O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

domingo, 27 de junho de 2021

"PAULO, LOUCURA E LUCIDEZ, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS"

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(24/06/2021)

 

    Depois de algumas semanas navegando em águas paralelas, começamos a sentir saudades do mar. Dois gênios da literatura mundial, Machado de Assis e José Saramago, ofereceram-nos seu saber e dele nos servimos para enriquecer nossos conhecimentos. Que podem nos dizer um escritor agnóstico e outro ateu confesso? Muito, sem dúvida. Não é por causa da Fé que professamos que devemos descartar a sabedoria dos que são alheios a ela. Alguns dos maiores teólogos cristãos, como Sto. Agostinho e S. Tomás de Aquino, foram buscar  na filosofia pagã de Platão e Aristóteles inspiração para fundamentar seus escritos.

 

     Despedimo-nos, pois, de Machado e Saramago com gratidão, não só por nos proporcionarem o seu saber, mas também por questionarem nossa ignorância. De lembrança, Saramago deixa-nos esta pérola: "cegueira é também isso: viver num mundo onde se tenha acabado a esperança". Não. Nossa esperança não acabou, ela está fermentando nas ruas e praças.

 

      Agora vamos ao mar, ao manancial onde bebemos da "água que jorra para a vida eterna". E vamos na companhia de alguém cuja memória festejaremos nos próximos dias. Paulo Apóstolo. A paixão dele será nossa bússola. Estivesse onde estivesse, ele estaria falando do Senhor Jesus. Era a sua paixão.

 

     Por conta desta paixão, foi provado com cegueira dos olhos, a fim de ter a visão do espírito ("Senhor, que queres que eu faça?" Cf. Atos, 9, 3ss.) Mais adiante, foi tido como louco pela autoridade constituída: "Paulo estava falando em sua defesa quando o governador Festo o interrompeu, "Estás ficando louco, Paulo. Todo este teu saber está te levando à loucura" Atos, 26,24. Aos seus suplica que o aceitem como tal: "peço que não me considerem louco ou então me suportem como louco" 2Cor.11,16.  O mais fantástico, no entanto, era a sua consciência de que o Cristianismo possuia um conteúdo de loucuras: "Os judeus pedem sinais, os gregos querem sabedoria, mas nós anunciamos o Cristo Crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gregos" 1Cor.1,22.

 

     Na verdade, ele assume  a loucura como estratégia para alcançar a plena lucidez, sem negar, no entanto, o caráter "anormal" da Fé cristã. Louco seria qualquer um que ameaçasse a unidade do Império Romano, pregando uma doutrina essencialmente subversiva em um mundo absurdamente normal. O Império é que demarcava as fronteiras da normalidade.

 

     Naquele mundo adverso, ele não teria nenhuma chance se não tratasse de consolidar sua independência. "Aprendi a ser autônomo em tudo. Sei passar privação ou viver na abundância. Para tudo e por tudo, estou iniciado, ter fartura ou passar fome, ter de sobra ou sofrer penúria" Fil.4,11-12. Nisso consistia sua autonomia: paixão e despojamento.

 

      Que nos ensinaria o apóstolo Paulo, a nós que estamos enfrentando esta dupla pandemia: a do coronavirus, de origem desconhecida, e a outra, escancaradamente visível, incomparavelmente mais letal, a do virus infiltrado no Palácio do Planalto?

 

     Ele nos daria as mesmas armas que deu às primeiras comunidades cristãs. Antes de mais nada a mística da Fé, uma busca incessante do  olhar de Deus sobre a realidade concreta, a fim de ler o momento presente numa visão histórica e transcendental. Uma  adesão incondicional  à pessoa de Jesus, como caminho e chave para construir um novo destino ("para mim viver é Cristo, morrer é lucro" Fil. 1,21) Uma atitude iconoclasta para derrubar o muro de preconceitos humanos : ("não há mais nem judeu nem grego nem livre nem escravo nem homem nem mulher, há somente novas criaturas" Cf. Gl.3,27, Ef.2,15) . Uma liberação das consciências frente à ordem constituída. Só os imperativos do amor limitam esta liberdade: ("o amor é a plenitude da lei. Livres frente à lei, somos escravos uns dos outros" Gl.5, 1-13.)

 

     Sua primeira preocupação, a cada momento, seria criar comunidades de Fé e Vida e animá-las continuamente ("sinto como que dores de parto até que o Cristo esteja formado em vós" Gl.4,19  ). Assim estaria formado o Povo de Deus em Marcha.

 

     Que saiam os teólogos do seu gabinete, os devotos do seu cenáculo, os teóricos do seu wapp. É hora de seguirmos o grande apóstolo que chegou à lucidez através da loucura.  Observemos bem a legenda escrita na sua bandeira de frente: "A vitória que vence o mundo é a nossa Fé" 1 Jo.5,4.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

Nenhum comentário:

Postar um comentário