O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

FIM DA CEGUEIRA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


  FREI ALOÍSIO FRAGOSO

(21/06/2021)

 

     Em atenção ao vivo interesse que estas Reflexões despertaram pela obra e o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira", atrevo-me a fazer uma breve consideração. Este não é um livro de leitura fácil e prazeirosa, bem ao contrário. Ele mesmo, Saramago, adverte, em uma de suas entrevistas: "este é um livro com o qual eu quero que o leitor sofra tanto quanto eu sofri ao escrevê-lo.(....) Nele se descreve uma longa tortura. Através da escrita tentei dizer que não somos bons e que é preciso coragem para reconhecer isto".

 

     Como leitor ávido de suas idéias, reconheço, no entanto, que não contaria com o seu acordo em algumas interpretações. No mínimo ele me diria que extrapolei suas intenções e, em alguns casos, misturei alhos com bugalhos. Nossos pontos de partida se conflitam, eu com minha visão cristã de todas as coisas e ele, ateu e anti-religioso. (Vejam uma prova disso: após escaparem do manicômio, os ex-cegos entram numa igreja e encontram as imagens todas de olhos vendados; não está aí uma sutil acusação de descaso divino e omissão da Igreja?)

 

     Malgrado seu ateismo, vejo uma profunda convergência entre palavras postas na boca de um de seus personagens: "porque cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem",

e outras tantas palavras ditas por Jesus no Evangelho de João, 9,39: "vim ao mundo para que os que não veem vejam e os que veem, tornem-se cegos".

     A imagem que ele usa da "cegueira branca", na qual os cegos enxergam "um mar de leite" me parece uma transfiguração de outra passagem bíblica. Durante séculos os hebreus viveram como escravos do Faraó do Egito, na cegueira da resignação, até aparecer  Moisés, abrindo-lhes os olhos com a visão da "Terra Prometida", a terra "onde corre leite e mel". Fica-me a sensação de que, em ambos os casos, os cegos não perderam de todo a miragem da utopia, esse mar de leite   e mel.

     Se ele me desse a chance de fazer-lhe perguntas, perguntaria sobre os motivos que o levaram a escolher a figura da mulher como  protagonista, único personagem lúcido, preparado para cumprir uma função libertadora. E lhe perguntaria ainda por que o primeiro a cegar perde a visão no momento em que se encontra em meio ao trânsito, diante do semáforo? Será uma metáfora da eterna rotina da grande cidade? O cidadão-robô a transitar sempre pelos mesmos caminhos, para chegar aos mesmos lugares?  De quebra e por mera curiosidade, indagaria: por que ao chefe dos "cegos malvados" foi dado o apelido de "homem da pistola"? Foi alguma premonição?

     Finalmente chegamos ao fim desta novela. É claro que uma obra desta envergadura, que nos convoca a desvendar elementos transcendentais da nossa condição humana, não poderia ter um final feliz, nem um final-ponto-final. Todos ficamos um tanto decepcionados quando o autor de uma novela transpõe para nós a responsabilidade de encontrar seu final, construindo-o. Assim o faz Saramago.

     No exato momento em que a "mulher do médico", frente à degradação humana, sente-se impotente para combater os "cegos malvados", entra em cena "a mulher do isqueiro". Esta arrisca sua vida ateando fogo na barricada dos mesmos "cegos malvados". Com isso facilita a fuga dos outros cegos. Estes voltam para a grande cidade e vão recuperando a visão aos poucos, ao tempo em que descobrem que a população inteira do país também cegou. Eles passam a procurar suas próprias formas de sobreviver. "A mulher do médico reassume a liderança e aponta o caminho: "Se nos separarmos, seremos destroçados. Continuemos a viver juntos. Organizar-se já é começar a ter olhos".

     Ao longe vislumbro a figura de Jesus aproximando-se para dizer-lhes: "se tiverdes fé fareis as coisas que fiz e farão outras ainda maiores" Jo. 14,12.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

Nenhum comentário:

Postar um comentário