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sábado, 5 de junho de 2021

A "CASA VERDE", EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO

(04/05/2021)


 

     O grande romancista Machado de Assis, para muitos entendidos o maior da nossa literatura nacional, escreveu um conto-novela intitulado "O Alienista". No tempo em que o li, pela primeira vez, não tinha alcançado uma visão crítica da sociedade, nem de mim mesmo, suficiente para entendê-lo em conexão com a realidade. Relendo-o, muitos anos depois, me encantei com a coincidência de redescobrir um destrinchador de almas, numa hora em que estava carente de lucidez.

 

     Dr. Simão Bacamarte, médico respeitado e aplaudido em terras de Brasil, Espanha e Portugal, casado com D. Evarista, escolhida para a função de gerar filhos robustos e inteligentes, resolve dedicar-se, por inteiro, ao estudo da mente humana. Consegue autorização para abrir uma clínica, com o intuito de avaliar cientificamente a loucura das pessoas. A nova clínica se chamará Casa Verde.

 

     Dr. Bacamarte começa então a selecionar os moradores de Itaguaí (cidade onde se estabeleceu), necessitados de internamento. Os que eram realmente loucos foram os primeiros, e isso teve a aprovação geral dos itaguaienses. Mas, um belo dia, ele achou por bem internar o Costa, um moço que herdara uma fortuna, mas perdera tudo, emprestando dinheiro. As coisas começaram a desandar. Nem D.Evarista escapou. Após uma noite de insônia, por não conseguir escolher uma roupa para uma festa do dia seguinte, ela foi avaliada como internável, e internada.

 

     Foi então que se deu um levante popular, a "Revolta dos Canjicas", liderada pelo barbeiro Porfírio, o qual atendia pela a alcunha de Canjica. A revolta começou a enfraquecer a partir do momento em que o Dr. Bacamarte resolveu não cobrar mais pelos internamentos; grande parte dos moradores passou a vê-lo como generoso, avesso à corrupção. E fracassou de vez quando Porfírio, que tinha pretensões políticas, descobriu que mais proveitoso para sua ascensão ao poder era aliar-se ao médico. Então ergueu uma nova legenda: "Unamo-nos e o povo saberá obedecer".

 

     Os revolucionários foram todos presos, a começar pelo vereador Galvão; este apresentara na Câmara um projeto de lei, que impedia o internamento de vereadores. Havia também o botânico Crispim Soares, mal visto por curvar-se a todas as vontades do Dr. Bacamarte, com o único objetivo de levar vantagem, tirar proveito.

 

    Àquela altura, com 75% dos moradores internados, o Dr. Bacamarte resolveu refazer a sua teoria, mudando seus critérios. Se uma maioria tão ampla não seguia um padrão e apresentava desvio de personalidade, louco mesmo era quem tinha comportamento regular e firmeza de caráter. Não viu outra saída senão internar a minoria.

 

     Uma bela manhã, o Dr. Bacamarte acordou com uma idéia insofismável de que, em Itaguaí, havia um único cidadão sem qualquer desviu de caráter: ele mesmo. Internou-se na Casa Verde e ali permaneceu sozinho. Morreu 17 meses depois.

 

     Um gênio ao nível de Machado de Assis não escreveria um conto deste sem segundas e profundíssimas intenções. Com certeza  Casa Verde não era simplesmente a clausura dos loucos, mas sim um reflexo, um retrato da sociedade brasileira, como ele  a via no século XIX, com suas relações de futilidades, fingimentos e aparências, nutrindo a sociedade.  Com seus rituais de bajulação, subserviência  clientelismo,  sustentando os escalões do poder. Era também uma crítica mordaz à ciência, com sua pretensão de ter resposta e cura para todos os males, em busca do progresso. Era enfin um deboche da loucura como paródia a uma nova ordem desejada, que em nada modificava a ordem estabelecida.

 

     Enfim, Machado de Assis escreve uma alegoria sobre a natureza humana, válida para todos os tempos. Daí o seguinte convite:  a quem apresentar a melhor interpretação atualizada desta novela, se oferece uma viagem à Itaguaí, com todas as despesas pagas, onde se terá oportunidade de visitar a mansão reformada da Casa Verde, e visitar o "Memorial Simão Bacamarte", o alienista que assumiu a (a)ventura de operar uma mudança radical, descobrir a cura universal para a loucura, mantendo a fé inabalável no primado da razão, até descobrir, finalmente, que ele mesmo era o único alienado da História.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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