem o equívoco de apresentar o modelo romano em termos de organização religiosa como exemplo a ser seguido nas comunidades cristãs. Imitando o modelo corporativo sacerdotal do Império, montam um sistema eclesiástico de tipo corporativo, a administrar e controlar o universo devocional cristão. Doravante, a ‘igreja devota’ se vê na contingência de se acomodar a essa instituição hegemônica, sob pena de sofrer a pecha de heresia.

As consequências dessa guinada história se fazem sentir até hoje. O sacerdote se apropria do universo devoto, marginaliza o antigo articulador das comunidades, reserva para si a administração do sagrado. Os sacramentos, sinais do amor de Deus, se transformam em ritos obrigatórios. O batismo, a missa dominical, a confissão anual, o matrimônio, tudo se torna obrigatório. O clero alcança o topo do poder e o devoto se torna seu subalterno. Um ‘devoto do santo’ que se recusa a ser um ‘fiel do padre’, é expulso e perseguido como herege. A paróquia pratica concretamente essa conversão de devoto em fiel. O povo torna-se ‘objeto’ da ‘pastoral’ eclesiástica. Os que não são batizados, não vão à missa nos domingos, não são casados na igreja, são discriminados e, com o tempo, expulsos da comunidade. Forma-se um universo católico, que na Europa Ocidental, ou seja, no centro do sistema eclesiástico, funciona a contento durante longos séculos.

Nas periferias do sistema, contudo, as coisas são diferentes. A partir do século XVI, a igreja católica se expande pelo mundo ao acompanhar e sustentar a colonização europeia na África e na América, assim como em grandes partes da Ásia. Criam-se periferias em que o programa paroquial não consegue funcionar como planejado. Nelas, de modo natural, sem planejamento, a igreja devota emerge como força de aglutinação de populações. Pois, como escrevi acima, a devoção constitui a base da religião. Ao integrar energias espirituais provenientes da Europa a energias provenientes de povos originários e de escravos africanos, a devoção se torna a grande força civilizadora e humanizadora das periferias colonizadas. Funciona uma igreja de

muito santo, pouco padre,
muita promessa, pouca missa,

conforme a feliz caracterização do sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira. Funciona uma igreja devota, longe de padre, de bispo, de papa. Ao longo de pelo menos três séculos, nenhum papa se intromete em assuntos de igreja na América. Nenhum documento papal menciona o continente entre 1537 (Bula ‘Sublimis Deus’ do Papa Paulo III) e 1839 (Carta Apostólica ‘In Supremo Apostolatus’ do Papa Gregório XVI). A organização da igreja católica na América fica nas mãos de monarcas ibéricos, que praticamente se limitam a nomear os bispos (o Padroado) e não interferem em assuntos pastorais. Desse modo, devoções portuguesas e espanholas, fertilizadas por

espiritualidades da terra e dos imigrantes africanos, configuram um cristianismo específico, longe das análises e dos planos pastorais. Comete uma temeridade quem considera essas devoções desprovidas de valores cristãos. Se vivenciam modos de vida que cultivam – por vezes de modo surpreendente – valores evangélicos, como fraternidade, fidelidade, respeito, tolerância, preservação da natureza, senso de beleza, atitude saudável diante do sexo, além de extraordinária capacidade de comunicação.

É diante de painel histórico dessa amplitude que a figura do Padre Ibiapina ganha sua verdadeira dimensão. Ele é expoente da igreja devota numa periferia do sistema católico, os sertões nordestinos do Brasil. Não pratica uma pastoral sacramentalista e/ou penitencial. Isso se percebe quando comparamos Padre Ibiapina com outro missionário, que exerce forte impacto nos povos católicos do Nordeste numa época mais recente: o capuchinho italiano Frei Damião de Bozzano (1898-1997). As missões populares do Frei desembocam invariavelmente em confissões, comunhões e procissões penitenciais. Frei Damião é ‘tridentino’, ou seja, segue basicamente as orientações sacramentalistas e penitenciais do Concílio de Trento, celebrado no século XVI. Os Frades capuchinhos italianos percorrem incansavelmente os sertões e têm na figura de Frei Apolônio da Toddi um de seus mais marcantes expoentes. Enquanto se referem a planos pastorais concebidos no século XVI, o Padre Ibiapina segue uma tradição que remonta à origens do movimento de Jesus. Ele trabalha com temas originais: criação divina, graça operante, devoção ativa, luta pela realização do reino de Deus na terra. Enquanto Frei Damião trabalha com o tema do ‘pecado original’, o Padre Ibiapina segue o tema da ‘graça original’. Enquanto as missões de Frei Damião desembocam no sacramento, as do Padre Ibiapina desembocam no mutirão, ou seja, na colaboração de toda a comunidade.

Com o Padre Ibiapina, o dinamismo da igreja devota resulta em engajamentos no plano social, em projetos que visam melhorar a vida de populações dos sertões nordestinos. Animado por uma espiritualidade que se materializa em construção de igrejas e cemitérios, açudes e canais de adução de água, em fundações de ‘Casas de Caridade’, Ibiapina continua nos desafiando.

Ao andar pelos sertões, inicialmente para um serviço de ‘primeiros socorros’ (ele inicia suas incursões nos sertões com um trabalho no sentido de combater um surto de cólera no interior de Pernambuco) Ibiapina descobre o dinamismo da devoção, um tesouro escondido. Ele passa a enxergar o que muitos não conseguem ver, pois anda além das fronteiras da europeização da cultura brasileira, que atinge em primeiro lugar as cidades, fora da ‘romanização’ da igreja católica, igualmente ativada nas cidades. É andando pelos sertões que Ibiapina percebe que o Brasil está num processo acelerado de perda de memória. Isso é trágico. A escritora francesa Simone Weil escreve: ‘o enraizamento talvez seja a necessidade mais importante e mais negligenciada da alma humana’. Podemos acrescentar: ‘e de um povo’. Um povo que perde suas raízes se torna facilmente vítima daqueles que cobiçam as riquezas do país. Por onde penetra, o dinheiro destrói raízes, desativa estímulos. O Moloch do dinheiro engole a memória do povo.

É diante desse quadro que se compreende a importância desse livro, a recolher testemunhos de quatorze bispos. Ao descobrir o Padre Ibiapina, eles descobrem o Brasil. Superam o silenciamento, o esquecimento, o desenraizamento, que atualmente afetam o país. Ultrapassam a romanização e europeização da Igreja Católica no Brasil e reatam laços com o Brasil profundo, o Brasil dos devotos, das devotas. Prestam atenção ao que é realmente importante. Ao descobrir Ibiapina, os bispos descobrem um povo que peregrina a Santa Fé em Arara, que faz promessas com o Padre Ibiapina e venera em casa sua imagem.

Eles sabem, contudo, que o trabalho de ressurgimento está apenas começando, sabem que as novas gerações podem aprender muito em termos de sensibilidade social e disponibilidade, no sentido de colaborar com a libertação do povo nordestino das amarras da escravidão e do abandono. Nesse sentido, Ibiapina é capaz de despertar energias onde menos se espera. Quem não se admira pelo fato que, em tempos de Ibiapina, esposas de proprietários, de fazendeiros, habituadas a contemplar passivamente a miséria do povo em seu redor, se sensibilizam pelo apelo daquele padre que percorre as estradas e se prontificam a ajudá-lo a montar suas ‘Casas de Caridade’ e mesmo - em determinados casos - colaboram na administração e mesmo na direção dessas instituições, que não só pretendem ser de amparo aos pobres, mas positivamente de educação e treinamento de moças para a vida matrimonial? Pois, nas Casas de Caridade não só se acolhem crianças ‘enjeitadas’ (rejeitadas, órfãs, ‘oferecidas’), mas igualmente moças desejosas de conseguir um bom casamento, numa sociedade em que a educação feminina é muito deficiente. As ‘pensionistas’ aprendem a ler, escrever, contar, cozinhar, fiar, tecer algodão, costurar, bordar, fazer sapatos, plantar sementes em tempo certo, fazer chapéu de palha, tecer rede. Conhecimentos e habilidades que as condicionam a serem ‘prendadas’, ‘dotadas’, preparadas para um bom casamento e para a formação de uma boa família, onde se preza o trabalho e a honestidade. Se essas moças trabalham bem, elas até recebem, por parte da instituição, um ‘dote’ na hora do casamento. Só não aprendem a datilografar, a fazer escrituração mercantil, a falar inglês, pois o Padre é terminantemente contra a mercantilização da vida. Nem aprendem a enfeitar bolos açucarados, como se faz nas Casas Grandes.

O tempo dirá se as sementes, aqui espalhadas pelos bispos, vão germinar, crescer e evoluir. Uma coisa me parece certo: trata-se de um processo que pede tempo. Isso eu pude verificar pessoalmente. Nos idos de 1960, quando ensinava História da Igreja no Seminário de João Pessoa, constatei que meus alunos não conheciam nem os nomes de figuras como Antônio Conselheiro ou Ibiapina. De Padre Cícero, eles tinham uma ideia vaga e fundamentalmente negativa. Lembro-me que, certa vez, lhes dei uma tarefa de férias: ‘procurem informações acerca do Padre Cícero’. Eles voltaram me dizendo que falaram com seus vigários e sempre receberam a mesma resposta: ‘O Padre Cícero é persona non grata’. Como, ao mesmo tempo, eu era vigário de um bairro periférico de João Pessoa, estranhei o fato que o povo – esse sim – guardava a memória de Padre Cícero com carinho. Encontrava, colado na parte interior das portas (de duas bandas), um santinho com os dizeres ‘Padre Cícero, abençoe esta casa’. Finalmente, em 1964, resolvi viajar a Juazeiro do Norte e foi ali que recebi, das mãos da Professora Amália Xavier, um manuscrito intitulado ‘Crônica das Casas de Caridade do Padre Ibiapina’. Assim me encontrei, pela primeira vez, com o Padre Ibiapina. Tentei, durante vinte anos, encontrar uma editora que se dispusesse a publicar o manuscrito, até que a Editora Loyola dos jesuítas, de São Paulo, aceitasse publicar a ‘Crônica das Casas de Caridade’, em 1981. Houve uma segunda edição pelo Museu do Ceará (Fortaleza), em 2006. Felizmente, dois anos depois o Padre Ernando Teixeira nos brindou com uma edição que se pode considerar definitiva, com notas e comentários, sob o título ‘A missão ibiapina’ (Gráfica Editora Berthier, Passo Fundo, 2008).

Um tema importante, relacionado com a atuação de Ibiapina, diz respeito a sua relação com o sistema escravocrata, então em vigor. Gilberto Freyre, o famoso autor de ‘Casa Grande e Senzala’, compara, num artigo publicado em 1942, o modo de se viver nas Casas de Caridade e nas Casas Grandes do tempo (veja pp. 116-117 do livro que estou aqui comentando). Ele constata: as Casas de Caridade não funcionam por meio de trabalho escravo.

Efetivamente, se é verdade que uma Casa de Caridade lembra, em termos de construção, a Casa Grande da época e, além disso, é frequentemente administrada por mulheres da artistocracia, provenientes da Casa Grande, nela não circulam escravos e escravas.

É verdade que as pensionistas são secundadas por auxiliares de serviços gerais (mulheres do trabalho). Mas estas, nas horas vagas, recebem aulas de doutrina e leitura. Após uma permanência de cinco anos nas Casas de Caridade, elas podem optar entre a vida religiosa (irmãs de caridade) e o casamento, recebendo aí o mesmo tratamento atribuído às órfãs, incluindo o dote. É verdade que, na Casa de Caridade vigora a disciplina, mas ela não é em nada comparável ao que sofrem as escravas da época. Os castigos são iguais para todas, pensionistas e auxiliares, circunscritos a penitências (jejum e silêncio), restrições de recreio, eventual retirada de distintivos nos trajes, como escreve Celso Mariz, o mais antigo biógrafo de Ibiapina (‘Padre Ibiapina, um Apóstolo do Nordeste’, Ed. A União, João Pessoa, 1942, p. 253).

Há também as ‘beatas’, que são mulheres livres. Elas constituem um capítulo à parte, que não comento aqui. Se você estiver interessado, veja, de Ernando Teixeira, o artigo ‘Ibiapina e seus beatos’, na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) de maio 2009. Veja também, de Hugo Fragoso, o artigo ‘As beatas do Padre Ibiapina, uma forma de vida religiosa para os sertões no Nordeste’, em: Desrochers, G. & Hoornaert, E., Ibiapina e a Igreja dos Pobres (São Paulo, Paulinas, 1984).

O ensino, numa Casa de Caridade, visa facilitar o casamento, na época a chave do problema das mulheres, visa a profissionalização e preparação a trabalhos remunerados. Como já escrevi acima, as meninas aprendem os afazeres de qualificadas ‘donas de casa’. Pois o Padre é intransigente no seguinte ponto: na Casa de Caridade reina a lei do trabalho, não do lucro nem da comodidade de se apoiar em trabalho alheio. Ele não quer saber em comprar terrenos ou casas, só trabalha em cima de donativos, de doações. Existe um texto em que ele deixa claro que entende perfeitamente que a compra leva irremediavelmente ao predomínio de dinheiro sobre o princípio do compartilhamento. Pois não podemos esquecer que, na sociedade brasileira do século XIX, como escreve um autor, se a relação entre o senhor e escravo se baseia na violência, a relação entre senhor e homens livres é mediatizada pelo favor. O favor é o grande instrumento da hierarquização da sociedade brasileira no século XIX. Ibiapina intui esse dado com rara lucidez: favor leva a subserviência, à manutenção de relações sociais injustas. Ou se age por amor, ou não se faz nada. Ou se organiza por meio de donativos, ou não se organiza. Reina a gratuidade. É nesse sentido que se entende que o Padre Ibiapina manda o Beato Inácio ao Rio de Janeiro para colher esmolas, um dado que é realçado no primeiro capítulo do livro aqui em apreço (pp. 19-23), que traz um texto muito interessante do então bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda (1830-1890). Essas esmolas, com insiste Mariz, não são ‘favores’, são expressões de caridade cristã: a instituição não recebia de presente, não comprava e não possuía escravos (Mariz, 1942, p.257). O Padre Ibiapina, no dizer do mesmo autor organiza uma obra de assistência e educação, a fim de socorrer os trabalhadores e preparar para fins domésticos a mulher pobre dos sertões (ibidem, p. 4). Isso sem qualquer ajuda por parte do poder público, voltado para os interesses das capitais e dos centros urbanos e desinteressado em oferecer ensino público dirigido ao sexo feminino. O Padre conta com as energias da população camponesa e, com o tempo, suas obras se revelam superiores às do governo. Ele conta com o mutirão, a livre e espontânea colaboração das pessoas, algo que o governo não consegue. Além disso, usa materiais locais, não gasta inutilmente, tira proveito do que a realidade local lhe oferece.

Termino trazendo mais uma recordação pessoal. Anos atrás, vivendo em Fortaleza, surpreendi o Cardeal Aloísio Lorscheider, em sua casa, lendo a ‘Crônica das Casas de Caridade’. Ele me disse: Aqui está a realidade do Nordeste. Uma realidade que continua, mais que nunca, nos desafiando.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.