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sexta-feira, 29 de março de 2019

A BLASFÊMIA DE JAIR BOLSONARO: QUE “DEUS” ACIMA DE TODOS?



Por Leonardo Boff

Não queria ter escrito este artigo. Mas a aguda crise política atual e o abuso que se faz do nome de Deus provocam a função pública da teologia. Como qualquer outro saber, ela possui também a sua responsabilidade social. Há momentos em que o teólogo deve descer de sua cátedra e dizer uma palavra no campo do político. Isso implica denunciar abusos e anunciar os bons usos, por mais que esta atitude possa ser incompreendida por alguns grupos ou tida como partidista, o que não é.
Sinto-me, humildemente, na tradição daqueles bispos proféticos como Dom Helder Câmara, dos Cardeais Dom Paulo Evaristo Arns (lembremos o livro que ajudou a derrocar a ditadura “Brasil Nunca Mais”) e de Dom Aloysio Lorscheider, do bispo Dom Waldir Calheiros e de outros que, nos tempos sombrios da ditadura militar de 1964, tiveram a coragem de erguer a sua voz em defesa dos direitos humanos, contra os desaparecimentos e as torturas feitas pelos agentes do Estado.
Vivemos atualmente num país dilacerado por ódios viscerais, por acusações de uns contra os outros, com palavras de baixíssimo calão e por notícias falsas (fake news), produzidas até pela autoridade máxima do país, o atual presidente. Com isso ele mostra a falta de compostura em seu alto cargo e das consequências desastrosas de suas intervenções, além dos despropósitos que profere aqui e no exterior.
Seu lema de campanha era e continua sendo “Deus acima de todos e o Brasil acima de tudo”. Precisamos denunciar a utilização que faz do nome de Deus. O segundo mandamento divino é claro de “não usar o santo nome de Deus em vão”. Só que aqui o uso do nome de Deus não é apenas um abuso mas representa uma verdadeira blasfêmia. Por que?
Porque não há como combinar Deus com ódio, com elogio à tortura e a torturadores e com as ameaças a seus opositores como fazem Bolsonaro e seus filhos. Nos textos sagrados judaico-cristãos, Deus revela sua natureza como “amor” e como “misericórdia”. O “bolsonarismo” conduz uma política como confrontação com os opositores, sem diálogo com o Congresso, política entendida como um conflito, de viés fascista. Isso não tem nada a ver com o Deus-amor e o Deus-misericórdia. Consequentemente propaga e legitima, a partir de cima, uma verdadeira cultura da violência, permitindo que cada cidadão possa possuir até quatro armas. A arma não é um brinquedo para o jardim a infância mas um instrumento para matar ou se defender mutilando ou matando o outro.
Ele se diz religioso, mas é de uma religiosidade rancorosa; ele comparece despojado de sacralidade e com um perturbador vazio espiritual, sem qualquer sentido de compromisso com a vida da natureza e com a vida humana, especialmente daqueles que menos vida têm. Com propriedade afirma a miúdo o Papa Francisco: prefere um ateu de boa vontade e ético que um cristão hipócrita que não ama seu próximo, nem tem empatia por ele, nem cultiva valores humanos.
Cito um texto de um dos maiores teólogos do século passado, no fim da vida, feito Cardeal, o jesuíta francês Henri De Lubac:
“Se eu falto ao amor ou se falto à justiça, afasto-me infalivelmente de Vós, meu Deus, e meu culto não é mais que idolatria. Para crer em Vós devo crer no amor e na justiça. Vale mil vezes mais crer nessas coisas que pronunciar o Vosso nome. Fora delas é impossível que eu Vos encontre. Aqueles que tomam por guia – o amor e a justiça – estão sobre o caminho que os conduz a Vós”(Sur les chemins de Dieu, Aubier 1956, p.125)
Bolsonaro, seu clã e seguidores (nem todos) não se pautam pelo amor nem prezam a justiça. Por isso estão longe do “milieu divin”(T.de Chardin) e seu caminho não conduz a Deus. Por mais que pastores neo-pentecostais veem nele um enviado de Deus, não muda em nada a atitude do presidente, ao contrário agrava ainda mais a ofensa ao santo nome de Deus especialmente ao postar na internet um youtub pornográfico contra o carnaval.
Que Deus é esse que o leva a tirar direitos dos pobres, a privilegiar as classes abastadas, a humilhar os idosos, a rebaixar as mulheres e a menosprezar os camponeses, sem perspectiva de uma aposentadoria ainda em vida?
O projeto da Previdência cria profundas desigualdades sociais, ainda com a desfaçatez de dizer que está criando igualdade. Desigualdade é um conceito analítico neutro. Eticamente significa injustiça social. Teologicamente, pecado social que nega o desígnio de Deus de todos numa grande comensalidade fraternal.
O economista francês Thomas Pikitty, famoso por seu livro O Capital no século XXI (Intrínseca 2014), escreveu também um inteiro livro sobre A economia da desigualdade (Intriseca 2015). O simples fato, segundo ele, de que cerca de 1% de multibilhardários controlarem grande parte das rendas dos povos e no Brasil, segundo o especialista no ramo, Márcio Pochmann, os seis maiores bilionários terem a mesma riqueza que 100 milhões de brasileiros mais pobres (JB 25/9/2017), dão mostras de nossa injustiça social.
Nossa esperança é de que o Brasil é maior que a irracionalidade reinante e que sairemos melhores da atual crise.
Leonardo Boff é teólogo e comentou A oração de São Francisco pela Paz, Vozes 2009.


terça-feira, 26 de março de 2019

QUEREMOS NOSSOS MÁRTIRES VIVOS



Por Marcelo Barros

Mártir é um termo grego e significa testemunha. Nas religiões, é o título das pessoas que arriscam a vida e sofrem perseguições por causa da fé. No entanto, desde antigamente, se consideram mártires todas as pessoas que sofrem perseguições pela justiça e pela realização da paz eco-social que a tradição judaico-cristã considera “projeto divino para o mundo”. Conforme o evangelho, Jesus afirmou: “Bem-aventuradas as pessoas que sofrem perseguições por causa da justiça, (se creem em Deus ou não, se pertencem a uma Igreja ou não), porque delas é o reino dos céus” (Mt 5, 10).

Há poucos dias, completou-se um ano do martírio de três pessoas ligadas aos movimentos sociais. Na noite do 14 de março de 2018, no centro do Rio de Janeiro, foram metralhados a vereadora Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes. Três dias antes, no Pará, tinham assassinado o militante social Pedro Sérgio Almeida, representante da Associação dos Caboclos e Quilombolas da Amazônia. Ele cobrava da prefeitura de Macarema a falta de licença ambiental da empresa Hydro que joga detritos nos rios do Pará. Um ano depois, outros irmãos e irmãs deram a vida pela mesma causa, além das centenas de pessoas que morreram, vítimas da Vale do Rio Doce em Brumadinho e de tantas outras que estão em situação de riscos.

No Brasil atual, defender o projeto da Justiça e lutar pela Vida significa correr riscos e enfrentar a morte. No Brasil e em toda América Latina, há mais de 50 anos, milhares de pessoas, homens e mulheres, sofreram torturas e muitas foram assassinadas por estarem inseridas na caminhada de libertação de nossos povos. A cada ano, na vigília de 24 de março, em toda América Latina, recordamos o martírio do bispo Oscar Romero, que deu a vida para defender os pobres de El Salvador e foi assassinado por milícias da ditadura militar como alguém de esquerda. Em nossos dias, o papa Francisco proclamou Oscar Romero como santo oficial da Igreja. O papa também iniciou o processo de canonização do índio Sepé Tiaraju, cacique que deu a vida na luta pela liberdade do povo guarani. São sinais de que a Igreja volta a valorizar como mártires, não só os/as que foram mortos por inimigos da fé, mas todas as que deram a vida para realizar o projeto divino de um mundo mais justo e de paz.

Desde os tempos antigos, também merecem o nome de mártires as pessoas que sofreram perseguições e sobreviveram. Em 1986, no 6º Encontro nacional das comunidades eclesiais de base, em Trindade, GO, as comunidades afirmaram: “Nós queremos nossos mártires vivos e não mortos”. Assim, concluíram: nesses tempos de martírio, todas as pessoas que trabalham pela justiça e pela libertação do povo têm de tomar cuidado e se proteger, sem com isso desistir ou diminuir a intensidade da sua entrega. 

Quem é cristão não pode deixar de ligar essas mortes violentas que acontecem cada dia ao martírio de Jesus. As Igrejas afirmam que, em cada eucaristia, atualizam a doação de Jesus em sua cruz. No entanto, quem está realmente vivendo a paixão e seguindo os passos de Jesus no seu testemunho de dar a vida pelos outros, parece não ser tanto religiosos/as ou pessoas que dizem fazer isso por causa da fé. Mesmo sem vinculação com a fé religiosa, eles e elas dão a vida pelas causas da justiça e da libertação. Quando as comunidades de base afirmam: “Nós queremos nossos mártires vivos”, estão gritando que precisamos de uma Igreja toda ela martirial, ou seja, testemunha da justiça e da libertação no mundo.

As Igrejas celebram a paixão de Jesus e muitos irmãos e irmãs, padres, pastores e religiosos/as vivem uma vida de muita doação e entrega às causas do povo mais empobrecido. Essa doação não é como um apêndice da sua fé e devoção a Deus. Ao contrário, é o núcleo fundamental de sua espiritualidade no seguimento de Jesus. Infelizmente, até hoje, muitos pastores e fieis ainda parecem não ligar o que dizem de Deus e a luta pela justiça que Jesus proclamou como bem-aventurança. Talvez por isso, muitas pessoas que vivem mais profundamente o testemunho da solidariedade e da entrega de suas vidas no compromisso pela justiça e pela libertação de todos prefiram nem falar de Deus. Vivem nas periferias urbanas, na luta das mulheres, na causa dos povos indígenas e na defesa das águas. E o mais estranho é que irmãos e irmãs ligados à Igreja, que, por causa da sua fé, consagram a sua vida às causas da justiça e da libertação de todos, nem sempre contam com o apoio e compreensão dos próprios pastores da Igreja.

Provavelmente, esse distanciamento da vida real das lutas do povo, por parte de muitos eclesiásticos, vem do fato de que a teologia oficial das Igrejas ainda compreende a cruz e a morte de Jesus como sacrifício religioso,  oferecido a Deus para salvar as pessoas dos seus pecados. É uma fé que separa a morte de Jesus de tantas outras mortes violentas, ocorridas, a cada dia, pela justiça. O martírio de Marielle e de tantos mártires da justiça, nos desafia a compreender a cruz de Jesus como martírio e não como sacrifício. Aí sim, a fé na ressurreição de Jesus nos faz ver além da morte. A caminhada da Igreja de base e sua inserção nas lutas de libertação nos ensinam que o martírio não é apenas uma forma de morrer, mas, principalmente, uma forma de viver. Somos testemunhas de que esse mundo tem remédio e apesar de todas as forças do mal, seguiremos nessa caminhada.  


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

sexta-feira, 22 de março de 2019

CUIDADO DA ÁGUA NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO: MERCANTILIZAÇÃO OU REPUBLICANIZAÇÃO?



Por Leonardo Boff

Nesta data de 22 de março, Dia Mundial da Água faz-se urgente refletir sobre o fato inegável de que nenhuma questão hoje é mais importante do que a da água. Dela depende a sobrevivência de toda a cadeia da vida e, consequentemente, de nosso próprio futuro. Ela pode ser motivo de guerra como de solidariedade social e cooperação entre os povos. Mais ainda, como querem fortes grupos humanistas, ao redor da água poder-se-á e seguramente dever-se-á criar o novo pacto social mundial que crie um consenso mínimo entre os povos e governos em vista de um destino comum, nosso e do sistema-vida.

Independentemente das discussões que cercam o tema da água, uma afirmação segura e indiscutível podemos fazer: a água é um bem natural, vital, insubstituível e comum. Nenhum ser vivo, humano ou não humano, pode viver sem a água. Bem afirma o Papa Francisco na sua encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum”(2015): “A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância para a vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos”(n.28)

Da forma com que tratamos a água dependerá a forma que ganhará a globalização. Daí ser importante discutirmos rapidamente a relação entre globalização e cuidado da água.
E aqui temos que fazer uma opção prévia. Conforme for a decisão, outras serão as consequências.

Ou bem abordaremos a relação globalização-água a partir da globalização como ela está se dando hoje, com sua lógica interna, e então teremos uma concepção de água e um cenário de nosso futuro ou bem trataremos a relação a partir da água o que nos levará a desenvolver outra concepção de globalização, com outra lógica, que resultará um outro cenário para o futuro da vida e do ser humano na Terra.

Mas antes, consideremos rapidamente os dados básicos sobre a água.

Existe cerca de um bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água na Terra. Se tomarmos toda essa água que está nos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas polares e distribuíssemos equitativamente sobre a superfície terrestre, a Terra ficaria mergulhada na água a três km de profundidade.

97% é água salgada e 3% é água doce, o que equivale a 8,5 milhões de km cúbicos. Mas somente 0,7% é diretamente acessível ao uso humano. Destes 0,7% 20% se destinam à indústria, 10% à a agricultura. Somente o restante, aos seres humanos e aos demais seres vivos.

Mesmo assim a água há superabundante no planeta. A renovação das águas é da ordem de 43 mil km cúbicos por ano, enquanto o consumo total é estimado em 6 mil km cúbicos por ano.

Há muita água mas desigualmente distribuída: 60%  se encontra em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente enquanto para 1,4 bilhões é insuficiente (em 2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das doenças. Presume-se que em 2032 cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas pela crise de água.

Não há problema de escassez de água mas de má gestão para atender as demandas humanas e dos demais seres vivos.

O Brasil é a potência natural das águas, com 13% de toda água doce do Planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Mas é desigualmente distribuída: 70% na região amazônica, 15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no Sudeste e 3% no Nordeste. Apesar da abundância, não sabemos usar a água, pois 46% dela é desperdiçada, o que daria para abastecer toda a França,  a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É urgente, portanto, um novo padrão cultural

                  A água vista a partir da globalização

A globalização é um fenômeno complexo. Pode ser vista como uma nova fase da humanidade e da Terra como Gaia. Trata-se do fenômeno antropológico-cósmico do retorno dos povos depois da grande dispersão ocorrida há milhões de anos a partir da África. Agora os povos e as culturas se colocam em movimento e se encontram num único lugar, o planeta Terra. Junto a isso cria-se uma nova consciência, planetária, com o sentido de que temos, Terra e Humanidade uma mesma origem e um mesmo destino. Na verdade, somos a própria Terra que sente, pensa, ama, venera e cuida. Já nos anos 30 Pierre Teilhard de Chardin falava da irrupção da noosfera, como nova etapa ascendente da espécie humana.

A globalização é um fenômeno histórico-social-político: as info-vias propiciaram todo tipo de trocas entre os seres humanos, valores, visões de mundo, formas politicas, tradições espirituais e religiosas transitam de um canto a outro. Ela assume também uma dimensão ecológica: os fenômenos naturais afetam a todos os seres humanos. Sentimo-nos todos interdependentes.

A globalização é, em primeiro plano, um fenômeno econômico e financeiro. Representa a expansão sobre todo o planeta do sistema do capital com seu sistema financeiro, especialmente especulativo, seus mercados de moedas e de commodities. Representa a unificação do espaço das trocas e a gestação dos sistema-mundo.

Este sentido de globalização é dominante. Ele se rege pela lógica da economia de mercado que é a competição e a vontade de maximizar os ganhos. Isso se faz mediante grandes conglomerados supra e multinacionais com poder econômico às vezes superior a muitos países. A tendência é transformar tudo em mercadoria e oportunidade de lucro e levar à banca dos negócios.

Em razão desta lógica se procura patentear os conhecimentos científicos, bens da natureza, até genes como o que produz o câncer de mama. Tudo é privatizável e feito mercadoria, sem limites. Como já em 1944 denunciava o economista e pensador húngaro-norte-americano Karl Polaniy em seu famoso livro “A grande Transformação”: de uma economia de mercado nos transformamos numa sociedade se mercado. Tudo, tudo mesmo, até as coisas mais sagradas vão ao mercado e ganham o seu preço.

A água, por causa de sua escassez é vista como recurso hídrico e bem econômico. Ela é uma mercadoria e fonte de lucro. Contra esse processo de mercantilização da água se insurge o Papa Francisco em sua já citada encíclica “Sobre o cuidado da Casa Comum”: “O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”(n.30)

Há uma corrida mundial na privatização da água. Ai surgem grandes empresas multinacionais como as francesas Vivendi e Suez-Lyonnaise , a alemã RWE, a inglesa Thames Water e a americana Bechtel. Criou-se um mercado das águas que envolve cerca de 100 bilhões de dólares. Ai estão fortemente presentes na comercialização de água mineral a Nestlé e a Coca-Cola que estão buscando comprar fontes de água por toda a parte no mundo.

Os organismos de financiamento como o FMI e o Banco mundial condicionaram a partir do ano de 2000 a 40 países a renegociação da dívida e os novos empréstimos sob a condição de privatizarem a água e seus serviços. Assim foi com Mozambique em 1999 para receber 117 milhões de dólares. Em 2000 ocorreu com Cochabamba na Bolívia. A empresa americana Bechtel comprou as águas e elevou os preços a 35%. A reação organizada da população fez com que saissem do pais.
Na Índia a água foi privatizada em muitas grandes cidades. A carência de água potável da população é tão grande que os carros-pipas são assaltados. Só conseguem chegar ao destino sob proteção policial.

A água está se tornando “fator de instabilidade no Planeta”. Poderão ocorrer guerras para garantir o acesso à água potável. O Papa Francisco advertiu em seu texto “Sobre o cudado da Casa Comum”: “È previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século”(n.31)

A visão mercantil da água distorce as relações água-globalização

-pela competitividade desenfreada entre as grandes empresas que impede acordos e assim prejudicam as populações

-pela primazia da rentabilidade

-pelo descaso ao princípio da solidariedade social e da comunidade de interesse e do respeito das bacias hidrográficas que transcendem os limites das nações.

-pelo desprezo do uso racional e equitativo da água como ocorre entre a Turquia de um lado e a Siria e o Iraque do outro, ou de Israel, da Jordânia e da Palestina, ou entre os USA e o Mexico ao redor dos rios Rio Grande e Colorado.

A exacerbação da propriedade privada faz com que se trata a água sem o sentido de partilha e de consideração das demandas dos outros.

Face a estes excessos a comunidade internacional, a ONU estabeleceu nas reuniões de Mar del Plata (1997), Dublin (1992), Paris (1998), Rio de Janeiro (1992) consagrou “o direito de todos a terem acesso à água potável em quantidade suficiente e com qualidade para as necessidades essenciais”.

                   A globalização vista a partir da água

     Bem outra é a perspectiva quando damos centralidade à água e a partir dela vemos a globalização. Aqui O grande debate hoje se trava nestes termos:

A água é fonte de vida ou fonte de lucro? A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível ou um bem econômico a ser tratado como recurso hídrico e como mercadoria?

Ambas as dimensões não se excluem mas devem ser retamente relacionadas. Fundamentalmente a água é direito à vida, como insiste o Papa Francisco e o grande especialista em águas Ricardo Petrella (O Manifesto da Agua, Vozes, Petrópolis 2002).

Nesse sentido a água de beber, para uso na alimentação e para higiene pessoal deve ser gratuita (cf. Paulo Affonso Leme Machado, Recursos Hidricos. Direito Brasileiro e Internacional, Malheiros Editores, São Paulo 2002, 14-17). Por isso, com razão, diz em seu artigo primeiro a lei n.9.433 (8/1/97) sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos:”a água é um bem de domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”.

Como porém a água é escassa e demanda uma complexa estrutura de captação, conservação, tratamento e distribuição implica uma inegável dimensão econômica. Esta, entretanto, não deve prevalecer sobre a outra, ao contrário, deve torná-la acessível a todos e os ganhos devem respeitar a natureza comum, vital e insubstituível da água. Mesmo implicando altos custos econômicos. Estes devem ser cobertos pelo Poder Publico em colaboração com a sociedade organizada.

A água não é um bem econômico como qualquer outro. Ela está tão ligada à vida que deve ser entendida como vida. E vida jamais deve ser transformada em mercadoria. A água está ligada a outras dimensões culturais, simbólicas e espirituais do ser humano que a tornam preciosa e carregado de valores que, em si não têm preço.

Para entendermos a riqueza da água que transcende sua dimensão econômica precisamos romper com a ditadura que o pensar racional-analítico e utilitarista impõe a toda a sociedade. Este vê a água como recurso hídrico. O ser humano tem outros exercícios de sua razão. Há a razão sensível, a razão cordial e emocional e a razão espiritual. São razões ligadas ao sentido profundo da vida. Oferecem não as razões de lucrar mas as razões de viver e conferir excelência à vida. A água é vista como vida, com bem comum natural, como fonte e nicho de onde há bilhões de anos surgiu a vida.

Como reação à dominação da globalização da água se busca a republicanização da água. A água é um bem comum publico mundial. É patrimônio da biosfera e vital para todas as formas de vida.

Importa proclamar o reconhecimento formal do direito à água como direito humano universal em todos os organismos do local ao internacional. Cabe ao Poder Publico junto com a sociedade organizada criar um financiamento publico para cobrir os custos necessários para garantir o acesso à água potável a todos.

Em função destas exigências se criou o FAMA – o Fórum Mundial Alternativo da Água em março de 2003 em Florença na Itália. Junto a isso se propõe criar a Autoridade Mundial da Água , uma instância de governo publico, cooperativo e solidário da água a nível das grandes bacias hídricas internacionais e de uma distribuição mais equitativa da água segundo as demandas regionais.

Função importante é pressionar os Governos e as empresas para que a água não seja levada aos mercados nem seja considerada mercadoria.

Deve-se garantir a todos gratuitamente no mínimo cerca de 50 litros de água potável e sã. As tarifas para os serviços devem contemplar os diversos níveis de uso, se doméstico, se industrial, se agrícola, se recreativo. Para os usos industriais da água e na agricultura, evidentemente, água é sujeita a preço.

Incentivar a cooperação público-público para impedir que tantos morram em consequência da falta de água ou em consequência de águas maltratadas. Diariamente morrem 6 mil crianças por sede. Os noticiários nada referem. Mas isso equivale a 10 aviões boeing que caem ou mergulham nos oceanos com a morte de todos os passageiros. Evitar-se-ia que cerca de 18 milhões de meninos/meninas deixem de ir a escola porque são obrigadas a buscar água a 5-10 km de distância.

Paralelamente a isso corre a articulação mundial para um Contrato Mundial da Água. Seria um contrato social mundial ao redor daquilo que efetivamente nos une que é a vida das pessoas e dos demais seres vivos, indissociáveis da água.

Uma fome zero mundial, prevista pelas Metas do Milênio deve inclui a sede zero, pois não há alimento que possa existir e ser consumido sem a água.

A partir da água outra imagem da globalização surge, humana, solidária, cooperativa e orientada a garantir a todos os mínimos meios de vida e de reprodução da vida.

Ela é vida, geradora de vida e um dos símbolos mais poderosos da vida eterna.

Leonardo Boff foi galardoado com um dr.h.c. em água, pela Universidade de Rosário, Argentina, através da criada Cátedra da Água, em 2014  membro da Iniciativa Mundial da Carta da Terra


quinta-feira, 21 de março de 2019

A VIDA TEM SENTIDO?





                                                  por Frei Betto

       Hélio Pellegrino dizia que eu daria um bom psicanalista. Eu retrucava que a diferença entre nós é que ele marcava hora e eu não; ele cobrava e eu não...

      Nós frades, padres e pastores, com frequência somos procurados por pessoas angustiadas em busca de ouvidos atentos e palavras de consolo. Supõem que, pela função que nos reveste, somos todos éticos e capacitados a guardar confidências devido ao rigor do segredo de confissão.

      O perigo é quando o religioso se julga capaz de substituir o terapeuta ou se convence de que é, de fato, um guru merecedor de discípulos que o incensam de admiração. Por vezes essa dependência descamba para abusos sexuais. A prostituta entrega o corpo, mas não a alma. E quem entrega a alma torna o corpo vulnerável.

      Viktor Frankl (1905-1997), psiquiatra austríaco fundador da logoterapia, tinha por hábito indagar após ouvir o desabafo de seus pacientes: “Por que você não se mata?” Sim, se a vida é tão sofrida e os problemas parecem insolúveis, por que insistir em continuar vivendo?

      Havia sempre um “gancho”, uma razão que impedia a pessoa de dar fim à existência: “Não me mato por causa de minha filha”; “Porque tenho fé”; “Porque quero acabar de pagar as prestações do imóvel de minha família” etc.

      O que diferia Frankl de Freud é que este considerava a frustração sexual causa de muitas angústias, enquanto o primeiro apontava como causa a vontade intencional, ou seja, a falta de sentido para a existência.

      Quantos jovens demonstram, hoje em dia, angústia diante da vida? Fazem terapia, vivem sob medicação, movem-se de uma atividade a outra sem que nenhuma delas os satisfaça. Alguns se refugiam no álcool ou nas drogas, como se a vida fosse um peso insuportável que exige muleta como ponto de apoio. Outros, como os assassinos de Suzano (SP), transformam o ressentimento em violência letal, sacrificando vidas alheias e as próprias.

      Não lembro de ter visto tanto desalento juvenil na década de 1960, aos meus 20 anos. Talvez porque a geração dos “anos dourados” fosse viciada em... utopia! Não queríamos mudar apenas o corte de cabelo e os ditames da moda. Queríamos mudar o Brasil e o mundo.

      Então, o adjetivo novo definia o otimismo reinante – a bossa nova, o cinema novo, os Novos Baianos etc. Consumir ideias e cultura era mais importante do que adquirir um carro novo.

      O neoliberalismo, em doses cavalares de hedonismo e consumismo, consegue agora narcotizar boa parcela da juventude entre 15 e 30 anos. Parcela que ancora seus sonhos em torno de quatro supostos valores: riqueza, beleza, fama e poder. Nem todos querem tudo. As preferências recaem no sonho de ficar rico e preservar uma aparência física sedutora de quem descobriu o elixir da eterna juventude.

      Há, contudo, enorme contingente de jovens que, apesar das dificuldades que enfrentam (falta de renda, emprego, estudos qualificados) sentem-se felizes por abraçarem um projeto de vida. Encontraram um sentido pelo qual a vida vale a pena.

      Há aqueles cujo sentido é meramente de caráter pessoal, como se tornar um bom profissional ou constituir uma família. Muitos, porém, têm um sentido altruísta, fazem de suas vidas um serviço para que outros tenham vida. É dessa seara que brotaram pessoas como Betinho, Chico Mendes, Marielle Franco, Gandhi, Mandela e Luther King.

      Entre os jovens que se engajam em projetos sociais há aqueles que, dotados de ideologia elitista, se empenham em aprimorar os mecanismos institucionais que visam a reprimir e combater os efeitos nocivos da desigualdade social (menores infratores, criminalidade etc), sem jamais se perguntarem pelas causas de tais males.

      E há aqueles que, sensibilizados pelos efeitos, se mobilizam para atacar as causas. Estes são tidos como inimigos pelo neoliberalismo. Daí a Escola Sem Partido, a militarização da educação, os ataques a todos aqueles que ousam denunciar que o rei está nu. 

      O fato é que só há perseverança onde há esperança. E mais temem a morte aqueles que menos souberam dar valor à vida.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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quarta-feira, 20 de março de 2019

EM MEMÓRIA DE FREI FERNANDO DE BRITO




Por Eduardo Hoornaert

Na segunda semana de março 2019 faleceu o Frei Fernando de Brito, da Ordem dos Dominicanos. Ele passou pelos horrores da repressão militar que se abateu sobre o Brasil entre 1964 e 1982, ficou longamente preso e teve a feliz ideia de anotar suas impressões e experiências em tiras de papel que formaram um Diário que escapou ao controle dos carcereiros e que foi publicado em 2009 pelos cuidados de seu confrade Betto, conhecido autor de numerosos livros. Dou aqui a referência bibliográfica: Diário de Fernando, Nos cárceres da ditadura militar brasileira, Rocco, Rio de Janeiro, 2009. 287 páginas (ISBN 978-85-325-2427-0). Escrevi uma resenha que foi publicada na Revista Eclesiástica Brasileira, uns anos atrás, e da qual retomo aqui o conteúdo, em memória de Frei Fernando.

Trinta anos atrás, ao prefaciar o livro ‘Cartas da Prisão’ de Frei Betto (Civilização Brasileira, Rio, 1977), Alceu Amoroso Lima, ‘do fundo de seus 83 anos’, comparou os dominicanos presos nos cárceres do sistema militar aos hebreus na fornalha ardente que ‘cantavam no meio das chamas’, segundo o livro do profeta Daniel. Imagem forte que evocava o entusiasmo de Alceu por verificar que algo raro estava acontecendo com esses jovens de pouco mais de vinte anos de idade (Tito, Fernando, Ivo e Betto, e talvez outros cujos nomes não ficaram gravados na memória coletiva), um sonho que ele mesmo sempre procurou realizar em grupo sem consegui-lo: conjugar religião e compromisso social. ‘Coisa rara na história do catolicismo brasileiro’, escreveu Alceu, e ‘de importância capital para o futuro tanto de nossa igreja como da nossa civilização’ (p. 10). E, na página seguinte: ‘a passagem, por quatro anos, desse grupo por sucessivos cárceres, um dia será História em ponto grande’ (p. 11). Mas adiante ele retoma o mesmo pensamento, mas com um toque de descrença: ‘É possível que as lições dessa mina de sabedoria (a experiência do cárcere) sejam bem aproveitadas pelas novas gerações’ (p. 15), pois elas testemunham uma ‘vida totalmente vivida’. Mas o contrário também pode acontecer: a experiência pode cair no esquecimento, como acontece tantas vezes na história da humanidade.

Pertence a nós guardar viva essa memória. Num livro já antigo, o escritor francês Maurice Halbwachs escreve que a memória é uma atividade criadora, ou seja, que a preservação da memória depende das pessoas que resolvem cultivá-la. Sem cultivo, a memória morre[1]. Até hoje, frei Betto tem sido o principal ativador dessa memória, por meio de livros, artigos, filmes e documentários. Ele tem viva consciência da importância do que aconteceu entre 1969 e 1973, não só para a memória dos frades dominicanos nem exclusivamente para a memória do catolicismo no Brasil, mas para a sociedade como um todo. Mesmo antes de ser preso, refletiu sobre o tema da perseguição. Neste momento tenho à minha frente na mesa uma cópia de um trabalho semestral, elaborado por ele para um curso de história do cristianismo administrada por mim na faculdade de teologia Cristo Rei, em São Leopoldo, onde ele estudou um semestre. O plano era que ele viajasse depois à França, escapando da repressão aqui no Brasil, o que não se concretizou. O trabalho, datado em 4 de novembro de 1969 (a última página ainda estava na máquina de escrever quando Betto foi surpreendido pelos acontecimentos que conhecemos) é intitulado ‘Igreja e Perseguição’ e enfoca as origens do cristianismo do ponto de vista da perseguição, desde Jesus até a época de Diocleciano. Mais tarde, o tema foi retomado por Ivo Lesbaupin e editado pela Vozes em 1975 sob o título ‘As bem-aventuranças da perseguição’. Há muitos outros documentos relacionados com esses episódios e que hão de ficar na memória, e é dentro dessa tradição memorial que nos chega agora o diário de Fernando.

A diferença com as cartas de Betto é marcante. O diário de Fernando está impregnado de dor e fragilidade, expressa um sentimento de impotência diante do cataclismo que se abateu sobre sua vida, e isso lhe confere um tom particularmente humano. Ele escreve que ‘seu grito se perde sem eco no barulho exterior’ e que sente ‘a distância entre nossa indignação e a impotência dos gestos’ (p. 78). Impotente e fragilizado, ele dá a impressão de assemelhar-se à condição de um preso ‘comum’, perdido em meio a tantos outros injustiçados e esquecidos. Sente alucinações na cela solitária (pp. 119-121): o subconsciente aflora e ele confessa que quase perde o equilíbrio mental, sentindo-se abandonado e rejeitado no esgoto da ‘boa sociedade’:

menosprezado, rejeitado pelos homens
Um homem atormentado, sofrendo
Uma face velada para nós
Menosprezada, negligenciada (Is 53, 3-4).

Na p. 129, ele fala em alucinações: ‘Ouvimos vozes sem saber donde vêm nem para onde vão. Já não somos os santos’. Seu refúgio é o cigarro (p. 138) e o ‘poder da imaginação poderosa’ (p. 137). Fernando é o anti-herói, ele experimenta a fragilidade do ser e escreve páginas de profunda humanidade. Sofre de insônia e, quando consegue dormir, é habitado por sonhos medonhos. Graças ao apoio dos colegas, conserva a autoestima e consegue finalmente ser feliz no sofrimento. Percebe o distanciamento entre o projeto por ele abraçado e a realidade em que vive. O diário de Fernando mostra que fragilidade, sofrimento, autoestima e felicidade podem existir juntas. As letrinhas miúdas desse diário não evocam o ‘conto de fadas’ evocado por Alceu em 1977, mas a dor e o sentimento de abandono. Revelam a fragilidade humana e o quase esmagamento psicológico diante da brutalidade e crueldade que se abate sobre o grupo de jovens dominicanos, em muitos aspectos despreparados para as questões complexas em que se veem envolvidos e pegos de surpresa nas malhas de um sistema perverso.  Como escrevi acima, Fernando mal representa a figura heroica do preso político e seu texto não tem nada de triunfal.

A salvação de Fernando está no grupo. Na prisão, como em nenhum outro lugar, a união faz a força. O grupo dos dominicanos tem uma coesão que falta aos demais presos políticos. É dentro desse grupo que se celebra a missa, um recurso de união que se utiliza com muita eficácia, por se tratar de um rito que impõe respeito e congrega o grupo maior de encarcerados, inclusive de comunistas ateus confessos. Na p. 158, Fernando conta que os dominicanos rejeitam a missa de natal celebrada por Dom Lucas, já que não se permite a presença de todos os presos à missa. Essas atitudes são importantes para a sobrevivência psicológica do grupo de presos políticos e os dominicanos sabem disso, pois enfrentam um jejum de 33 dias (alguns dizem 36) na luta contra as sucessivas tentativas de se isolar os presos políticos e assim quebrar sua força moral. A falta desse apoio manifesta-se no triste caso de Tito Alencar, que – libertado após o sequestro do embaixador suíço - tem de abandonar o grupo e enfrentar uma liberdade sem o consolo e o apoio psicológico dos que enfrentam corajosamente as mesmas dificuldades. O texto de Fernando evoca a tristeza do companheiro Tito na França, onde - por mais sinceros que tenham sido os gestos de delicadeza e amparo para com sua pessoa - ele não encontrou mais um grupo com o qual se identificar. A união constitui uma das estratégias básicas do grupo de dominicanos, mas existem diversas outras. O diário todo pode ser lido dentro da perspectiva de procura de estratégias possíveis ao longo dos três anos de prisão, dentre elas algumas particularmente bem-sucedidas. Só alguns exemplos: agir sobre o subconsciente das autoridades repressivas; ativar a famosa ‘repercussão internacional’; trabalhar em cima do caráter internacional da igreja católica e de seu prestígio na sociedade; utilizar a mídia; indicar Dom Paulo Evaristo como intermediário incondicional; utilizar a força de ritos respeitados na sociedade, como a missa ou a recitação do Pai Nosso (a Internacional Comunista não tem a mesma repercussão); apelar para o sentimento do diretor do presídio (de Presidente Venceslau, por exemplo); atuar junto ao capelão da penitenciária; criar um ambiente humano no presídio.

Em termos de estratégias de ação, dá para se perceber uma evolução no pensamento dos dominicanos. Na página 34, Fernando relata o que se pode chamar de estratégia clássica da esquerda dos anos 1960. Marighella parte do pressuposto de que não existe nenhuma estratégia no bojo da sociedade brasileira tradicional e, pensando em preparar o terreno para a guerra do Araguaia, orienta os dominicanos a ‘preparar o povo através da pregação nas cidades da região e principalmente no interior do Pará’ (p. 34). A coisa não pode ser dita de forma mais clara. As pessoas que vivem na região não estão ‘preparadas’ e o ‘intelectual orgânico’ tem de vir de fora. Que contraste com as últimas 66 páginas do diário, que tratam do período entre 8/6/1972 e 4/10/1973, quando os dominicanos ficam num presídio com presos comuns em Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Aí eles são obrigados, pela força das circunstâncias, a praticar o que Rubem Alves chama de ‘escutatória’. Os textos referentes a esses últimos seis meses da prisão dos dominicanos são os mais curtos, mais diretos e – em minha opinião - mais interessantes para nossa reflexão hoje. Querendo ou não, os três frades têm de escutar e vão descobrindo aos poucos o universo de presos comuns, suas reais capacidades de ação e suas possíveis estratégias de sobrevivência e dignificação. O diário termina mencionando algumas lindas experiências junto a presos comuns, na cotidianidade da prisão: a administração de aulas de curso primário e as dramatizações, como aquela mencionada na p. 261, em que Morcegão, o assassino, dramatiza três ‘posições sociais’: assassino, vítima do assassino, policial. Aqui estamos perto de Michel de Certeau e sua ‘Invenção do cotidiano’[2], perto de Wittgenstein e de tantos outros intelectuais preocupados em descobrir e resgatar estratégias populares. Não se insiste mais em ‘organizar o povo’ (Marighella), mas em descobrir pacientemente a maneira como o povo se organiza e em captar as possibilidades concretas, os jogos bem sucedidos, as artimanhas que os presos ‘comuns’ usam e que podem servir de inspiração.

A experiência dos jovens dominicanos brasileiros dos anos 1969-1973 lembra a longínqua experiência de seus confrades, cinco séculos atrás. Os primeiros quatro frades dominicanos que aportam à Ilha Espanhola (hoje República Dominicana) em 1510, apenas 18 anos após a chegada de Cristóvão Colombo, ficam escandalizados com o comportamento de seus compatriotas para com a população local. Entre eles está Pedro de Córdoba, discípulo do famoso frei Juan Hurtado de Mendoza, reformador da ordem dominicana em Salamanca na Espanha, que impulsionou a reforma fundamental da ordem dominicana e deve ser considerado pioneiro de um movimento que está na origem dos primeiros esboços de direito internacional (ius gentium), tais quais se encontram na bula papal ‘Sublimis Deus’ de 1537 (os chamados ‘índios’ da América são seres humanos de pleno direito e, portanto, iguais aos europeus) e – de maneira bem mais elaborada – na teologia de Vitoria e na prática de Bartolomeu de Las Casas, ambos dominicanos. Quando Pedro de Córdoba e seu colega Antônio Montesinos chegam à ilha, eles se revoltam de tal forma que - no sermão dominical - acusam as autoridades coloniais da ilha de homicidas[3]. A estátua de Montesinos, de boca aberta acusando as injustiças coloniais, ainda pode ser admirada em Santo Domingo. Há um elo histórico que liga os jovens dominicanos de 1969-1973 com seus jovens confrades de 1510. Podemos ir mais adiante e ponderar: como os dominicanos brasileiros do século XX são diferentes de seus colegas dos séculos da inquisição! De inquisidores e acusadores passam a inquiridos e acusados. Hoje, a ordem dominicana está empenhada em rever a pesada história de seu envolvimento na inquisição. Vale a pena mencionar aqui o rigoroso exame de consciência que a ordem está empreendendo acerca de seu passado inquisitorial. Tudo se iniciou com um simpósio internacional sobre a inquisição na cidade do Vaticano, nos dias 29 a 31 de outubro de 1998. Em seguida, o capítulo geral dos frades dominicanos, reunido em Bolonha do 13 de julho a 4 de agosto de 1998, recomendou que o instituto histórico da ordem ‘examinasse o papel representado por alguns de seus membros nas injustiças do passado para ajudar a purificar nossa memória’. Dentro desses propósitos se organizou em Roma o primeiro seminário internacional sobre ‘Dominicanos e Inquisição’, nos dias 23 a 25 de fevereiro de 2002, cujas atas foram publicadas pelo instituto histórico dominicano em 2004 e apresentadas por mim aos leitores da REB (2005, 995-998). Houve depois um segundo seminário sobre o mesmo tema em Sevilha (março 2004) e em 2008 se publicou o terceiro volume de ‘Praedicatores Inquisitores’, baseado no seminário realizado em Roma nos dias 15 a 18 de fevereiro de 2006. Alguns trabalhos desses seminários lembram o diário de Fernando, como a evocação do caso de uma freira dominicana de Lisboa, Maria da Visitação, presa em 1584 pela inquisição por ter tido revelações consideradas demoníacas pela igreja e que diante dos inquisidores (da mesma ordem dominicana!) teve a coragem de confirmar as visões e as imagens que lhe davam coragem de prosseguir criticando situações injustas[4].

O diário de Fernando evoca memórias ainda mais antigas. A memória cristã guarda o relato impressionante da prisão de uma matrona cristã, Perpétua de Cartago, no início do século III. O documento ‘Paixão de Perpétua e Felicidade’ é um dos escritos mais surpreendentes, não só da literatura cristã, mas da literatura antiga em geral. É a primeira vez, em toda a literatura da antiguidade, que uma mulher fala por si, sem mediação masculina. Condenada ad bestias e reclusa numa prisão militar enquanto se aguarda a data da execução, Perpétua sonha numa mistura de pesadelo e conforto. Como Fernando. Apesar de ser condenada à morte e considerada vencida por seus perseguidores, ela ingressa na morte com a palma da vitória na mão. Ela sonha com uma escada de ouro, comprida e estreita, rodeada de armas perigosas e com um dragão ao pé da escada. Perpétua pisa no dragão e assim chega em cima. Aí contempla um prado com um pastor que ordenha ovelhas e lhe oferece coalhada de leite. Num outro sonho, ela vê uma figura maior que a altura do anfiteatro onde será executada. É um mestre dos gladiadores que lhe entrega um ramo verde com frutas douradas, prenunciando sua vitória. Perpétua flutua no anfiteatro e esmaga a cabeça do algoz, passa pela porta da vida e alcança a árvore da vida, o jardim, o paraíso esperado. No auge da luta, aludindo à força que ela sente dentro de si, ela grita: ‘facta sum masculus’, eu me tornei um homem. Pouco antes, ela tinha dito ao pai: christiana sum, sou cristã. Eis um relato que merece ficar cultivado pela memória cristã[5].

O diário de Fernando está destinado a ocupar seu devido lugar dentro da variada literatura produzida em situações de repressão. O cuidado do autor em anotar tudo evoca as notas furtivas de Soljenitsin (autor do livro ‘O arquipélago Gulag’, de 1973), que é - como ele – um obcecado registrador de palavras ao manejar lápis ou caneta quando em marcha com os demais encarcerados, na hora do lanche e nos intervalos da corte de lenha no mato, anotando tudo em pequenos cadernos e resmas de papel, sem margens e com um mínimo de espaço entre uma linha e outra, exatamente como faz Fernando. O diário faz igualmente pensar nas ‘Recordações da Casa dos Mortos’ (1862), nas quais Dostoievski descreve as prisões na Sibéria, onde ele passou quatro anos. Contudo, a mais impressionante obra produzida em cárcere é o romance Dom Quixote (1575), redigido por Miguel de Cervantes durante seus cinco anos em cativeiro. Dom Quixote é o preso sonhador. Ele nos lembra que somos maiores do que somos, que podemos transcender a figura humana da mesquinhez e partir com ele à procura da justiça perdida e da misericórdia que não se encontra em lugar nenhum, não fazer o que se espera de nós e fazer o que de nós não se espera, olhar para as estrelas e abraçar o mundo inteiro num sonho de fraternidade universal.




[1] Maurice Halbwachs, Les Cadres sociaux de la mémoire, 1925.
[2] Certeau, M. de, A Invenção do Cotidiano, Vozes, Petrópolis, vol 1: 1994; vol. 2: 1996.
[3] Comblin, J. A profecia na igreja, Paulus, São Paulo, 2007, 166-175.
[4] Institutum Históricum Fratrum praedicatorum, Praedicatores Inquisitores III (Roma, 15-18 fev. 2006), Istituto Storico Domenicano, Roma, 2008, 559-590.
[5] Brown, P., Corpo e Sociedade: o Homem, a Mulher e a Renúncia sexual no Início do Cristianismo, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1990.