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quarta-feira, 30 de junho de 2021

NOVO NORMAL

 

Goretti Santos


 

Quando tudo voltar ao normal

Será preciso que sejamos donos do tempo,

Para encontrar e reencontrar…

 

Quando tudo voltar ao normal

Será preciso que a solidariedade não seja exceção, assim como a paciência e o cuidado…

 

Quando tudo voltar ao normal

Será preciso tolerância com os outros e com nós mesmos…mas também,

A intolerância deverá ser radical, com qualquer

Desrespeito a qualquer pessoa e à vida….

 

Quando tudo voltar ao normal

Será preciso que tenhamos

A real consciência que estamos juntos

E o que afeta a um, fere a todos…

 

Quando tudo voltar ao normal

Será preciso colocar em prática diária

O amor….

O Amor pela vida e não pelas coisas …

 

Quando tudo voltar ao normal

Será preciso que o lucro,

Por maior que seja,

Não seja maior que uma

Pessoa ..

 

Quando tudo voltar ao normal

É preciso que tenhamos aprendido

Com tão dolorosa lição….

Será preciso, que, também nós,

Voltemos ao Normal

Sendo apenas

Humanos,

Divinamente humanos.

 


30/06/2021

terça-feira, 29 de junho de 2021

DA PANDEMIA HUMANA À PANDEMIA DA MÃE-TERRA

 Marcelo Barros


 

A realidade atual do Brasil e do mundo já nos proporciona suficientes motivos de tristeza e preocupação. Não precisamos mais de sinais preocupantes que ainda nos angustiem mais em relação ao futuro. Qualquer pessoa minimamente informada e isenta sabe que a maioria das pessoas que negam a gravidade da pandemia e a responsabilidade do governo tentam, apenas, garantir interesses econômicos ou políticos. Alguns cientistas advertem sobre a possibilidade de novas pandemias, até mais cruéis.  

Em meio a todo esse caos, ouvimos alertas do governo em relação à crise hídrica e a que a diminuição trágica do volume de águas nas hidroelétricas do país provocará uma pane elétrica mais grave. A escassez de água já se manifesta em várias de nossas cidades e tivemos apagões no sistema elétrico do Amapá e de alguns estados do Norte e Nordeste.

Na quinta-feira, 17 de junho, ecoou no mundo inteiro um alerta vindo da ONU. Mami Mizutori, representante especial do secretário-geral na Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres (UNDRR, na sigla inglesa) alertou: “é iminente a ocorrência de uma grande seca que atingirá muitos países do mundo e esta seca pode tomar a proporção de uma verdadeira e próxima pandemia e para esta, não há vacinas que nos curem (Público, Lisboa, sexta-feira, 18/ 06/ 2021, p. 22).

De acordo com o documento da ONU, este fenômeno será ocasionado pelas alterações climáticas que provocam diminuição de chuvas. Também para isso contribui a poluição dos rios provocada pelo elevado uso de fertilizantes tóxicos, os desmatamentos e uso irresponsável da água para a indústria do agronegócio.

Nos diversos continentes, os observatórios do clima já preveem um período longo e indefinido de estiagem que provocará escassez de água e maior insegurança alimentar. Essa seca afetará o mundo inteiro, se os países não tomarem medidas urgentes para combater as mudanças climáticas e cuidarem melhor da água e dos solos. Este relatório da ONU será assunto de debates e estudos na próxima conferência mundial sobre o clima que ocorrerá em novembro deste ano, em Glasgow (Cop 26).

Em todos os continentes, ao menos há mais de cinco mil anos, populações tradicionais têm convivido com secas e períodos de escassez. No entanto, agora, esse fenômeno de seca e escassez de água é, em grande parte, provocado por atividades humanas e pelas opções políticas de governos e das empresas que dominam a economia no mundo.  

Conforme o relatório da ONU, esta crise ecológica será intensa e mais prolongada. Pode durar décadas e vai alterar o clima e as condições de vida da Terra. Isso vai se refletir mais e mais em áreas de bacias hidrográficas, mas também em regiões longínquas das mesmas. Na América do Sul, as fumaças das queimadas na Amazônia são vistas em nuvens tóxicas que descem sobre o sul do Brasil e sobre o Paraguai, Uruguai e Argentina. A destruição do bioma do Cerrado em Goiás e Mato Grosso afeta o nível de água dos rios que desaguam no Plata e na bacia amazônica.

No mundo atual, conforme a ONU, mais de um bilhão de pessoas não tem acesso garantido à água potável necessária para a vida e a saúde. Não porque falta água, mas por distribuição injusta e por um sistema social que faz com que um norte-americano disponha, em média, de 44 litros de água potável por dia. Enquanto isso, a água disponível em média para um africano não chega a um litro.

Este comunicado da ONU vem nos dizer que esta pandemia da seca e da crise da água pode ocasionar uma tragédia para a humanidade mais grave até do que a Covid. Trará o agravamento da fome e da insegurança alimentar em vários continentes e ocasionará a volta de enfermidades endêmicas, que, em outros tempos, a humanidade já tinha parecido vencer.  

Para a pandemia do Covid, temos várias vacinas que funcionam e nos dão boa margem de segurança. Para esta pandemia anunciada pela ONU, provocada, não por fenômenos naturais, mas pelo sistema capitalista depredador, a única vacina segura será a conversão ecológica. O papa Francisco a propõe em sua encíclica sobre o cuidado com a Casa Comum. A conversão ecológica supõe nos sentirmos todos guardiães das florestas, da mãe Terra e das águas, assim como das comunidades originárias que, por suas culturas, já vivem permanentemente este cuidado.

Na cultura antiga do povo bíblico, dois séculos antes de Cristo, às margens do Mar Morto, surgia um grupo religioso que tentava renovar a consciência de unidade com Deus, com a Terra e uns com os outros. Em suas regras, os essênios deixaram escrito o seguinte ensinamento: “Em verdade, te digo:  Tu és um com tua Mãe Terra. Ela está em ti e tu estás nela. Dela tu nasceste, nela tu vives e para ela voltarás novamente. Olha para o sol, teu avô e louva quem o criou. Segue as leis da terra, pois teu alento é o alento dela. Teu sangue o sangue dela. Teus ossos são os mesmos seus.  Tua carne, a sua carne. Teus olhos e ouvidos são também os seus. Quem encontra a paz na sua mãe Terra nunca morrerá. Conhece esta paz na tua mente.  Deseja esta paz em teu coração. Realiza esta paz com o teu corpo” (Evangelho dos essênios)[1].  

 

 


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[1] - citado por REGINA FITTIPALDI, Cidades em Transição, em Sophia, ano 7, n. 28, p. 26.

domingo, 27 de junho de 2021

"PAULO, LOUCURA E LUCIDEZ, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS"

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(24/06/2021)

 

    Depois de algumas semanas navegando em águas paralelas, começamos a sentir saudades do mar. Dois gênios da literatura mundial, Machado de Assis e José Saramago, ofereceram-nos seu saber e dele nos servimos para enriquecer nossos conhecimentos. Que podem nos dizer um escritor agnóstico e outro ateu confesso? Muito, sem dúvida. Não é por causa da Fé que professamos que devemos descartar a sabedoria dos que são alheios a ela. Alguns dos maiores teólogos cristãos, como Sto. Agostinho e S. Tomás de Aquino, foram buscar  na filosofia pagã de Platão e Aristóteles inspiração para fundamentar seus escritos.

 

     Despedimo-nos, pois, de Machado e Saramago com gratidão, não só por nos proporcionarem o seu saber, mas também por questionarem nossa ignorância. De lembrança, Saramago deixa-nos esta pérola: "cegueira é também isso: viver num mundo onde se tenha acabado a esperança". Não. Nossa esperança não acabou, ela está fermentando nas ruas e praças.

 

      Agora vamos ao mar, ao manancial onde bebemos da "água que jorra para a vida eterna". E vamos na companhia de alguém cuja memória festejaremos nos próximos dias. Paulo Apóstolo. A paixão dele será nossa bússola. Estivesse onde estivesse, ele estaria falando do Senhor Jesus. Era a sua paixão.

 

     Por conta desta paixão, foi provado com cegueira dos olhos, a fim de ter a visão do espírito ("Senhor, que queres que eu faça?" Cf. Atos, 9, 3ss.) Mais adiante, foi tido como louco pela autoridade constituída: "Paulo estava falando em sua defesa quando o governador Festo o interrompeu, "Estás ficando louco, Paulo. Todo este teu saber está te levando à loucura" Atos, 26,24. Aos seus suplica que o aceitem como tal: "peço que não me considerem louco ou então me suportem como louco" 2Cor.11,16.  O mais fantástico, no entanto, era a sua consciência de que o Cristianismo possuia um conteúdo de loucuras: "Os judeus pedem sinais, os gregos querem sabedoria, mas nós anunciamos o Cristo Crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gregos" 1Cor.1,22.

 

     Na verdade, ele assume  a loucura como estratégia para alcançar a plena lucidez, sem negar, no entanto, o caráter "anormal" da Fé cristã. Louco seria qualquer um que ameaçasse a unidade do Império Romano, pregando uma doutrina essencialmente subversiva em um mundo absurdamente normal. O Império é que demarcava as fronteiras da normalidade.

 

     Naquele mundo adverso, ele não teria nenhuma chance se não tratasse de consolidar sua independência. "Aprendi a ser autônomo em tudo. Sei passar privação ou viver na abundância. Para tudo e por tudo, estou iniciado, ter fartura ou passar fome, ter de sobra ou sofrer penúria" Fil.4,11-12. Nisso consistia sua autonomia: paixão e despojamento.

 

      Que nos ensinaria o apóstolo Paulo, a nós que estamos enfrentando esta dupla pandemia: a do coronavirus, de origem desconhecida, e a outra, escancaradamente visível, incomparavelmente mais letal, a do virus infiltrado no Palácio do Planalto?

 

     Ele nos daria as mesmas armas que deu às primeiras comunidades cristãs. Antes de mais nada a mística da Fé, uma busca incessante do  olhar de Deus sobre a realidade concreta, a fim de ler o momento presente numa visão histórica e transcendental. Uma  adesão incondicional  à pessoa de Jesus, como caminho e chave para construir um novo destino ("para mim viver é Cristo, morrer é lucro" Fil. 1,21) Uma atitude iconoclasta para derrubar o muro de preconceitos humanos : ("não há mais nem judeu nem grego nem livre nem escravo nem homem nem mulher, há somente novas criaturas" Cf. Gl.3,27, Ef.2,15) . Uma liberação das consciências frente à ordem constituída. Só os imperativos do amor limitam esta liberdade: ("o amor é a plenitude da lei. Livres frente à lei, somos escravos uns dos outros" Gl.5, 1-13.)

 

     Sua primeira preocupação, a cada momento, seria criar comunidades de Fé e Vida e animá-las continuamente ("sinto como que dores de parto até que o Cristo esteja formado em vós" Gl.4,19  ). Assim estaria formado o Povo de Deus em Marcha.

 

     Que saiam os teólogos do seu gabinete, os devotos do seu cenáculo, os teóricos do seu wapp. É hora de seguirmos o grande apóstolo que chegou à lucidez através da loucura.  Observemos bem a legenda escrita na sua bandeira de frente: "A vitória que vence o mundo é a nossa Fé" 1 Jo.5,4.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

sábado, 26 de junho de 2021

PARABÉNS A ELES

Prof Martinho Condini

 


Uma parcela significativa de brasileiros e brasileiras: operários, camponeses, comerciantes, industriais, banqueiros, prestadores de serviços, aposentados, religiosos, fiéis cristãos católicos e evangélicos, policiais, militares, universitários e professores; prestaram um eficiente desserviço à nação ao elegerem a “coisa”, o verme acéfalo, o negacionista e o genocida para comandar o nosso país.

 

Parabéns a eles.

 

Começo a desconfiar que o conhecimento deles sobre a história do Brasil deva ser muito rasteiro ou míope, no mínimo. Pois elegeram uma “coisa” que afirma ser admirador do Cel. Carlos Brilhante Ustra, que dispensa qualquer comentário. Poxa, no mínimo isso me causa estranheza e desconfiança.

 

Será que aqueles que elegeram a “coisa” se esqueceram de ir atrás da sua história? Por exemplo, quantos projetos de lei a “coisa” apresentou como parlamentar? Quantos desses projetos foram aprovados durante as três décadas que ele esteve como parlamentar no congresso nacional? Ou foram procurar saber quais são as matrizes ideológicas que o formaram?

 

Pois é, aqueles que elegeram a “coisa” devem estar orgulhosos e falando para seus filhos, esposa e amigos (se é que estão vivos), que esses mais de meio milhão de mortos pela pandemia são frutos do trabalho  exemplar daquela “coisa” que ajudaram a eleger.

 

Parabéns a eles mais uma vez.

   

Também devem estar satisfeitos que a corrupção foi extinta e o Brasil decola  para se tornar uma das maiores potências do planeta em 2022, não é mesmo?

 

O Brasil não merecia estar passando por uma das maiores crises de sua história, no âmbito ambiental, humanitário, sanitário, econômico, social e político. Mas graças a eles que elegeram essa “coisa”, vivemos essa tragédia. Parabéns a eles mais uma vez.

 

Todas as atitudes e pronunciamentos dessa “coisa” não me surpreendem em nada, pois era sabido que desta “coisa” não poderíamos esperar mais nada do que estamos vivenciando.

Em relação àqueles que elegeram a “coisa” o meu sentimento é uma mistura de pena, escárnio e asco. Pelo simples fato que nosso povo e nosso país não precisariam estar passando por essa situação tão sombria, medonha e tenebrosa.

 

Mesmo assim, muitos daqueles que o elegeram querem manter o “mito” no poder. Me desculpem, mas o entendimento de “mito” por parte daqueles  que o elegeram, também denominados  “gado”, é praticamente inexistente.

 

Quero acreditar que aqueles que elegeram essa “coisa” consigam perceber o quanto o nosso país retrocedeu nesses últimos três anos e reflitam diante dos fatos. As perdas propiciadas pela “coisa” são irreparáveis e jamais recuperadas. Por isso, mais uma vez parabéns a eles.

 

Mas quero acreditar que muito em breve a sociedade irá acordar desse pesadelo e  vamos  reconstruir essa nação pelas mãos de cidadãos e cidadãs que acreditam na democracia e na liberdade como princípios fundantes para a construção de uma nação soberana, digna e justa para todos. 

 

   O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com      

sexta-feira, 25 de junho de 2021

O ATUAL GOVERNO LEVOU MORTE AOS INDÍGENAS

 Leonardo Boff



É notório o desprezo que o atual presidente dedica aos indígenas. Considera-os sub-gente e claramente declarou no dia 1.de dezembro de 2018:”nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós”. E avançou mais: ”não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola”.

O mais perverso foi não aprovar a PEC que devia lhes levar água potável, os insumos básicos contra a Covid-19. É um propósito de morte. Há dias, neste mês de junho, numa manifestação pacífica de várias etnias foram recebidos em Brasília com repressão, balas de borracha e gás lacrimogênio. Há um total abandono deles a ponto de que 163 povos de diferentes etnias foram contaminados, sendo que ocorreram 1.070 mortes.

Diz-nos um conhecedor da história da Amazônia Evaristo Miranda, cujo titulo é uma revelação “Quando o Amazonas corria para o Pacífico, (Vozes 2007):”uma coisa é certa: a mais antiga e permanente presença humana no Brasil, está na Amazônia. Há cerca de 400 gerações diversos grupos humanos ocuparam, disputaram, exploraram e transformaram os territórios amazônicos e seus recursos alimentares (op.cit.p.47). Desenvolveram um grande manejo da floresta respeitando sua singularidade, mas ao mesmo tempo modificando seu habitat para estimular aqueles vegetais úteis para o uso humano. O indígena e a floresta evoluíram juntos numa profunda reciprocidade.

Disse bem o antropólogo Viveiros de Castro: ”A Amazônia que vemos hoje é a que resultou de séculos de intervenção social, assim como as sociedades que ali vivem são resultado de séculos de convivência com a Amazônia”(em Tempo e Presença 1992,p.26).

Releva ainda notar que no interior da floresta com suas centenas de etnias formou-se a partir de 1.100 antes das chegadas dos invasores portugueses um espaço imenso (quase um império) da tribo tupi-guarani. Ela ocupou territórios que iam desde os contraforte andinos, formadores do rio Amazonas até as bacias do Paraguai e do Paraná e alguns chegando até os pampas gaúchos e ao nordeste brasileiro. “Desta forma ”afirma Miranda, ”praticamente todo o Brasil florestal, foi conquistada por povos tupi-guarani (op.cit.92-93).

No Brasil pré-cabralino  havia cerca de 1.400 tribos, 60% delas na parte amazônica. Falavam línguas de 40 troncos subdivididos em 94 famílias diferentes, o que levou a antropóloga Berta Ribeiro a afirmar ”que em nenhuma parte da Terra, encontrou-se uma variedade linguística semelhante observada à América da Sul tropical”(Amazônia urgente, 1990 p.75). Hoje, infelizmente, dada à dizimação dos indígenas perpetrada no decorrer de a história e recentemente pelos garimpeiros, mineradores, extrativistas (a maioria ilegais), restaram somente 274 línguas. Isto significa: perderam-se mais de mil línguas (85%) e com elas conhecimentos ancestrais, visões de mundo e  comunicações singulares. Foi um empobrecimento irreparável para o patrimônio cultural da humanidade.

Entre as muitas tragédias que levaram ao desaparecimento de etnias inteiras, cabe lembrar uma que poucos conhecem.  Dom João VI que alguns admiram, em carta régia de 13 de maio de 1808, mandou fazer uma guerra oficial aos índios Krenak do Vale do Rio Doce, em Minas e no Espírito Santo. Aos comandantes militares ordenou “uma guerra ofensiva que não terá fim senão quando tiverdes a felicidade de vos assenhorear de suas habitações e de fazê-los sentir a superioridade das minhas armas..até a total redução de uma semelhante e atroz raça antropófagas”(L.Boff,O casamento do céu com a terra,2014,p.140).

Por que lembramos isso tudo? É  para dar-nos conta destas ações exterminadoras que continuam ainda hoje, resistir, criticar e combater as criminosas políticas do atual governo genocida de indígenas e do próprio povo brasileiro, deixando morrer mais de 5008 mil pessoas.

Os principais responsáveis e seus cúmplices dificilmente escaparão de terem que enfrentar o Tribunal Internacional de Crimes contra a Humanidade em Haia. O clamor não é só brasileiro, mas internacional. Para tais crimes não há limite de tempo. De onde estiverem e em qualquer tempo não escaparão da severidade dos ju, zelosos, como já mostraram, da dignidade sagrada dos seres humanos.

Estes povos originários são nossos mestres e doutores no que se refere à relação com a natureza da qual se sentem parte e os grandes cuidadores. Agora que com a Covid-19 andamos perplexos e perdidos sem saber como seguir adiante, devemos consultá-los. Como diz uma liderança indígena, sobrevivente da guerra criminosa de Dom João VI, Ailton Krenak, eles nos ajudarão a afastar ou protelar o fim do mundo.

Se seguirmos a rota de destruição nosso habitat, a Casa Comum, explorando-a ilimitadamente e sem qualquer escrúpulo, esse destino poderá ser a tragédia da espécie humana. Mas temos esperança que fez os indígenas sobreviverem até os dias de hoje. Também nós esperamos sobreviver, transformados pelas lições que a Mãe Terra no vem dando.

Leonardo Boff escreveu “O casamento do céu com a terra: contos dos povos indígenas do Brasil, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2014; O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social, Vozes 2020.

 

quinta-feira, 24 de junho de 2021

ÓDIO E AMOR NAS REDES DIGITAIS

 Frei Betto


 

 

        “Diga-me em que nicho da internet se encontra e direi se vou odiá-lo.” Se alguém frequenta uma tribo de Whatsapp ou Twitter de defesa dos direitos humanos e conecta outro de bolsonaristas, será inevitavelmente agredido, ofendido, ou sumariamente excluído dos contatos. E vice-versa.

        Como afirma o doutor em Ciências da Comunicação, Moisés Sbardelotto, “não basta gostar ou desgostar de algo: é preciso também desgostar daqueles que gostam daquilo de que não gosto. A raiva e o rancor se digitalizam e permeiam sites e redes sociais digitais mediante expressões de intolerância, indiferença, desinformação, negacionismo, difamação, discriminação, preconceito, xenofobia. O ódio, assim, ganha forma de bits e pixels, principalmente pela ação dos chamados haters, os odiadores, aqueles que amam odiar.”

        Tal situação faz parte de um fenômeno mais amplo e recente caracterizado pela difusão de desinformação e má informação, como as chamadas fake news. De acordo com Claire Wardle e Hossein  Derakhshan, essa “poluição de informações em escala global” gera verdadeira “desordem informacional.”

        As redes digitais me fazem lembrar o Coliseu, a arena dos gladiadores romanos. Como meros espectadores confortavelmente instalados em nossas casas, assistimos aos confrontos pela telinha do celular e, com frequência, repassamos a terceiros. Isso reforça os atos de violência simbólica, intolerância e fake news, o que acirra os ânimos e se contradiz ao adjetivar as redes de ‘sociais’, já que, nesse caso, não favorecem a sociabilidade, e sim a hostilidade. É o que o papa Francisco qualifica de “excomunicação”, a comunicação que exclui o outro.

        Então não devemos denunciar o político que desrespeita as regras do jogo democrático, profere mentiras e viola os direitos humanos?  Devemos sim! Mas respaldados por argumentos consistentes e provas inquestionáveis.

        A etiologia do ódio demonstra que ele decorre de frustrações reprimidas que descontamos em outra pessoa. Para Freud, “o eu odeia, abomina e persegue, com intenção de destruir todos os objetos que constituem uma fonte de sensação desagradável para ele, sem levar em conta que significam uma frustração […] da satisfação das necessidades de autopreservação” (Pulsão e seus destinos, 1980[1915], p.160).

        O hater (= aquele que odeia) sente prazer mórbido de descontruir o outro. Fora das redes digitais, uma pessoa que odeia a outra guarda essa amargura no coração e na mente, sem ter como atingir o alvo de seu ódio. É o veneno que ela ingere esperando que a outra morra...

        No caso do ódio digital, a amargura encontra vazão imediata e condições de rapidamente atingir o alvo e compartilhar a ofensa com amplo leque de pessoas. O ódio digital fica armazenado nas redes e pode ser reativado a qualquer momento. Assim, o ódio pessoal se transforma em ódio social e global. E estabelece uma “confraria universal do ódio”, sem que haja a contrapartida capaz de fazer refluir essa onda deplorável – a educação para o amor.

        Como afirma Sbardelotto, “a internet, assim, torna-se campo fértil para o crescimento de uma ‘cultura do descarte’ digital.” Ou como assinala o papa Francisco, tais atitudes visam a “destroçar a figura do outro, num desregramento tal que, se ocorresse no contato pessoal, acabaríamos todos por nos destruir uns aos outros” (Fratelli Tutti, 44).

        O ódio digital é covarde. O emissor alardeia ofensas que seria incapaz de proferir cara a cara. E muitas vezes nem sequer se identifica. Assemelha-se àquelas pessoas que, na Idade Média, se deliciavam ao assistir a Inquisição queimar, em praça pública, supostos hereges.

        A vida ensina que pessoas impregnadas de ódio são infelizes e trazem infelicidade a quem as cercam. Tentam encobrir sua fragilidade e insegurança sob a atitude de prepotência, arrogância, dono ou dona da verdade, ainda que não haja nenhuma consistência no que afirmam.

        O desafio, portanto, é fazer das redes digitais uma escola de amorosidade. Muitos nichos reúnem tribos que se identificam por comungarem a mesma fé, a mesma proposta política, os mesmos objetivos.

        Zigmunt Bauman aponta como uma das causas da “modernidade líquida” a falta de modelos a serem seguidos. Fui educado no altruísmo graças à educação religiosa que me levou a admirar santos e santas dedicados a promover o bem do próximo. Valores como solidariedade, fome de justiça, utopia de um mundo melhor, me vieram da educação politica, que me ensinou a admirar Ajuricaba, Tiradentes, Zumbi dos Palmares, Prestes, Che Guevara, Fidel, Rosa Luxemburgo, Marighella, Nelson Mandela, Martin Luther King, Gandhi e Ho Chi Minh, entre outros.

        A quem nossas crianças e jovens aprendem a admirar? Quais os modelos que abraçam? Muitos se espelham em ídolos de TV, futebol, música, show business. São boas pessoas em geral, mas não majoritariamente exemplos de altruísmo e idealismo. A maioria espelha os “valores” de uma sociedade hedonista e consumista: fama, poder, riqueza e beleza. O que tende a exacerbar o ego, despertar ambições desmedidas e, em consequência, frustrações que suscitam baixa autoestima e inveja impregnada de ódio. Como bem definiu Tomás de Aquino, “a inveja é a tristeza de não possuir o bem alheio”.

        Esse mundo de perda de referências éticas e dissolução de valores, no qual tudo é fluido e mutável, é o que Bauman qualifica de “modernidade líquida”. Era em que as relações humanas são voláteis, intangíveis, inconsistentes. Época da globocolonização, que nos impõe o consumo frenético, a competitividade desenfreada, a repugnância (em forma de racismo e preconceito) ao diferente.

        A psicologia ensina que pessoas muito inseguras tendem a ser agressivas, a manter relações tóxicas. Ficam ansiosas em transitar nas redes digitais em busca da certeza de que outras pessoas são mais infelizes do que elas ou merecem ser depreciadas. Essa insegurança decorre do medo. Medo de serem rejeitadas, de empobrecer, de não serem devidamente reconhecidas, amadas, admiradas.

        A conexão universal com um número infinito de pessoas leva muitos a buscarem se espelhar no próximo, comparar-se aos demais, perseguir a certeza de que suas vidas valem a pena ser vividas. Mas esse espelhamento precisa ter referências positivas em pessoas e atitudes solidárias, idealistas, capazes de fazer de suas vidas um bem e um dom para que outros tenham vida. E isso só se obtém em três escolas: a da arte, a da espiritualidade e a da política, quando abraçadas com espírito crítico.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

 

 

 

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

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quarta-feira, 23 de junho de 2021

FIM DA CEGUEIRA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


  FREI ALOÍSIO FRAGOSO

(21/06/2021)

 

     Em atenção ao vivo interesse que estas Reflexões despertaram pela obra e o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira", atrevo-me a fazer uma breve consideração. Este não é um livro de leitura fácil e prazeirosa, bem ao contrário. Ele mesmo, Saramago, adverte, em uma de suas entrevistas: "este é um livro com o qual eu quero que o leitor sofra tanto quanto eu sofri ao escrevê-lo.(....) Nele se descreve uma longa tortura. Através da escrita tentei dizer que não somos bons e que é preciso coragem para reconhecer isto".

 

     Como leitor ávido de suas idéias, reconheço, no entanto, que não contaria com o seu acordo em algumas interpretações. No mínimo ele me diria que extrapolei suas intenções e, em alguns casos, misturei alhos com bugalhos. Nossos pontos de partida se conflitam, eu com minha visão cristã de todas as coisas e ele, ateu e anti-religioso. (Vejam uma prova disso: após escaparem do manicômio, os ex-cegos entram numa igreja e encontram as imagens todas de olhos vendados; não está aí uma sutil acusação de descaso divino e omissão da Igreja?)

 

     Malgrado seu ateismo, vejo uma profunda convergência entre palavras postas na boca de um de seus personagens: "porque cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem",

e outras tantas palavras ditas por Jesus no Evangelho de João, 9,39: "vim ao mundo para que os que não veem vejam e os que veem, tornem-se cegos".

     A imagem que ele usa da "cegueira branca", na qual os cegos enxergam "um mar de leite" me parece uma transfiguração de outra passagem bíblica. Durante séculos os hebreus viveram como escravos do Faraó do Egito, na cegueira da resignação, até aparecer  Moisés, abrindo-lhes os olhos com a visão da "Terra Prometida", a terra "onde corre leite e mel". Fica-me a sensação de que, em ambos os casos, os cegos não perderam de todo a miragem da utopia, esse mar de leite   e mel.

     Se ele me desse a chance de fazer-lhe perguntas, perguntaria sobre os motivos que o levaram a escolher a figura da mulher como  protagonista, único personagem lúcido, preparado para cumprir uma função libertadora. E lhe perguntaria ainda por que o primeiro a cegar perde a visão no momento em que se encontra em meio ao trânsito, diante do semáforo? Será uma metáfora da eterna rotina da grande cidade? O cidadão-robô a transitar sempre pelos mesmos caminhos, para chegar aos mesmos lugares?  De quebra e por mera curiosidade, indagaria: por que ao chefe dos "cegos malvados" foi dado o apelido de "homem da pistola"? Foi alguma premonição?

     Finalmente chegamos ao fim desta novela. É claro que uma obra desta envergadura, que nos convoca a desvendar elementos transcendentais da nossa condição humana, não poderia ter um final feliz, nem um final-ponto-final. Todos ficamos um tanto decepcionados quando o autor de uma novela transpõe para nós a responsabilidade de encontrar seu final, construindo-o. Assim o faz Saramago.

     No exato momento em que a "mulher do médico", frente à degradação humana, sente-se impotente para combater os "cegos malvados", entra em cena "a mulher do isqueiro". Esta arrisca sua vida ateando fogo na barricada dos mesmos "cegos malvados". Com isso facilita a fuga dos outros cegos. Estes voltam para a grande cidade e vão recuperando a visão aos poucos, ao tempo em que descobrem que a população inteira do país também cegou. Eles passam a procurar suas próprias formas de sobreviver. "A mulher do médico reassume a liderança e aponta o caminho: "Se nos separarmos, seremos destroçados. Continuemos a viver juntos. Organizar-se já é começar a ter olhos".

     Ao longe vislumbro a figura de Jesus aproximando-se para dizer-lhes: "se tiverdes fé fareis as coisas que fiz e farão outras ainda maiores" Jo. 14,12.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

terça-feira, 22 de junho de 2021

TEMPO NOVO PARA OS POVOS ORIGINÁRIOS

 

Marcelo Barros


 

Nesta semana, a partir de 21 de junho, dia do solstício do inverno no hemisfério sul, vários povos originários celebram festas que correspondem ao que tradicionalmente, no hemisfério norte, se costumou denominar o ano novo. Em muitos recantos da cordilheira, povos andinos celebram o Inti- Raimi, festa do renascimento do Sol, rei da vida. Esses festejos nos recordam a antiga festa romana de 25 de dezembro que deu origem à atual celebração cristã do Natal.

No sul do Brasil, os Guarani Mbyá denominam essa época de junho como Ara Pyaú (Tempo Novo). Os fortes ventos (yvytu) anunciam o tempo novo, marcado pela cerimônia da erva-mate, o ka’a nheemongaraí, cujas projeções sobre o ano-novo são interpretadas pelo pajé. Em outras regiões do Brasil, é a festa do milho. 

Essas celebrações indígenas, seja nos Andes, seja no Brasil, tiveram de se vestir de festas cristãs em honra de São João para serem aceitas. Desde as últimas décadas, a sociedade dominante investe nessas festas populares para explorar o turismo. Seja como for, os povos originários sempre têm sabido usar sua capacidade de organização para, nas brincadeiras e festas juninas, ensaiar novo estilo  de sociedade.  

Nestes dias, os mesmos quétchuas que desfilam de roupas longas e coloridas na Plaza Mayor de Cuzco  acabam de eleger Pedro Castillo, simples professor da roça, como presidente da República do Peru. Apesar da pandemia, em um imenso cortejo formado por pessoas de diversas etnias, os índios  descem as montanhas e vão a pé até Lima para manifestar aos peruanos da cidade grande que eles também são cidadãos. Representam a parte maior do país e querem ver respeitado o seu voto.

Na Colômbia e no Chile, comunidades tradicionais se manifestam exigindo mudanças e pedindo justiça. No Brasil, há poucos dias, associações indígenas criaram o Parlaíndio, um Parlamento dos Povos Indígenas. Esse organismo representará as vozes e interesses de quase um milhão de pessoas no Brasil. São povos que resistem e precisam de ver reconhecidos seus direitos coletivos. Querem viver suas culturas originárias, em seus territórios sagrados e junto com os Espíritos e Encantados, cuidar da natureza.

É urgente essa mobilização dos povos originários e a ela devemos nos juntar, todas as pessoas que amam a justiça e a paz. Como já há três anos, em Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, afirmou o papa Francisco: “Os povos originários nunca foram tão ameaçados como estão sendo agora, em sua existência física e em suas culturas”.

As notícias revelam que na Amazônia e no Pantanal do Mato Grosso do Sul, a destruição da natureza tem se dado de modo gigantesco. Em todo o Brasil, companhias mineradoras como a Vale têm assassinado a vida de rios inteiros, transformados em leitos de contaminação e morte. As primeiras vítimas desse ecocídio são os povos originários.

De maio a junho somente no Oeste do Paraná, ocorreram quatro suicídios de adolescentes e jovens Avá Guarani, todos menores de  23 anos e todos ligados a falta de perspectivas de vida em sua cultura.

Neste ano, a pandemia ainda não permitirá que no Brasil e nos Andes as festas de um novo tempo possam ser vividas do modo como desejaríamos. No entanto, elas podem ser ensaiadas na educação da juventude e na prioridade que devemos dar a superar a propaganda anti-ética dos dominadores. É preciso que as manifestações populares ganhem sempre mais força nova. 

Assim, mesmo no cuidado sanitário do distanciamento físico e do uso de máscaras, grupos e comunidades populares sinalizam uma realidade nova que se aproxima ao que os evangelhos chamam de reinado de Deus. Do seu modo e em sua linguagem lúdica, traduzem para toda a humanidade uma palavra que os evangelhos atribuem a São João Batista: “Mudem de vida porque a realização do projeto de Deus no mundo está próximo!” (Mt 3, 2).


  Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019Email: irmarcelobarros@uol.com.br 

 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

O CORAÇÃO, A RAZÃO E A PESSOA

        Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

            O coração na história da humanidade não é concebido apenas como o músculo que bombeia o sangue através do corpo em movimentos sistólicos e diastólicos incessantes.  Não é apenas a sede das emoções e sentimentos tão utilizados pela literatura romântica para expressar aquilo que faz o coração dos apaixonados bater em diversos e variados ritmos e tons.  

            A simbologia do coração nas diversas religiões é muito rica. Demonstra que aquilo que é nosso centro vital, situado em plena corporeidade nossa e quando sofre qualquer fragilização põe em risco nossa vida, pode carregar um significado de profunda riqueza espiritual, que vai além do biológico ou mesmo das diversas paixões. 

            Na mitologia greco-romana, base da cultura ocidental, o coração é símbolo do nascimento, do princípio da vida. Isso se deve a Zeus, o deus mais poderoso do Olimpo, que engole o coração ainda palpitante de Zagreu, gerando daí seu filho Dionísio. Também no Antigo Egito, o Salão do Juízo correspondia ao local onde eram pesados os corações dos mortos. E o órgão que bombeia a vida para toda pessoa era visto e considerado como sede da sabedoria e da inteligência, sendo associado à verdade e à justiça. 

Também nas religiões orientais a simbologia do coração se faz presente. Na Índia, se concebe que por assegurar a circulação do sangue e ser o centro vital do ser humano, o coração é o símbolo da morada de Brama, a divindade suprema do hinduísmo. 

 No Islã, o coração é considerado o trono de Deus, a sede e morada da divindade. E quando aparece um coração alado, aí se reconhece o símbolo do movimento islâmico Sufi, que acredita que o coração se situa no movimento e no espaço entre o espírito e a matéria, entre o corpo e a alma. Simboliza o amor de Deus, o centro espiritual e emocional dos seres.

No Cristianismo, o coração é entendido como centro ou núcleo do ser e dele se originam a oração, ou seja, o impulso da fé que leva ao diálogo amoroso com Deus e também as ações e condutas morais. O coração é a morada de Deus, onde habita seu Espírito que é o Único que pode sondá-lo e conhecê-lo. É o lugar da decisão, no mais profundo das tendências humanas psíquicas.  É a sede da verdade, onde o ser humano é chamado a escolher a vida ou a morte. 

Como sede da personalidade moral, o coração é o lugar de onde surgem os bons e os maus impulsos, que deverão ser discernidos para tomar as decisões adequadas a uma vida plena e feliz. Porém, o ser humano, criado por Deus, não é constituído apenas de coração.  Também a razão pela qual reflete, pondera, avalia, é elemento fundamental e constitutivo de seu ser e de sua identidade. 

O grande pensador francês Blaise Pascal refletiu muito sobre o coração.  Ainda que dotado de uma inteligência brilhante, atraída pelo pensar e pela atividade intelectual, valorizando portanto muito a razão,  Pascal desconfia da razão, apalpando e denunciando frequente e fortemente seus limites. Ainda que defina o ser humano e sua dignidade em conexão com a razão e o pensar, Pascal entende que o conhecimento da verdade não pode ser atingido apenas pela razão que, para ele, anda junto com a fé e reconhece o momento em que deve submeter-se. Apesar de afirmar que a substância do ser humano é feita de uma aspiração e há no fundo de cada pessoa uma espécie de presença divina que ultrapassa a natureza humana - precisamente o contato com o infinito -  afirma igualmente que se Deus existe é incompreensível pela razão humana. É neste ponto que ele afirma o conhecimento pelo coração. O coração, portanto, segundo o filósofo francês, não é apenas sentimentalidade, mas sim o que constitui o ser humano mais substancialmente, é sua natureza mais profunda.  Ali é onde pode haver uma comunicação por contato com Deus.

A frase mais conhecida de Pascal é: “ O coração tem razões que a própria razão desconhece.” Assim, opondo-se ao racionalismo e ao fideísmo, Pascal vai situar ao mesmo tempo a importância do coração na concepção de ser humano e seus limites.  Pois, se reconhece a primordialidade do coração para um equilíbrio entre o corpo e o espírito, Pascal também admite que excluir a razão é um excesso não admissível, e tão reprovável quanto magnificar-lhe excessivamente a importância. 

Dois eventos nos chamam a atenção neste mês de junho.  O primeiro é o Dia dos Namorados, quando os corações apaixonados se declararão por enésima vez um ao outro e trocarão presentes e afagos.  Outra é a ênfase que a espiritualidade cristã traz neste mês em torno do coração de Jesus. Aos apaixonados de ontem, de hoje e de sempre o coração de Jesus, que pulsou e bateu no peito do galileu que fez a história girar sobre seus gonzos mostra que só se conhece bem - e portanto só se ama verdadeiramente -  com o coração.  Porém, é inadmissível que um verdadeiro amor seja feito apenas de sentimentos que podem ser superficiais se não passam pela reflexão e a ponderação da razão. 

 

 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Ascese: da tradição platônica à contemporaneidade” (Editora Vozes), entre outros livros.

  

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