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segunda-feira, 14 de junho de 2021

"CEGUEIRA (2), EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

  FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(13/05/06)

 

    Há, em nosso idioma, um ditado que diz "de médico e louco todo mundo tem um pouco". Prefiro uma outra versão, a que acrescenta um terceiro personagem, o poeta, pois a poesia fica bem em tudo quanto é lugar e não há quem não guarde n'alma um ninho de poesia. "De médico, poeta e louco...."

     Senti o realismo deste saber popular ao ler comentários de leitores e leitoras sobre o tema de nossas últimas Reflexões, a loucura. Não por mérito do que escrevi, e sim pela genialidade de Machado de Assis e José Saramago, dos quais longamente me servi para escrever.

    Dos comentários lidos  colhi estranhas impressões. Este pouco de loucura escondida em nossa natureza parece algo maior do que uma simples figura proverbial, algo sinônimo de segredo, enigma, reino encantado, que a gente sonha desvendar. Um espaço secreto onde a loucura conserva uma parte de razão e beleza de que carecemos. Fico com estas sensações em suspenso porque não me atrevo a entrar em "casa mal-assombrada". Mas deixo uma provocação: será que não somos todos infectados por um virus mais perigoso do que o covid: o excesso de normalidade?

    Gostaria, no entanto, de levar adiante as impressões que me causou a obra "Ensaios Sobre a Cegueira", do português José Saramago.

 

    Muitos acontecimentos públicos que se desenrolam atualmente em nosso país assemelham-se a uma reprodução  teatral desta obra. Saramago nos convida a entrar no complexo mundo da fantasia para avaliar a nossa existência real.

     Em meio à cegueira que acomete todos os habitantes da cidade, obrigando-os a se internarem em um manicômio (ou se transmutarem em um manicômio), uma única pessoa escapa, permanece sã, com a visão integral; é "a mulher do médico". Contudo, este seu privilégio não lhe será motivo de contentamento. Ela estará condenada à dor de  ver, de enxergar a trrível realidade produzida pela cegueira geral.

 

     Como não associar este personagem a muitos companheiros e companheiras, perambulantes em meio a esta catástrofe política, social e pandêmica do país, tendo de encará-la com lucidez, em suas origens e sequelas!?  Conto-me entre estas pessoas. Não maldigo o fato de ser lúcido (ou de estar lúcido), pois, graças ao dom da Fé, posso associar lucidez e transcendência. Somos parte de um todo que procede do Absoluto e retorna ao Absoluto. Imagino como deve ser insuportável a lucidez solitária. Minha fé não me isenta do temor de que podemos perder o equilíbrio, podemos perder a saúde, se nos arriscarmos na luta, porém, se não corrermos este risco, podemos perder-nos a nós mesmos para sempre. Nesta Fé encontramos o antídoto contra o desespero e a solidão.

       "A mulher do médico" experimenta o impasse de poder ver em meio a cegos, percebe o perigo e prefere esconder sua verdade. Só a revela ao marido, cego também. O sigilo a protege, a partilha com o marido a liberta da solidão. Semelhantemente, a legenda "ninguém solta a mão de ninguém" adquire uma dimensão mística de libertação.

     É significativo o detalhe do autor não dar nomes próprios a seus personagens. Eles são identificados pela profissão ou alguma característica individual. A cegueira moral despersolaniza. Os cegos moralmente não precisam de nomes, são reconhecidos pelo coletivo (gado, galera, boiada), pelos gritos (mito!), pelas máscaras policromadas. A cegueira é uma metáfora do colapso visual dos que não querem compreender ou não querem confessar sua incapacidade de compreender. Ela impera no reino da mediocridade.

     Saramago chama-a "cegueira branca", facilmente identificável como egoismo, medo, conformismo, insensibilidade. "Ainda está pra nascer o ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoismo, bem mais dura do que a outra que, por qualquer coisa, sangra", escreve. "A mulher do médico", forçada a testemunhar a degradação humana, sente-se incapacitada. "Já éramos cegos no momento em que cegamos. O medo nos fará continuar cegos", pensa ela, em lugar dos demais.

     Ela vencerá o medo? O que sucederá neste manicômio? Seria trair a intenção de Saramago concluir a reflexão a esta altura dos fatos. Precisamos ir adiante. Enquanto isso, meditemos sobre  aquela passagem do Evangelho, quando os doutores da lei reclamam de Jesus por compará-los aos cegos.

"Se fosseis cegos de verdade, respondeu Jesus, seríeis menos culpados, mas porque dizeis que podeis ver, vosso pecado é bem maior" Cf. Jo.9, 41.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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