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sábado, 12 de junho de 2021

CEGUEIRA, EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(09/06/2021)

 

     Para minha surpresa, de todas estas nossas REFLEXÕES, desde o início da pandemia, a que recebeu o título de "Sanidade e Loucura", foi a que teve o maior número de reações e comentários. E os comentários mais longos focaram quase exclusivamente o segundo o elemento, a loucura. Logo vieram à minha cabeça algumas inusitadas hipóteses. Parece haver em todos nós uma certa curiosidade silenciosa e indagativa sobre este assunto. Algo assim: será que a loucura esconde algum mistério da nossa humana natureza, que os loucos liberam? Serão eles  detentores de algum saber oculto que a nossa aparente saúde mental reprime, por motivos convencionais? As convenções nos coagem a sermos "normais" e com isso ficamos humanamente  empobrecidos?

 

     Creio que todo mundo já conheceu algum "louco" que fazia ou ainda faz a festa da vizinhança. Conheci um destes, morando em frente ao convento. Ele dizia palavrões de enrubescer até os ouvidos mais liberais, porém os dizia com tamanha naturalidade e liberdade, que os jovens o atiçavam, a toda hora, só pelo gosto de divertir-se com suas investidas que, em situções normais, provocariam brigas e, quiçá, mortes.

 

      Confesso que sou um "tabula rasa" na interpretação destes fenômenos. Não me arrisco a nehuma análise profunda e cientificamente confiável. Apenas me julgo no direito de expressar minha perplexidade. Talvez esteja aí uma explicação  do uso super polarizado da palavra loucura. Chama-se com o mesmo substantivo o louco perigoso e o louco simpático; a loucura patológica capaz de destruir vidas e a loucura sublimada que dá a vida por amor. Talvez seja por isso que ouvimos tantas vozes  comparando este nosso mundo com um grande manicômio.

 

     Voltei a este assunto porque muitos de nós sentem-se afrontados com o surto de psicopatia que se apossou das cúpulas políticas  que governam o país e desafia nosso mais elementar entendimento da realidade. Como avaliar esta expressiva soma de compatriotas prontos a mitificar o "louco-mor" e apoiar suas políticas?

 

      O que daí resulta afeta o equlíbrio emocional de toda a população. Mistura-se à loucura uma tragédia maior,  tanto maior quanto mais somos diariamente informados de que milhares de vítimas fatais do coronavirus teriam sido poupadas, não fosse o crime de omissão proposital.

 

     O famoso escritor português, José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, escreveu uma obra-prima chamada "Ensaio Sobre a Cegueira". A cegueira é irmã da loucura. Saramago narra o seguinte:

 

     Um motorista qualquer, parado em um semáforo, subitamente descobre que está cego. A luz verde acende e ele continua parado. Enquanto as buzinas enfurecidas apitam e todos se agitam e batem no vidro do carro, só se vê o movimento de seus lábios dizendo: estou cego! Estou cego! A partir daí, a cegueira vai-se espalhando entre os habitantes da cidade. Todos vão perdendo a visão dos olhos. E o que acontece?

 

     Sem poder ver as coisas exteriores, eles vão sendo reduzidos à sua essência humana. Vão descobrindo as coisas que não viam antes e percebem que estas coisas escondiam as suas necessidades básicas. O autor cega os seus personagens para que eles possam ver melhor; possam recuperar a lucidez, resgatar os verdadeiros afetos, diante da pressão dos tempos atuais, que nos obriga a concentrar a visão nas coisas brilhantes e visíveis aos olhos, a fim de ver somente o que o Sistema determina que seja conhecido. Os habitantes da cidade são internados em um manicômio (sempre de novo a imagem da loucura), a fim de reaprender a viver e conviver.

     O autor conclui com este pensamento:  "uma coisa que não tem nome, esta coisa é o que somos".

 

     Não é assim que pensamos à luz da Fé. O que somos tem nome, sim: somos criaturas livres, criadas à imagem do Criador. Contudo não há como negar que esta parábola de Saramago tem afinidade com algumas passagens do Evangelho em que Jesus se depara com o mesmo problema da cegueira.

 

     Precisamos voltar ao assunto. Enquanto isso, recordemos um certo momento do Evangelho: "Então Jesus perguntou ao cego Bartimeu: - Que queres que eu faça? E este respondeu: "Senhor, que eu veja!" Lc. 18,35-43.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor

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