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terça-feira, 30 de junho de 2020

FESTAS JUNINAS, PANDEMIA E DEMOCRACIA


 

Por Marcelo Barros

 

A cada dia, a situação social e política no Brasil é mais trágica e violenta. Despreparada e desavisada, a maior parte da população se defronta com um vírus cruel que, a cada dia, faz mais vítimas. Enquanto isso, a preocupação de muitos governos municipais e estaduais é satisfazer a empresários e comerciantes. Estes querem o funcionamento normal das indústrias e do comércio. Para que os ricos possam cumprir sua quarentena, os pobres precisam produzir e fazer o comércio funcionar a pleno vapor. No meio de tudo isso, o presidente da República cuida de alimentar a sociedade com a sua porção diária de ódio, racismo e todas as possíveis fobias sociais. Assim, com muita competência, acirra cada vez mais os ânimos, favoráveis e contrários ao seu desgoverno.  

Neste clima de quarentena, um dos elementos mais dolorosos é que as pessoas doentes e em risco de vida devem ser isoladas. Não podem contar nem mesmo com a presença e o apoio afetivo dos familiares mais próximos. E nos bairros de periferia, , onde as condições de moradia não permitem qualquer distanciamento social, o vírus penetra com mais violência. Também nas populações indígenas e grupos tradicionais, cuja cultura comunitária não interioriza a noção de contágio ou imunização.

Nesse momento, o mundo inteiro vive a crise econômica e social provocada pela pandemia. No plano do cuidado com o planeta, a pandemia revela que chegamos ao fundo do poço. Cientistas predizem que se não houver mudança drástica de caminho, possivelmente outros vírus se sucederão a estes e a humanidade não sairá dessa corrente de destruição.  

No plano social, o Brasil inteiro se recorda de que estamos em tempos de festas juninas. No Nordeste, é a festa mais importante do ano e  corresponde aos festejos pré-cristãos realizados desde tempos imemoriais no solstício do inverno.  Na região andina, em locais especiais da Bolívia, Peru e Equador, os índios festejam o Inti Rami, as festas ao sol no ano novo. No Brasil, em roças e aldeias, principalmente do interior do país, há festas com brincadeiras, quadrilhas e comidas típicas de cada região. Algumas destas danças juninas vieram das cortes da Europa e são hoje o que se chamam “quadrilhas”. Até hoje, nessas danças, se usam termos franceses. As pessoas se vestem de caipiras e dançam como a nobreza de outros séculos. Nos casamentos matutos, figuras como padres e juízes da roça são caricaturadas e acusadas de só se interessarem por dinheiro e poder. Através dessas cenas humorísticas, as camadas mais pobres do povo expressam suas fortes críticas à elite e o seu protesto social contra as injustiças estruturais. Mesmo o fato de considerar Santo Antônio santo casamenteiro, associar São João Batista com fogueira e brincar com as chaves de São Pedro quebra algo da seriedade sisuda com que se costumam olhar os assuntos do céu. Ligam os santos às realidades de cada dia.

Por trás das festas juninas, podemos descobrir a imensa capacidade de se organizar do povo mais simples. Em poucas semanas e em condições de pobreza e de servidão no trabalho, as pessoas superam todas as dificuldades do dia a dia, ensaiam as danças, conseguem as vestes tradicionais, organizam comidas típicas e revelam uma unidade fundamental, mesmo na diversidade de opiniões políticas e de opções sociais. Atualmente, com o atual desgoverno brasileiro, corremos o risco de perder esta identidade fundamental de povo.

Em um mundo sem perspectivas, essas brincadeiras populares contêm uma forte crítica social. Ricos e autoridades são caricaturadas e apresentadas em suas ambições mesquinhas e suas velhacarias. Os mais pobres ensaiam uma sociedade nova, na qual todos são protagonistas. Assim, na alegria e de forma despretensiosa, grupos e comunidades populares sinalizam uma realidade nova que se aproxima ao que os evangelhos chamam de reinado de Deus.

É importante que, mesmo neste ano, quando não podemos vivenciar o caráter comunitário e presencial destas festas juninas, que este tempo não seja esquecido. Que as músicas próprias desta época animem uma festa no nosso coração, mesmo se estas festas coincidem com tempos de grande sofrimentos e lutas. Elas podem sim se instrumentos de esperança e resistência. Do seu modo e em sua linguagem lúdica, parecem traduzir uma palavra que os evangelhos atribuem a São João Batista: “Mudem de vida porque a realização do projeto de Deus no mundo está próximo!” (Mt 3, 2).

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com



domingo, 28 de junho de 2020

COVID -19 - QUADRAGÉSIMA-QUINTA REFLEXÃO - ATO PENITENCIAL EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


 

Por Frei Aloísio Fragoso

 

     Um dia Jesus falou assim: "Quando vocês veem uma nuvem vindo do Ocidente, dizem: vai chover. E chove, de fato. E quando sentem o vento sul soprando, logo afirmam: vai fazer calor. E faz mesmo calor. Hipócritas! Vocês que sabem interpretar os sinais do céu e da terra, como é que não são capazes de entender o tempo presente! Lc.12, 54-56.

     Este desabafo ecoou por mais de vinte séculos, e hoje é tão atual como naquela época em que Jesus mesmo era o Sinal que seus contemporâneos não queriam entender.

     A tragédia do Coronavírus pede uma interpretação.

     Os primeiros a opinar são os profetas do apocalipse: "O Coronavírus é castigo de Deus irado contra os pecados de vocês. E, se não se arrependerem, virão pragas ainda maiores!". Com esta visão, provocam duas outras tragédias: a do ateísmo de pessoas lúcidas que não admitem submeter-se a um Deus vingativo e aterrador. E a do sectarismo dos que se arrogam o direito de dividir o mundo entre bons e maus, e "obrigam" a Deus de ficar do lado deles, os únicos predestinados à salvação.

     Deixemo-los entregues aos seus histerismos.

     Antes que o COVID 19 o contaminasse, o mundo já estava doente

 Distraídos com suas seduções, achamos que seria apenas um  curto circuito, um breve apagão. O Sr. Ministro da Economia, em conchavo com o Sr. Presidente da República,  em nome da estabilidade econômica, declarou, no início de março: "se esta quarentena chegar até 7 de abril, o país vai falir".  A quarentena está chegando a julho, o Brasil não faliu e os brasileiros viram desmascarada a farsa de que não havia dinheiro no cofre nacional.

     Na verdade, esta tentativa de ludibriar a população representa a total insensibilidade aos "sinais do tempo", a inútil arrogância de julgarem-se "senhores do tempo'.

    Deixemo-los entregues à sua autofagia.

     Da nossa parte, procuremos fazer nossa leitura, a partir de alguns novos fatos. A pandemia obrigou-nos a fechar nossas igrejas às celebrações públicas. Um doloroso sacrifício para numerosos fiéis praticantes. No entanto, há outras questões girando em torno desta. Acaso o esvaziamento dos templos foi capaz de produzir uma ruptura em nossas relações com Deus? Acaso Deus não é soberano para compadecer-se de nós, independente dos lugares santos que construimos em seu louvor? Mais importante do que ficar a lamentar-se é focar nossa atenção nestas palavras de Jesus: "onde dois ou mais estiverem reunidos  em meu nome, eu estarei no meio deles". "Onde" significa "qualquer lugar".

     Há outras pandemias acontecendo, com sequelas semelhantes a esta. Em países da Europa, faz anos que os fiéis cristãos assistem ao fechamento de grandes igrejas, grandes mosteiros, grandes seminários. Em algumas cidades a Igreja local não sabe que destino dar a estas construções esvaziadas de gente e de finalidade.

      Onde está o vírus causador dessa outra tragédia? Há quem desconfie de um outro vazio nestes sinais do tempo:  a Igreja precisa apresentar ao mundo uma face mais evangélica do Cristianismo. Quisemos converter o mundo e agora o mundo está exigindo a nossa conversão. Como afirma um conhecido teólogo tcheco, Tomaz Halik, está na hora de se operar a passagem de um ser cristão estático para um vir a ser cristão dinâmico. Em outras palavras, cada batizado em nome de Cristo deve deixar de parecer e começar a tornar-se cristão de verdade.

     Houve uma época, já faz séculos, em que não era preciso uma pandemia para se fecharem as igrejas. A Instituição usava o Interdito como forma de punição. Regiões inteiras eram proibidas de celebrar a Eucaristia e os demais sacramentos. Este fato contribuiu para o nascimento de muitos movimentos de espiritualidade, à margem da Instituição, que acabaram influindo na reforma da própria Igreja.

      Erro maior seria recorrer às "redes sociais" como o grande sinal promissor para o futuro da evangelização. Nenhuma tecnologia poderá substituir o encontro fraterno do olho no olho, do abraço comprometedor. Como imaginar uma piedade virtual, uma Ceia Eucarística à distância e nossos joelhos dobrados diante de um aparelho de TV?

     Segundo o relato dos Evangelhos, Maria Madalena foi visitar o sepulcro e encontrou o túmulo vazio. Mas escutou uma voz que dizia: "Vá anunciar aos meus discípulos que irei à frente deles para a Galiléia".

     Nosso Ato Penitencial seja descobrir onde fica a Galiléia de hoje,  e partir ao encontro de Jesus. Os sinais do tempo poderão indicar-nos que esta Galiléia se encontra não ali onde a Igreja está e sim onde ela não está.

      Nesta jornada, sejamos guiados pelos apóstolos Pedro e Paulo,  cuja festa celebramos neste domingo. Amém.

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

 


sexta-feira, 26 de junho de 2020

A TRANSIÇÃO ECOLÓGICA PARA UMA SOCIEDADE BIOCENTRADA


Por Leonardo Boff

O ataque do Coronavírus contra toda a humanidade nos obrigou a nos concentrar no vírus, no hospital, no paciente, no poder da ciência e da técnica e na corrida desenfreada por uma vacina eficaz e no confinamento e distanciamento social tudo isso é indispensável.

Mas para apreendermos o significado do Coronavírus, precisamos enquadrá-lo em seu devido contexto e     não vê-lo isoladamente. Ele expressa a lógica do capitalismo global que, há séculos, conduz uma guerra sistemática contra a natureza e contra a Terra.

             O capitalismo neoliberal gravemente ferido

O capitalismo se caracteriza pela exacerbada exploração da força de trabalho, pela utilização dos saberes produzidos pela tecnociência, pela pilhagem dos bens e serviços da natureza, pela colonização e ocupação de todos os territórios acessíveis. Por fim, pela mercantilização de todas as coisas. De uma economia de mercado passamos para uma sociedade de mercado.

Nela, as coisas inalienáveis se transformaram em mercadoria. Karl Marx em sua Miséria da Filosofia de 1874 profetizou: “Tudo o que os homens considerável inalienável, coisas trocadas e dadas mas jamais vendidas….tudo se tornou venal como a virtude, o amor, a opinião, a ciência e a consciência… tudo foi  levado ao mercado e ganhou seu preço”. A isso ele denominou o “tempo da corrupção geral e da venalidade universal” (ed.Vozes 2019,p.54-55).É o que estamos vivendo desde o fim da segunda guerra mundial.

O capitalismo quebrou todos os laços com natureza, a transformou num baú de recursos, tidos ilusoriamente ilimitados, em função de um crescimento também tido ilusoriamente ilimitado. Ocorre que um planeta já velho e limitado não suporta um crescimento ilimitado.

Politicamente o neoliberalismo confere centralidade ao lucro, ao mercado, ao Estado mínimo, às privatizações de bens públicos e uma exacerbação da concorrência e do individualismo, a ponto de Reagan e Thatcher dizerem que a sociedade não existe, apenas indivíduos.

A Terra viva, Gaia, um superorganismo que articula todos fatores para continuar viva e produzir e reproduzir sempre todo tipo de vida, começou a reagir e contra-atacar: pelo aquecimento global, pela erosão da biodiversidade, pela desertificação crescente, pelos eventos extremos e pelo envio de suas armas letais que são os vírus e bactérias (gripe suína, aviária, H1N1, zika, chikungunya, SARS, ebola e outros) e agora o covid-19, invisível e letal. Colocou a todos de joelhos, especialmente as potências militaristas cujas armas de destruição em massa (que poderiam destruir toda a vida, várias vezes) se mostraram totalmente supérfluas e ridículas. Agora passamos do capitalismo do desastre para o capitalismo do caos,como diz a crítica do sistema capitalista Naomi Klein.

Uma coisa ficou clara a propósito do covid-19: caiu um meteoro rasante em cima do capitalismo neoliberal desmantelando seu ideário: o lucro, a acumulação privada, a concorrência, o individualismo, o consumismo, o estado mínimo e a privatização da coisa pública e dos commons. Ele foi gravemente ferido. O fato é que produziu demasiada iniquidade humana, social e ecológica, a ponto de pôr em risco o futuro do sistema-vida e do sistema-Terra.

Ele, entretanto, colocou inequivocamente a disjuntiva: vale mais o lucro ou a vida? O que vem antes: salvar a economia ou salvar vidas humanas?

Pelo ideário do capitalismo, a disjuntiva seria salvar a economia em primeiro lugar e em seguida vidas humanas. Mas releva reconhecer que é o que nos está salvando é aquilo que inexiste nele: a solidariedade, a cooperação, a interdependência entre todos, a generosidade e o cuidado mútuo pela vida de uns e de outros.

Alternativas para o pós-Coronavírus

O grande desafio colocado a todos, a grande interrogação especialmente, aos donos dos grandes conglomerados multinacionais é: Como continuar? Voltar ao que era antes? Recuperar o tempo e o lucros perdidos?

Muitos dizem: voltar simplesmente ao que era antes, seria um suicídio. Pois a Terra poderia novamente contra-atacar com vírus mais violentos e mortais. Cientistas já advertiram que poderemos, dentro de pouco, sofrer com um ataque ainda mais feroz, caso não tenhamos aprendido a lição de cuidar da natureza e de desenvolver uma relação amigável para com a Mãe Terra.

Elenco aqui algumas alternativas, pois os senhores do capital e das finanças estão numa furiosa articulação entre eles para salvaguardar seus interesses, fortunas e poder de pressão política.

A primeira seria a volta ao sistema capitalista neoliberal extremamente radical. Seria 0,1% da humanidade, bilhardários, que utilizariam a inteligência artificial com capacidade de controlar cada pessoa do planeta, desde sua vida íntima, privada e pública. Seria um despotismo de outra ordem, cibernético, sob a égide do total controle/dominação da vida das populações.

Este não aprendeu nada do covid-19, nem incorporou o fator ecológico. Pela pressão geral, talvez assuma uma responsabilidade socio-ecológica para não perder lucros e frequezes. Mas seguramente haverá grande resistência e até rebeliões provocadas pela fome e pelo desespero.

A segunda alternativa seria o capitalismo verde que tirou as lições do Coronavírus e incorporou o fator ecológico: reflorestar o devastado e conservar ao máximo a natureza. Mas não mudaria o modo de produção e a busca do lucro. O capitalismo verde não discute a desigualdade social perversa e faria de tudo da natureza, ocasião de ganho. Exemplo: não apenas ganhar com o mel das abelhas, mas também sobre sua capacidade de polinizar outras flores. A relação para com a natureza e a Terra continuaria utilitarista e não lhe reconheceria direitos,como declarou a ONU e seu valor intrínseco, independente do ser humano.

A terceira seria o comunismo de terceira geração que nada teria com as anteriores, colocando os bens e serviços do planeta sob a administração plural e global para redistribui-los equitativamene a todos. Poderia ser possível, mas supõe uma nova consciência ecológica, além de  dar centralidade à vida em todas as suas formas. Seria ainda antropocêntrico. É pouco representado, pelos filósofox Zizek e Badiou além da carga negativa das experiências anteriores e mal sucedidas.

A quarta, seria o eco-socialismo com maiores possibilidades. Supõe um contrato social mundial com um centro plural de governança para resolver os problemas globais da humanidade. Os bens e serviços naturais seriam equitativamente distribuídos a todos, num consumo decente e sóbrio que incluiria também toda a comunidade de vida. Ela também precisa de meios de vida e de reprodução como água, climas e nutrientes. Esta alternativa estaria dentro das possibilidades humanas, desde que superasse o sociocentrismo e incorporasse os dados da nova cosmologia e biologia, que consideram a Terra como momento do grande processo cosmogênico, biogênico e antropogênico.

A quinta alternativa seria o bem viver e conviver ensaiada por séculos pelos andinos. Ela é profundamente ecológica, pois considera todos os seres como portadores de direitos. O eixo articulador é a harmonia que começa com a família, com a comunidade, com a natureza, com o inteiro universo, com os ancestrais e com a Divindade. Esta alternativa possui alto grau de utopia, talvez, quando a humanidade se descobrir como espécie, habitando numa única Casa Comum, teria condições de realizar o bem-viver e o bem conviver.

Conclusão desta parte: ficou evidente que o centro de tudo é a vida, a saúde e os meios de vida e não o lucro e o desenvolvimento (in)sustentável. Vai se exigir mais Estado com mais segurança sanitária para todos, um Estado que satisfaça as demandas coletivas e promova um desenvolvimento que obedeça os ritmos e os limites da natureza. Não será a austeridade que vai resolver os problemas sociais que têm beneficiados ao já ricos, e penalizado os mais pobres. A solução se deriva da justiça social e distributiva, onde todos participam do ônus e do bônus da ordem social.

Como o problema do Coronavírus foi global, torna-se necessário um contrato social global para implementar soluções globais. Tal transformação demandará uma descolonização de visões de muno e de conceitos, como a voracidade pelo lucro e o consumismo, que foram inculcados pela cultura do capital. O pós-Coronavírus nos obrigará conferir centralidade à natureza e à Terra. Ou salvamos a natureza e a Terra ou engrossaremos o cortejo dos que rumam para o abismo.

Como buscar uma transição ecológica, exigida pela ação mortífera do covid-19? Por onde começar?

Não podemos subestimar o poder do “gênio” do capitalismo neoliberal: ele é capaz de incorporar os dados novos, transformá-los em seu benefício privado e para isso usar todos os meios modernos da robotização, da inteligência artificial com seus bilhões de algoritmos e eventualmente as guerras híbridas. Sem piedade podem conviver, indiferentes, aos milhões e milhões de esfaimados e lançados na miséria.

Por outra parte os que buscam uma transição paradigmática, dentro do qual eu mesmo me situo, devem propor outra forma de habitar a Casa Comum, com uma convivência respeitosa para com a natureza e um cuidado com todos os ecossistemas. Devem gerar na base social outro nível de consciência e novos sujeitos sociais, portadores desta alternativa. Para isso, cabe enfatizar, devemos passar por um processo de descolonização de visões de mundo e de ideias inculcadas pela cultura do capital. Devemos ser anti-sistema e alternativos.

           Pressupostos para uma transição bem sucedida

Primeiro pressuposto: a vulnerabilidade da condição humana, exposta a ser atacada por enfermidades, bactérias e vírus. dos ecossistemas e a alimentação humana.

Fundamentalmente dois outros fatores estão na origem da invasão de micro-organismos letais: a excessiva urbanização humana que avançou sobre os espaços da natureza, destruindo os habitats naturais dos vírus e bactérias: saltaram para outros animais ou para o corpo humano. 83% da humanidade vive em cidades.

O segundo fator é a desflorestação sistemática devida à voracidade do capital que busca riqueza com a monocultura da soja, da cana, do girasol ou com a mineração e a produção de proteínas animais (gado), devastando florestas e desequilibrando o regime de umidade e de chuvas de vastas regiões como é o caso da Amazônia.

Segundo pressuposto: a interdependência entre todos os seres, especialmente entre os seres humanos. Somos, por natureza, um nó de relação, voltado para todas as direções. A bioantropologia e a psicologia evolutiva deixaram claro que é da essência específica do ser humano a cooperação e a relação de todos com todos. Não existe o gene egoísta, formulado por Dawkins no fins dos anos 60 do século passado sem nenhuma base empírica. Todos os genes se interligam entre si e dentro das células. Todos os seres estão inter-retro-relacionados e ninguém está fora da relação. Nesse sentido o individualismo, valor supremo da cultura do capital, é anti-natural e não possui nenhuma base biológica.

Terceiro pressuposto: a solidariedade como opção consciente. A solidariedade está na base de nossa humanidade. Os bio-antropólogos nos revelaram que este dado é essencial ao ser humano. Quando nossos ancestrais buscavam seus alimentos, não os comiam sozinhos. Levavam-nos ao grupo e serviam a todos começando com os mais novos, depois com os mais idosos e por fim a todos. Daí surgiu a comensalidade e o sentido de cooperação e solidariedade. Foi a solidariedade que nos permitiu o salto da animalidade para a humanidade. O que valeu ontem, vale também para hoje.

A sociedade vive e subsiste porque seus cidadãos comparecem como seres cooperativos e solidários, superando conflito de interesses para ter uma convivência minimamente humana e pacífica e juntos construir o bem comum. Esta solidariedade não vigora apenas entre os humanos. É uma constante cosmológica: todos os seres convivem, estão envolvidos em redes de de relações de reciprocidade e de solidariedade de forma que todos se entre-ajudam para viver e co-evoluir. Também o mais fraco, com a colaboração dos outros, subsiste e tem o seu lugar no conjunto dos seres e co-evolui.

O sistema do capital não conhece a solidariedade, apenas a competição que produz tensões, rivalidades e verdadeiras destruições de outros concorrentes em função de uma maior acumulação e, se possível, estabelecer o monopólio de um produto ou de uma fórmula científica.

Hoje o maior problema da humanidade não é nem o econômico, nem o político nem o cultural, nem o religioso, mas é a falta de solidariedade para com outros seres humanos que estão ao nosso lado. No capitalismo ele é visto como um eventual consumidor, não como uma pessoa humana com suas preocupações, suas alegrias e padecimentos.

Foi a solidariedade que nos está salvando face ao ataque do Coronavírus, a começar pelos operadores da saúde que generosamente arriscam suas vidas para salvar vidas. Assistimos atitudes de solidariedade em toda a sociedade mas especialmente nas periferias onde as pessoas não têm condições de fazerem o isolamento social e não possuem reservas de alimentação. Muitas famílias que recebiam as cestas básicas, as repartiam entre outros mais necessitados.

Referência especial merece o MST (Movimento dos Sem Terra) que forneceu toneladas alimentação orgânica para os mais vulneráveis. Não dão o que lhes sobra, mas o que têm. Outras ONGs organizaram ações de solidariedade para atenderem aos mais carentes. Mesmo as grande empresas mostraram solidariedade, doando alguns milhões que lhes sobraram para enfrentar o covid-19.

Não basta que a solidariedade seja um gesto pontual. Ele deve ser uma atitude básica, porque é  um dado de nossa natureza. Temos que fazer uma opção consciente para sermos solidários a partir dos últimos e invisíveis, para aqueles que não contam para o sistema imperante e são considerados prescindíveis e zeros econômicos. Só assim ela deixa de ser eletiva e engloba a todos, pois todos somos co-iguais e nos unem  laços objetivos de fraternidade.

Quarto pressuposto: o cuidado essencial para com tudo o que vive e existe, especialmente entre os seres humanos. Pertence à essência do humano, o cuidado sem o qual nenhum ser vivo subsistiria. Nós estamos vivos porque tivemos o infinito cuidado de nossas mães. Deixados no berço, não saberíamos como buscar nosso alimento e dentro de pouco tempo morreríamos.

Ademais cuidado é além disso uma constante cosmológica como o mostraram Stephan Hawking e Brian Swimme entre outros: as quatro forças que sustentam o universo (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear franca e forte) agem sinergeticamente com extremo cuidado sem o qual não estaríamos aqui refletindo sobre estas coisas.

O cuidado representa uma relação amiga da vida, protetora de todos os seres pois os vê como um valor em si mesmo, independente do uso humano. Foi a falta de cuidado para com a natureza, devastando-a, que os vírus perderam seu habitat, conservado em milhares de anos e passaram a outro animal ou ao ser humano para poder sobreviver devorando  nossas células. O ecofeminismo trouxe uma expressiva contribuição à preservação da vida e da natureza com a ética do cuidado, desenvolvida por elas, pois o cuidado é de todos os humanos, mas ganha especial densidade nas mulheres

            A transição para a uma civilização biocentrada

Toda crise faz pensar e projetar novas janelas de possibilidades. O Coronavírus nos deu esta lição: a Terra, a natureza, a vida, em toda sua diversidade, a interdependência, a cooperação e a solidariedade devem possuir a centralidade na nova civilização, se não quisermos ser mais atacados por vírus letais.

Parto da seguinte interpretação: não só nós agredimos por séculos a natureza e a Mãe Terra. Agora é a Terra ferida e a natureza devastada que estão nos contra-atacando e fazendo sua represália. São entes vivos e como vivos sentem e reagem às agressões.

A multiplicação de sinais que a Terra nos enviou, a começar pelo aquecimento global, a erosão da biodiversidade na ordem de 70-100 mil espécies por ano (estamos dentro da sexta extinção em massa na era do antropoceno e do necroceno) e outros eventos extremos, devem ser tomados absolutamente a sério e interpretados. Ou nós mudamos nossa relação para com a Terra e a natureza, num sentido de sinergia, de cuidado e de respeito ou a Terra pode não nos mais querer sobre sua superfície. Desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou engrossaremos o cortejo daqueles que rumam para a sua própria sepultura.

Quase todas as análises do covid-19 focaram a técnica, a medicina, a vacina salvadora, o isolamento social, o distanciamento e o uso de máscaras para nos proteger e não contaminar os outros. Raramente se falou de natureza, pois, o vírus veio da natureza. Por que ele passou da natureza a nós? Já o tentamos explicar anteriormente.

A transição de uma sociedade capitalista de superprodução bens materiais para uma sociedade   de sustentação de toda a vida com valores humano-espirituais como a solidariedade, a compaixão, a interdependência, a justa medida, o respeito e o cuidado e, não em último lugar, o o amor, não se fará de um dia para o outro.

Será um processo difícil que exige, nas palavras do Papa Francisco na encíclica “sobre o Cuidado da Casa Comum” uma “radical conversão ecológica”. Vale dizer, devemos introduzir relações de cuidado, de proteção e de cooperação. Um desenvolvimento feito com a naturezas e não contra a natureza.

O sistema imperante pode conhecer uma longa agonia. Mas não terá futuro. Há uma grande acumulação de crítica e de práticas humanas que sempre resistiram à exploração capitalista. Segundo minha opinião, quem o vencerá definitivamente nem seremos só nós, mas a própria Terra, negando-lhe as condições de sua reprodução pelos limites dos bens e serviços da Terra superpovoada.

              O novo paradigma cosmológico e biológico

Para uma sociedade pós-Covid-19 impõe-se a assunção das contribuições do novo paradigma cosmológico que já possui um século de existência. Lamentavelmente até agora não conseguiu conquistar a consciência coletiva nem a inteligência acadêmica, muito menos a cabeça dos “decisons makers” políticos parte de que tudo se originou a partir do big bang, ocorrido há 13,7 bihões de anos. De sua explosão surgiram as grandes estrelas vermelhas e com a explosão destas, as galáxias, as estrelas, os planetas, a Terra e e nós mesmos. Somos todos feitos do pó cósmico.

A Terra que já tem 4,3 bilhões de anos e a vida cerca de 3,8 bilhões de anos são vivos. A Terra, isso é um dado de ciência já aceito pela comunidade científica, não só possui viva sobre ela mas é viva e produz toda sorte de vidas.

O ser humano que surgiu já há uns 10 milhões de anos há 100 mil ano como sapiens sapiens é a porção da Terra que num momento de alta complexidade começou a sentir, a pensar, a amar e a cuidar. Por isso homem vem de húmus, terra boa.

Inicialmente possuía uma relação de convivência com a natureza, depois passou de intervenção mediante a agricultura de irrigação e nos últimos séculos de agressão sistemática mediante a tecnociência. Essa agressão foi levada a todas as frentes a ponto de colocar em risco o equilíbrio da Terra e até uma ameaça de auto-destruição da espécie humana com armas nucleares, químicas e biológicas.

Essa relação de agressão subjaz à atual crise sanitária. Levada avante, a agressão poderá nos trazer crises mais agudas até aquilo que os biólogos temem The Next Big One: aquele próximo e grande vírus, inatacável e fatal que poderá levar a espécie humana a desaparecer da face da Terra.

Para obviar este possível armagedom ecológico, urge renovar o contrato natural violado com a Terra viva: ela nos dá tudo o que precisamos e garante a sustentabilidade dos ecossistemas. Nos,  contratualmente, teríamos que lhe devolver cuidado, respeito a seus ciclos e lhe damos tempo para regenerar o que lhe tiramos. Este contrato natural foi rompido por aquele estrato da humanidade (e sabemos quem é) que explora os bens e serviços, desfloresta, contamina as águas e os mares.

É decisivo renovar o contrato natural e articulá-lo com o contrato social: uma sociedade que se sente parte da Terra e da natureza, que assume coletivamente a preservação de toda vida, mantém em pé suas florestas que garante a água necessária para todo tipo de vida e regenera o que foi degradado e fortalece o que já é preservado.

A importância da região: o bioregionalismo

A ONU reconheceu a Terra como Mãe Terra e a natureza como titulares de direitos. Isso implica que a democracia deverá incorporar como novos cidadãos, as florestas, as montanhas, os rios, as paisagens. A democracia seria socio-ecológica.

A vida será o farol orientador e a política e a economia estarão a serviço, não da acumulação e do mercado mas da vida. O consumo, para que seja universalizado, será sóbrio, frugal e solidário. Destarte, a sociedade seria suficiente e decentemente abastecida.

O acento não se dará à planetização econômico-financeira que seguirá o seu curso, mas à região. A ponta mais avançada da reflexão ecológica atualmente se realiza em torno do bio-regionalismo.

Tomar a região, não como vem definida arbitrariamente pela administração geográfica mas com a configuração que a natureza fez, com seus rios, montanhas, floresta, planícies, fauna e flora e especialmente com os habitantes que aí moram.Na bioregião poder-se-á verdadeiramente criar um desevolvimento sustentável que não seja meramente retórico. As empresas serão preferentemente médias e pequenas, dar-se-á preferência à agroecologia, evitar-se-ão os transportes para regiões distantes, a cultura será o cimento de coesão: as festas, as tradições, a memória das pessoas notáveis, a presença das igrejas ou das religiões, os vários tipos de escolas e outros meios modernos de difusão de conhecimento e de encontros entre as pessoas.

A Terra será como um mosaico feito de distintas peças cm cores diferentes: são as distintas regiões e os ecossistemas, diversos e singulares, mas todos compondo um só mosaico, a Terra.

A transição se fará por processos que vão crescendo e se articulando a nível nacional, regional e mundial, fazendo crescer a consciência de nossa responsabilidade coletiva de salvarmos a Casa Comum e tudo o que a ela pertence.

A acumulação de nova consciência permitirá um salto para um outro nível em que seremos amigos da vida, abraçaremos cada ser pois todos possuímos o mesmo código genético de base, desde a bactéria originária, passando pelas grandes florestas, os dinossauros, os cavalos, os beija-flores e nós mesmo.  Somos construídos por 20 aminoácidos e por 4 bases nitrogenadas ou fosfatadas. Quer dizer, somos todos parentes uns dos outros numa real fraternidade terrenal.

Será a civilização “da felicidade possível” e da “alegre celebração da vida”.

Brasil, nosso sonho bom: a sua refundação

O Brasil, por suas riquezas ecológicas, geográficas e populacionais, tem todas as condições de começar a colocar os fundamentos de uma civilização biocentrada.

Até hoje vivemos na dependência de outros centros hegemônicos. Está madurando, especialmente nas bases, a ideia da refundação de um outro Brasil.

Três pilastras podem dar corpo a esse sonho, por mim exposto com mais detalhe no livro: Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência” (Vozes 2019). Sem entrar em detalhes direi:

A natureza, das mais ricas do planeta em biodiversidade, em florestas úmidas e em água. Podemos ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro.

A cultura que configura a relação do ser humano com a natureza e com outros seres humanos, diversa, rica em criatividade nas artes, na música, na arquitetura, nas danças e em certos ramos da ciência, não obstante o racismo visceral e as ameaças às culturas originárias e outras exclusões sociais, reforçadas pela atual política de ultra-direita e de viés fascitóide.

O povo brasileiro ainda em fazimento, plasmado por gentes que vieram de 60 países diferentes. A cultura multiétnica e multireligiosa, a cultura relacional, o senso lúdico, a hospitalidade, a alegria de viver e sua criatividade são características entre outras de nosso povo.

O Brasil é a maior nação neolatina do mundo e temos tudo para ser a maior civilização dos trópicos. Para essa utopia viável, temos que retrabalhar no consciente e no inconsciente coletivo, as sombras que nos pesam fortemente: do etnocídio indígena, da colonização, da escravidão e da dominação das oligarquias, herdeiras da Casa Grande e de um governo atual anti-Brasil, anti-vida e anti-povo com traços claros de despotismo que pretende conduzir o país a fases superadas pela humanidade, ao ante iluminismo, ao mundo do atraso, avesso ao saber e aos valores civilizatórios que são já bens comuns das sociedades mundiais.

Para terminar, tomo como referência a proposta do Papa Francisco, quiçá o maior líder ético-político da humanidade. Na reunião com dezenas de movimentos sociais populares em 2015 ao visitar a Bolívia. Na cidade de Santa Cruz de la Sierra disse:

Vocês têm que garantir os três Ts :Terra para morar nela e trabalhar. Teto para morar porque não são animais que vivem ao relento. Trabalho com o qual vocês se autorealizam e conquistam tudo o que precisam.

Em seguida continuou: “Não esperem nada de cima. Pois vem sempre mais do mesmo e geralmente ainda pior. Sejam vocês mesmos os protagonistas de um novo tipo de mundo, de uma nova democracia participativa e popular, com uma economia solidária, com uma agroecologia com produtos sãos e livres de transgênicos. Sejam os poetas da nova sociedade.

Lutem para que a ciência sirva à vida e não ao mercado. Empenhem-se pela justiça social sem a qual não há paz. Por fim, cuidem da Mãe Terra sem a qual nenhum projeto será possível.

Aqui estamos diante de um programa mínimo para um novo tipo de sociedade e de humanidade.

O futuro nos assinala que não iremos ao encontro do capitalismo neoliberal, embora teime em se impor. Ele não deu certo: acumulou demasiada riqueza em poucas mãos à custa do sacrifício de milhões e milhões vivendo em condições sub-humanas e junto a isso devastou a maioria dos ecossistemas e colocou a Terra numa emergência ecológica.

A travessia para uma sociedade ecologicamente sustentada com uma cultura, uma política e economia compatíveis é a grande utopia viável da humanidade e dos grupos progressistas do Brasil.

Cremos e esperamos que esse sonho não seja uma fantasmagoria, mas uma realidade possível que se adequa à lógica do universo, feito não pela soma de seus corpos celestes, mas pelo conjunto das redes de suas relações dentro das quais nós também estamos envolvidos. Para citar Paulo Freire, diria: precisamos construir uma eco-sociedade na qual não seja tão difícil o amor.

O Brasil, libertado de suas sombras históricas, pode ser um embrião da nova sociedade, una, diversa dentro da única Casa Comum, a Mãe Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor e escreveu: Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 1995/2015; esm espanhol por Trotta, Madrid 1996, Dabar, México 1996.

 


quinta-feira, 25 de junho de 2020

COVID 19 QUADRAGÉSIMA QUARTA REFLEXÃO- PAULO APÓSTOLO EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


por Frei Aloísio Fragoso

 

     No próximo domingo a Igreja celebra a festa de um homem excepcional.  Entenda-se esta última palavra ao pé da letra: ele foi uma exceção. Em meio a milhões de outros que não chegam à metade do que deveriam ser, ele foi pleno. E esta plenitude era nutrida pela paixão. Se quiséssemos usar a linguagem da gíria, diríamos: "pense num cara apaixonado!". Paulo Apóstolo.

     Logo de início, quando teve que enfrentar os que contestavam seu papel de evangelizador, ele reage forte, numa carta endereçada à comunidade de Corinto: "Quem ousa dizer que não sou apóstolo? Vocês são o resultado do meu trabalho. Que outros não me aceitem como apóstolo, vá lá, mas vocês, não! Vocês são a prova da legitimidade do meu apostolado" 1Cor.9,2.

     A mesma paixão anima seus cuidados com estas comunidades: "Vocês podem ter muitos mestres, porém um só é o pai de vocês: sou eu este pai, e sofro dentro de mim dores de parto, até que o Cristo Senhor seja gerado em vocês" 1 Cor. 4, 14-15.

     A mesma paixão se reflete na sua adesão pessoal a Jesus: "Eu vivo sim, mas não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim. Com Ele eu fui crucificado" Gl.2,19-20. E se radicaliza na sua fidelidade à missão: "Eu sou um homem livre, não sou escravo de ninguém. No entanto, pela causa do Evangelho, me faço escravo de todos, para ganhar o maior número possível" 1Cor. 9,19.

     Falar sobre São Paulo é calar ao máximo para somente escutá-lo.

     Se lhe pedíssemos: "descreva-se a si mesmo, conte o que se passou e o transformou em um outro homem, decerto ele diria: "O Cristo morto e ressuscitado invadiu a minha vida" Gl.1,2. "Agora não quero saber de outra coisa, senão Dele" 1Cor. 2,2. "Não o conheci pessoalmente, segundo a carne, porém o conheci segundo o espírito, e por isso falo Dele como um apaixonado" Ef.1,14. "Toda a minha pregação tem a sua Cruz como fonte geradora de nova vida" GL.6,14. "É em nome Dele que trabalho para formar um Povo Novo, onde gregos e judeus, escravos e livres, homens e mulheres, de todas as línguas e culturas, convivem sem discriminação, uma vez que se tornaram novas criaturas" Ef. 2,15 + Gl.3,27.

     Se o transportamos para nossos dias e o deixarmos percorrer as cidades do nosso país, e pregar com a mesma fé e paixão, o que ele diria? O que diria aos que se encontram abatidos e desanimados, sentindo-se impotentes? - "Deus escolheu aquilo que o mundo tem em conta de fraqueza para confundir os que se fazem passar por fortes. Escolheu o que é loucura aos olhos do mundo para confundir os pretensos sábios. Pois o que parece loucura de Deus é mais sábio do que toda sabedoria humana, e o que parece fraqueza de Deus é mais forte do que toda força humana" 1Cor.1, 11ss.

     O que diria Ele aos que se apoderam do Evangelho e do nome de Deus e procuram implantar uma prática religiosa alienada da vida do povo, aliada aos poderes deste mundo, voltada para si mesma? - "A todos, sem exceção, Deus concede carismas, em vista do Bem Comum".1Cor.12,7. Cânticos e louvores, lágrimas de emoção, estranhas línguas, prodígios e milagres, beneficências.... se tudo isso não for provado por um amor sincero e real, feito de atos e não de palavras, de nada vale, é apenas como um sino que toca e depois não toca mais. Cf.1Cor.13ss.

     E o que diria Ele aos que ocupam as cúpulas do poder político e econômico, com projetos destinados a oprimir os fracos e favorecer as classes dominantes? - A estes Ele não diria nada. Prepotentes e arrogantes não tem ouvidos abertos à voz de um profeta. Eles o temem e perseguem. Ele agiria. Faria o que fez por onde passou. Reuniu os pequenos e deserdados e se pôs a constituir com eles um Povo Novo, em torno de Jesus Cristo, com uma nova consciência sobre suas relações com Deus, entre si e com o mundo em volta. Em Tessalônica fundou comunidades de cidadãos simples e pobres, entre os quais se contavam escravos, indistintamente. Uma tal mistura era uma subversão das estruturas  sociais patriarcais e hierarquizadas daqueles tempos. E ainda deu-lhes um fundamento teológico com a doutrina do Corpo Místico: formamos um só Corpo, sendo Cristo a única Cabeça, e todos os demais, membros uns dos outros, com direitos e responsabilidades equivalentes. "Nenhum pode dizer ao outro: eu sou mais importante do que você" Cf.1Cor. 12,21ss.

     Imaginemos se estas perigosas sementes fecundassem em outros lugares, e chegassem a Antioquia, Atenas, Galácia, Éfeso, Colossos, e até Roma, o abalo seria geral. E chegaram de fato. E o abalo foi geral. Logo mais o Império Romano será invadido por estas sementes. E, com os anos, o mundo conhecerá os efeitos da maior revolução da História, originada dos Evangelhos e acionada pelo maior dos Apóstolos.

     A memória de São Paulo nos estimula a uma nova esperança. Quem sabe, daqui a alguns anos, ao recordar os tempos sombrios de hoje, daremos graças a Deus porque os enfrentamos, pois deles resultou um bem maior, "nunca mais o mundo foi o mesmo". Não que Deus nos tenha mandado uma pandemia para aprendermos a conviver como seres humanos, mas Ele nos concedeu a graça de, como diz o salmo, colher na alegria o que plantamos na dor. Então, teremos motivo de repetir, como nossas, as palavras de São Paulo: "Combati o bom combate, terminei minha carreira, guardei a fé" 2 Tim.4,7.    Amém.

 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

 


CRIAR ALTERNATIVA AO CAPITALISMO


 

por Frei Betto

 

        Não há falta de recursos no mundo, há falta de justiça e, sobretudo partilha. O PIB mundial – a soma dos bens e serviços produzidos em um ano – é de R$ 85 trilhões. Dividido este valor pela população mundial, daria para assegurar, a casa família de quatro pessoas, uma renda mensal de R$ 15 mil. Portanto, fica a pergunta: se produz com que objetivo? Atender as necessidades da população ou obter lucros?

        A desigualdade mundial é gritante. Apenas 1% da população detém mais riqueza que os 99% restantes. E 26 famílias acumulam uma fortuna igual à soma das riquezas de metade da população mundial, ou seja. 3,8 bilhões de pessoas. No Brasil, segundo o economista Ladislau Dowbor, seis famílias acumulam mais riquezas que 105 milhões de brasileiros que se encontram na base da pirâmide social.

        Hoje os paraísos fiscais guardam, em seus cofres, 20 trilhões de dólares provenientes de sonegação fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro. Isso equivale a 200 vezes aos 100 bilhões de dólares que, na Conferência de Paris, em 2015, se decidiu destinar às políticas ambientais.

        É preciso, pois, avançar para a democracia econômica. Não basta a democracia política na qual, em tese, todos participam da escolha de seus governantes.  Todos deveriam usufruir dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano. E uma renda básica universal teria que ser assegurada a cada família. Todas elas merecem ter acesso gratuito aos direitos humanos básicos, como alimentação saúde e educação. Engana-se quem pensa que isso representa custos. São investimentos que melhoram significativamente o nível de desenvolvimento da sociedade e a qualidade de vida da população.

        Hoje, o desafio é aprimorar a democracia. Fazê-la avançar de meramente delegativa para a democracia participativa, na qual os cidadãos decidem o destino dos recursos do Estado através de sistemas de transparência da gestão desses recursos, o que é possibilitado pelas novas tecnologias.

        A tributação deveria recair sobre os fluxos financeiros de modo a conter o capital especulativo. O Brasil, desde 1995, isenta os mais ricos de pagarem impostos sobre lucros e dividendos, o que se constitui em uma gritante injustiça. Uma profunda reforma do sistema financeiro teria que resultar no estímulo a bancos públicos e comunitários, cooperativas de crédito e moedas virtuais.

        Seria preciso planejar o desenvolvimento local integrado, de modo que cada município possa cuidar do manejo sustentável dos recursos naturais, alcançando assim o equilíbrio econômico, social e ambiental.

        Estabelecer uma economia do conhecimento que, hoje, é o principal fator de produtividade. Toda a sociedade ter acesso aos avanços tecnológicos. É preciso rever as políticas de patentes, copyrights, royalties, para destravar o avanço. E democratizar os meios de comunicação, combater os oligopólios, tornar a sociedade bem informada.

        Segundo Joseph Stiglitz, “nas últimas quatro décadas, a doutrina prevalecente nos EUA tem sido a de que as corporações devem potencializar os valores para seus acionistas — isto é, aumentar os lucros e os preços das ações — aqui e agora, não importa o que aconteça, sem se preocupar com as consequências para os trabalhadores, clientes, fornecedores e comunidades.”

        É esta lógica denunciada por Stiglitz que gera a desigualdade social e, em consequência, tudo aquilo que significa exclusão e sofrimento para a maioria da população mundial.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros.

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terça-feira, 23 de junho de 2020

FALAR EM NOME DA VIDA


 


Por Marcelo Barros

 

A vida é o que há de mais sagrado e está acima seja dos interesses econômicos, seja mesmo dos preceitos religiosos.

 

Nestes dias, nos Estados Unidos e por todo o mundo, muitas pessoas reagem contra o racismo revelado no assassinato cruel e covarde de George Floyd. Brasileiros protestam contra o genocídio de jovens negros nas periferias das cidades. No Recife, pessoas conscientes manifestam consternação diante da morte de Miguel Otávio, criança negra de 5 anos, vítima do classismo e racismo dominante na sociedade.

Enquanto a humanidade sofre a tragédia desta pandemia, o presidente dos Estados Unidos cancela o financiamento de 400 milhões de dólares que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deveria receber. Atualmente, estão em fase de testes oito tipos de vacinas contra o Covid 19. Destas, a metade (4) vem da China. Donald Trump usa todo o seu poder para impedir que vacinas chinesas cheguem ao mercado antes de novembro. Isso seria prejudicial à sua campanha para a reeleição. Para ele, isso pesa mais do que a vida de milhares de pessoas que seriam salvas.

No meio desta realidade, o presidente da África do Sul lança um desafio à ONU: a vacina contra um vírus que é mortal e ameaça toda a  humanidade não pode ser comercializado. A vida não pode comercializada. Em vários países e inclusive no Brasil, entidades da sociedade civil  se unem em uma Campanha internacional para declarar vacinas e remédios contra as epidemias como bens comuns de toda a humanidade. Esta campanha é coordenada por uma Fundação Internacional que tenta unir a humanidade em uma Ágora dos/das Habitantes da Terra.

A consciência da dignidade e da igualdade de todos os seres humanos e a compreensão de uma cidadania universal é, de certa forma, recente. Para que tais conquistas possam ter ocorrido, foi importante uma evolução da cultura. Hegel dizia que nós não somos donos das nossas ideias. São as ideias que entram em nós e aí elas têm um poder transformador. A luta pelas ideias está na base das grandes lutas emancipatórias da sociedade.

Uma das tragédias atuais é ver que muitas vezes, as pautas mais retrógradas e claramente contrárias ao interesse dos pobres são apoiadas e defendidas pela parcela mais pobre da população. Ao se deixar formar por meios de comunicação, dominados pela elite, os pobres tendem  a ser conservadores. Nos tempos antigos, as massas defendiam a escravidão e o racismo. Hoje, muitos brasileiros apoiam governos neofascistas. Revelam-se favoráveis à pena de morte, ao uso livre de armas de fogo e à violência policial contra pobres e negros. Esta realidade só muda quando a sociedade passa a se organizar por grupos e comunidades que buscam compreender com mais profundidade a realidade social. São os movimentos sociais e as comunidades humanas de base que formam o povo mais consciente de ser povo. No mundo romano antigo, o latim fazia a distinção entre plebs (massa) e populus (povo organizado). O Concílio Vaticano II define que a Igreja é uma porção do povo de Deus (populus Dei) e não massa de fieis.

Infelizmente, na história, muitas vezes, Igrejas e religiões foram contrárias aos grandes movimentos de libertação e promoção humana. Nos séculos passados, muitos pastores e ministros cristãos defenderam a monarquia contra a república. Consideravam a superioridade masculina sobre as mulheres como vinda do próprio Deus. Eram contra a igualdade de gêneros e contra a liberdade de expressão e de religião. Atualmente, em todo o mundo, pastores e ministros ainda organizam cruzadas contra o direito das pessoas  à diversidade sexual. Acima de tudo, acham que religião deve estar sempre ligada à direita política. Nos Estados Unidos, um presidente de direita faz guerras, destrói a vida em muitos países, manda prender crianças de cinco anos de idade e as isolar de seus pais. Se este presidente for contra o aborto e a união gay contará com o apoio explícito de muitos bispos, padres católicos e pastores evangélicos. No Brasil, nestes dias, conforme órgãos da imprensa, televisões que se dizem católicas ofereceram apoio político ao presidente da República, em troca de ajuda econômica. No evangelho, falou Jesus dos escribas e fariseus: vestem roupas religiosas, fazem longas orações, enquanto exploram as viúvas pobres (Mc 12, 39- 40). Hoje, esses doutores da  religião não precisam explorar diretamente pobres e viúvas. Têm televisão para inundá-los de campanhas de arrecadação econômica. Agora, pedem ao governo para se beneficiar de verbas que vêm diretamente da exploração dos pobres. Para eles, mais vale uma boa reza do que a ética humana e social.  

Precisamos com urgência voltar ao evangelho de Jesus que afirmou: “O sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado”. As leis, mesmo as mais sagradas, devem servir à vida e à felicidade das pessoas. Ao afirmar isso, Jesus enfrenta a tensão entre pessoa e sociedade. Claramente, optou pelas pessoas. Defendeu a mulher adúltera que a religião do templo mandava apedrejar. Revelou o amor divino aos pecadores públicos que eram discriminados. Paulo escreveu: “Onde está o Espírito Divino, aí há liberdade” (2 Cor 3, 17).

 

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com