O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

COVID 19 - TRIGÉSIMA NONA REFLEXÃO - CORPO E ALMA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


Por Frei Aloísio Fragoso 

     A festa do Corpo de Cristo, que celebramos nesta quinta-feira, aponta para o mistério central da nossa Fé, a Encarnação: "O Verbo se fez carne e habitou entre nós" Jo.1,14.

     A  Divindade assumiu corpo humano no Corpo de Cristo. Até então, Deus se comunicara de mil maneiras, mas agora sua Palavra alcança o máximo de comunicação: Ele nos manda seu próprio Filho. Jesus é a Palavra viva de Deus, falando conosco face a face. O resto é Mistério.

     S. Paulo é o primeiro a querer desvendar este Mistério: "embora sendo de natureza divina, Ele assumiu nossa condição humana, fazendo-se igual a nós em tudo, menos no pecado" Cf. Fil.2,6ss. E, a seguir, mostra o quanto nos valeu esta humilhação: fomos elevados à semelhança divina: "Vós sois templos do Espírito Santo. O Espírito de Deus habita em vossos corpos" Cf. 1Cor.3,16.

     Desde então, nunca mais teve sossego a mente humana, tentando desvendar os mistérios menores contidos neste grande Mistério.

     Nos primeiros séculos do cristianismo, alguns não conseguiram admitir que este nosso frágil corpo fosse unificado com a Divindade. Criaram uma doutrina chamada monofisismo, segundo a qual o corpo de Cristo era só uma aparência, para abrigar o Ser divino em sua passagem na terra. Outros aderiram ao maniqueísmo, doutrina que discrimina corpo e espírito, sendo o primeiro fonte de todos os males e o segundo, único caminho de santificação.

     Enquanto isso, a devoção popular, distante destas especulações teológicas, apenas reza: "Corpo de Cristo, salvai-me. Sangue de Cristo, inebriai-me. Paixão de Cristo, confortai-me".

     Vamos nós também pular esta fogueira, passar da teologia para a realidade existencial. Nosso mundo atual tratou de vingar-se de teólogos e ascetas que menosprezavam o corpo humano, durante séculos. Elevaram-no ao pedestal dos deuses. O corpo virou objeto de idolatria. E não faltam fiéis adoradores. Os seus templos estão abertos dia e noite, nos espaços luminosos dos schopping-centers e nos palcos da grande mídia. Eles são servidos por uma das indústrias mais lucrativas do mundo, uma das poucas que não se abala com crises econômicas, a indústria dos cosméticos, o Mercado da Beleza.

     É curioso observar o seguinte: os modernos  pregadores do jejum estético tem alcançado muito mais êxito do que os pregadores do jejum ascética, em séculos de homilias. Pois as pessoas empenhadas em cultivar a beleza física fazem uma dieta alimentar bem mais rigorosa do que as que jejuam por motivação religiosa.

     Se os antigos maniqueistas consideravam o corpo inimigo da alma, os atuais hedonistas nem de longe estão preocupados com esta dualidade; para eles a única forma de existência é a corporal.

     Não faltam poetas para decantar os novos ídolos. Um deles escreveu: "que me perdoem as feias, mas a beleza é essencial". (Que me perdoe o poeta, mas sua estupidez é flagrante).

     Este versinho de Vinícius de Morais ajuda a esclarecer a denúncia contida nas entrelinhas desta reflexão.

     Não se trata de condenar a vaidade humana, em seus cuidados com o corpo, seja com a intenção de mantê-lo sadio ou de conservar-lhe a beleza e a atração. Toda criatura é um reflexo da beleza do Criador. Mostrar-se em sua formusura natural é um ato de adoração.

     O pecado é de outra espécie, está no reino de tensões e abominações que esta mentalidade gera, enquanto se nutre de preconceitos: de raça, de cor, de riqueza, de beleza convencional. A deificação do corpo, hoje em dia, visa a sede de lucro e a demarcação abusiva de fronteiras, separando as classes sociais.

     O que isso tem a ver com a festa do Corpo de Cristo? Tudo a ver! O Corpo real de Cristo é o corpo de cada homem e de cada mulher. Ele conheceu a beleza da transfiguração no Tabor e também a feiura da flagelação no Calvário. "Ele era alguém diante do qual fechamos os olhos para não ter que ver suas chagas", escreve o profeta Isaías. Por conseguinte, Nele está contido um protesto contra toda forma de desumanidade fundada na diferença de corpos.

     O coronavírus tem sido também um grito de alerta. Ele não faz distinção de qualquer espécie entre afortunados e empobrecidos, entre embelezados e desfigurados, ele entra com a mesma "sem cerimônia" numa mansão como num barraco. Se isso depois nos impelir a encurtar a distância entre as pessoas, estabelecida por conta de preconceitos, teremos aprendido mais uma lição na escola do sofrimento.

     Na festa litúrgica de hoje, quero agradecer ao Senhor o dom sacramental de poder pronunciar, sempre de novo, no altar do Sacrifício, suas palavras imortais: ISTO É MEU CORPO!     Amém.

FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.


Um comentário: