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segunda-feira, 26 de junho de 2023

RITA LEE : UM TALENTO EM FORMA DE MULHER


  Maria Clara Bingemer

            A luz dos cabelos ruivos e um par de olhos verdes foi subtraída de nossas retinas e sua voz de nossos ouvidos. Rita Lee partiu e faz o Brasil chorar de saudade.  Sobretudo as mulheres.  E por que o público em geral e muito especialmente o público feminino  tem esse carinho e essa paixão pela cantora que hoje nos deixou? 

            A primeira razão seguramente é seu talento. No momento em que o rock se firmava no Brasil, ela começou a brilhar como cantora e compositora. Foi a primeira mulher a liderar uma banda de rock.   Originalidade, humor, crítica de bom gosto eram a tônica de suas músicas e performances.  E além disso, graça, beleza, simpatia. Talento para dar e vender foi fazendo Rita Lee subir no gosto do público e ser líder de vendas de discos no tempo em que ainda se ouviam discos nas vitrolas. 

            A segunda razão é sua paixão libertária, de perfil rebelde e ruidoso.  Rita Lee não teve medo de nada e não deixou de defender nenhuma liberdade.  Pode-se não aderir a algumas bandeiras que a ruiva desfraldou ao longo da vida.  Mas não se pode deixar de respeitar a coerência com que viveu.  Por trás desse compromisso com tudo que fosse humano havia uma consistência ética inegável.  A roqueira enfrentou várias ditaduras: a dos costumes, a do pensamento, a do patriarcalismo e não menos, a militar.  

            Foi presa em casa, na Vila Madalena, por porte de maconha. Rita estava grávida e negou que a droga  fosse sua, pois como alegou à polícia, havia  parado de fumar devido à gravidez. 

      O período em que isso aconteceu, com o país em ditadura militar e mergulhado em um obscuro conservadorismo, colaborou para sua prisão.  Ela simbolizava tudo que era rejeitado pelo regime que vigorava então no país.  Hippies e roqueiros eram tratados como bandidos.  Além disso, Rita Lee simbolizava a liberdade de gênero  e a emancipação feminina.  Sua prisão era emblemática e  representou uma espécie de troféu.  Foi um momento difícil, agravado pela gravidez. Depois de passar  duas semanas na cadeia, a artista foi condenada a um ano de prisão domiciliar e multa de 50 salários-mínimos. Isso não impediu que continuasse com seu estilo crítico e irreverente, enfrentando todas as censuras e violências.  

            A terceira razão – e para o público feminino talvez a mais importante – é a genialidade com a qual introduziu pautas feministas em suas criações musicais.  Ao cantar a mulher, Rita Lee imortalizou afirmações que traziam um feminismo bem-humorado e verdadeiro para dentro dos lares e das vidas daquelas que viviam sob o tacão do machismo da sociedade. 

            Foi ela quem nos ensinou que “nem toda feiticeira é corcunda” em clara alusão à suspeita milenar que paira sobre as mulheres de serem bruxas, e que já levou muitas à fogueira. E que há mulheres – entre as quais a mesma Rita – que “é mais macho que muito homem”.  Anunciou em alto e bom som “ que um dia resolveu mudar e fazer tudo que queria fazer”. 

            Mas é na canção Cor de rosa choque que se encontram as mais belas verdades do pensamento desta mulher livre e talentosa sobre seu próprio gênero.  Ali ela diz que a mulher é um bicho esquisito,  que todo mês sangra e “tem um sexto sentido maior que a razão”. Desmitologizando a categorização do sexo feminino como sexo frágil, Rita afirmou que essa fragilidade toda não foge à luta homenageando assim todas as mulheres do Brasil e do mundo que cada dia se levantam ao mesmo tempo que o sol e saem em busca da vida para si e  os seus. Com ela, os dias de luta das Gatas Borralheiras teve fim, porque são Princesas, e Dondoca é uma espécie em extinção. 

            Em suma, nas composições da roqueira, o rosa bebê foi banido da paleta de cores femininas como a cor por excelência para significar a mulher, pálido e desbotado.  Se for rosa, é rosa choque.  Cor viva, pujante, provocante, que não aceita provocações machistas e conservadoras, assim como a própria Rita com seu rosto brejeiro de sorriso alegre, olhos verdes encimado por uma cabeleira ruiva que brilha como o sol. 

            O feminismo de Rita não é da primeira onda e não trava lutas antiéticas com os homens.  Pelo contrário, eles foram sempre muito benvindos em suas criações e em sua companhia.  Sua vida foi povoada intimamente por essa espécie chamada homem que, ao lado de uma mulher forte, pode dar toda a sua medida.  Testemunho disso é seu casamento de quase 50 anos com Roberto, companheiro na alegria e na tristeza, na saúde e quão dedicadamente na doença até o fim.  Assim como os três filhos Antônio, Beto e João. Alegre e encantadoramente, ela proclamou a liberdade da mulher e deixou uma marca original e particular na história do feminismo.  

            Mulher que não se enquadra nos padrões sociais mais conservadores, Rita foi sobretudo livre e alegre.  Seu legado é testemunho dessa liberdade e dessa alegria.  Seja de que credo for, de que proveniência, de que pertença, a liberdade é um dos pontos identitários mais constitutivos e dignos do ser humano.  A vida de Rita foi toda ela um canto à liberdade.  A alegria que vivia e espalhava ao seu redor era um dom cuja fonte mais originária é o Espírito que sopra sobre a argila e cria a vida. 

      Agora Rita vive a plenitude dessa liberdade e a alegria sem limites.  Sua vida foi plena e bonita.  Sua morte é sentida com saudades.  Seu legado permanece.  Em todo lugar onde se cantar a justiça e a liberdade, sua presença ali estará,  fazendo “um monte de gente feliz”. 

 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de Crônicas de cá e de lá (Edições Subiaco), entre outros livros.

 

Copyright 2023 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

 

 

domingo, 25 de junho de 2023

MUNDÚTERO

 

Kinno Cerqueira [1] 


 

Tenho a sensação de que vivemos tempos mortos. Não é um tempo de paixões. É um tempo de marasmos. É um tempo de contínuos. É um tempo de distrações. Há algo que ainda faz nosso coração arder? Onde estão os temas que habitam a nossa carne e fazem nossa língua tremer? O tempo dos autores preferidos passou. Procuro, e quase nunca encontro, pessoas que tenham sido abaladas por um texto, por uma música, por uma peça teatral ou por uma história que tenham ouvido em alguma esquina. Parece que vivemos tempos sem acontecimentos. É um tempo em que quase nada vai além da esfera do estritamente banal e costumeiro. É um tempo em que rareiam olhos capazes de brilhar.

Sou um teólogo: é assim que me sinto e é esta a única designação que não me causa desconforto. Sou teólogo porque me vejo ininterruptamente às voltas com as questões em relação às quais as teologias foram sendo fabricadas. Fernando Pessoa, no Livro do desassossego, escreveu que “existam ou não existam os deuses, deles somos servos”. Não sou teólogo porque professo fé na existência ontológica de um ser divino. Sou teólogo porque minhas angústias e meus prazeres são inelutavelmente atravessados por Deus, quer ele exista ou não. Pensei em grafar seu nome com inicial minúscula. Mas eu seria hipócrita se o fizesse. Afinal, como dar uma minúscula a quem, exista ou não, teve e tem um papel tão maiúsculo na composição de minha biografia?

Eu paro e sento e miro o horizonte pela janela e pergunto-me se não seria hora de escrever alguns de meus pensamentos e deixar que o jorrar de seu fluxo interrompa a sequência de tempos mortos em que nos metemos todos. Mas os pensamentos meus são simples e calmos e decerto, uma vez fora de mim, não sobreviveriam às condições inóspitas desses tempos mortos que são incapazes de se alegrar com o nascimento do que quer que seja. Estes tempos mortos matam tudo o que não seja sua réplica e sua duplicação pura e simples.  

Sofri terrivelmente ao descobrir que amo mais os mortos que os vivos. A minha vida tornou-se doce como o mel de flor quando aceitei minha orientação passional. A minha descoberta foi a maior de toda a minha vida: entre os mortos não há tempos mortos. Eu não trocaria essa minha descoberta por nada. Ela é meu único tesouro. Descobri um mundo abandonado ao qual me posso abandonar numa conversa sem fim. Falo de um “mundútero”: um mundo que não mata nem se entristece com nascimentos, um mundo que abraça e fecunda. Um mundo que existe para produzir os frutos da sedução e do prazer. O único mundo que me interessa. O mundútero é um mundo de tempos vivos.

 

[1] Teólogo e Pastor Batista. Assessor de coletivos ecumênicos na área dos estudos bíblico-teológicos.

 

 

 

 

 

 

 

 

DEMOCRACIA CULTURAL

 Frei Betto


 

       O homem e a mulher são os únicos seres vivos que se contrapõem à natureza. Os demais, das abelhas arquitetas aos macacos africanos que ordenam seus recursos de sobrevivência, são todos determinados pela natureza. Esse distanciamento humano frente ao mundo natural faz a realidade revestir-se de simbolismo e produz a emergência transcendental do imaginário. 

Do interesse pelo fogo produzido pelo relâmpago nasce o conhecimento que desperta a consciência. Voltada sobre si mesma, a consciência humana sabe que sabe, enquanto os animais sabem, mas ignoram a reflexão. Através do símbolo e do significado, o ser humano se relaciona com a natureza, consigo mesmo, com os semelhantes e com Deus.

       Nasce a cultura, o toque humano que faz do natural, arte. A vida social ganha contornos definidos e explicações categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da natureza chega-se às armas que permitem a imposição de um grupo cultural sobre o outro. Porém, cultura é identidade e, portanto, resistência. Mesmo assim, a absolutização de sistemas ideológicos oferece o paraíso e induz o dominado a sentir-se excluído por não pensar pela cabeça alheia. 

No Brasil colônia, os métodos de catequese cristã introduziam entre os indígenas o vírus da desagregação e, hoje, os donos de garimpos, madeireiras e  empresas do agronegócio se perguntam, perplexos, por que os povos indígenas necessitam de tanta terra se nada produzem... 

Os pentecostais fundamentalistas atacam os umbandistas e certos setores da Igreja cristã olham com solene desprezo o candomblé, como se seus fiéis ainda estivessem naquele estágio primitivo da consciência religiosa que não lhes permite desfrutar a beleza do canto gregoriano ou a ortodoxia teológica da Universidade Gregoriana de Roma.

       A queda dos governos dos países socialistas do Leste europeu assinala, não o fim do socialismo, como propaga a mídia capitalista, mas sim da absolutização de sistemas ideológicos. Desabam, com a herança estalinista, todas as estratégias de hegemonização da cultura, e a própria ideia de "evolução cultural". Não há culturas superiores, há culturas distintas. Agonizam as versões totalizadoras em todos os terrenos da produção de sentido - político, econômico e religioso. 

Quem pretender ignorar os sinais dos tempos terá de apelar ao autoritarismo para infundir temor. Sabemos agora que mesmo na América Latina não há uma cultura única, mas uma multiplicidade de culturas - indígena, negra, branca, sincrética - que se explicam por seus próprios fatores internos. Essa polissemia de sistemas de sentido é uma riqueza, embora ameace o poder daqueles que imaginavam restaurar a uniformização medieval.

       A mais de 500 anos da chegada de Colombo às Américas - uma invasão genocida que alguns chamam de "encontro de culturas" - convém relembrar esses conceitos antropológicos. E, hoje, a democracia impregna também a cultura. Cada homem e mulher, grupo étnico ou racial, descobre que pode ser produtor do próprio sentido de sua vida. O difícil é respeitar isso como valor, sobretudo nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus Cristo do arcabouço judaico e greco-romano que o reveste e tanto favorece o eurocentrismo eclesiástico.

Felizmente, o próprio Jesus nos ensina a diferença entre imposição e revelação. Impõe-se ao perverter a natureza do poder (Mateus 23, 1-12). Mas revelação significa "tirar o véu": ser capaz de captar os fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias evangélicas aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II. 

       Aliás, Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da justiça. E esse dialeto toda cultura incorpora e entende.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 74 livros, editados no Brasil, dos quais vários também no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
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quarta-feira, 21 de junho de 2023

PALAVRAS DE PEDRO - 21.6.2023


Dom Pedro Casaldáliga



        Eu já disse que se nós temos passado pelo que passamos foi simplesmente porque tentamos entrar nos direitos, nas aspirações e na luta do povo. Que isso fique bem claro. Seia uma exibição à-toa e um masoquismo sem sentido, se pensássemos e falássemos na nossa perseguição, no nosso sofrimento; o assunto é povo. Você pode dizer aos nossos amigos por aí, que podem duvidar de mim o que quiserem. Podem duvidar da minha honestidade, da minha caridade, do meu equilíbrio mental, mas não duvidem da minha fé na Páscoa. Isto está na raiz da alma da gente, e essas mil circunstâncias que fomos vivendo, cada vez mais solidificaram essa vivência de fé e de esperança na Páscoa do Cristo. A esperança cristã nada tem de passividade. O contrário do cristianismo é esperar sentado. Quem entende a ressurreição do Cristo como um arrebentar a morte, a escravidão, o pecado, e como uma abertura definitiva para a vida nova, para a liberdade, para a Justiça, é lógico que seja um revolucionário. Não se pode ser cristão, se não se é revolucionário. Não se pode ser cristão, se não se é utópico. Não se pode ser cristão, se não se é, no melhor sentido, ativista.


Pedro Casaldáliga, do livro: Nós, do Araguaia, Edson Martins

#Casaldàliga!

#PedroCasaldáligaPresente!

#PereCasaldàliga

#NãoQueremosGuerraQueremosPaz!

#pl2903não

#NãoAoMarcoTemporal

#MarcoTemporalNão

@fperecasaldaliga

@irmandadedosmartires

terça-feira, 20 de junho de 2023

Festas juninas e a cidadania

 Marcelo Barros



Na segunda quinzena de junho, em várias regiões do Brasil, o clima é de festas juninas. Em São Luis e algumas cidades do Maranhão, os festejos do Bumba-meu-boi recordam costumes que vêm de séculos. Por todo o Nordeste, a fogueira e comidas de milho verde são acompanhadas por Quadrilhas e brincadeiras próprias da festa. Caruaru e Campina Grande disputam entre si quem tem o maior São João do mundo.

Para as culturas tradicionais, tanto dos povos indígenas, como das populações do campo e do sertão, junho representa o tempo da colheita do milho no Nordeste e no sul, a coleta do mate. Ainda há povos indígenas, para os quais esses festejos comemoram o início do ano novo. Na cordilheira dos Andes, as comunidades indígenas festejam o Inti-Rami, a festa do rei Sol, inscrita nos calendários oficiais da Bolívia, Peru e Equador. Na Argentina, Paraguai e sul do Brasil, os Guarani chamam este tempo de Ara Pyaú (Tempo Novo). É o batismo da erva mate, o ka’a  nheemongaraí, cujas projeções sobre o ano novo são interpretadas pelo Xeramoi (pajé). Também se celebra a cerimônia de nominação, quando as crianças recebem o nome guarani dado pelo pajé. Devido a influências católicas, esse ritual é chamado de “batismo guarani”.

As danças juninas mais comuns vieram das cortes da Europa. Quadrilhas eram danças da nobreza europeia nos tempos da colonização. O povo se apropriou delas e as democratizou. Atualmente, nos chamados “casamentos caipiras”, figuras como a do padre e do juiz da roça são caricaturados. Assim, pessoas pobres que não têm voz na sociedade expressam sua crítica social e seu protesto. O fato de tomar como padroeiros das festas juninas Santo Antônio, São João Batista e São Pedro se vincula aos tempos em que tudo era religioso. Revela resistência cultural e liga esses santos à realidade dos pobres de hoje. O espírito dessas festas pede que as pessoas e comunidades possam ir além da criatividade com a qual ensaiam uma dança de quadrilha ou encenação caipira. É urgente ensaiar uma sociedade nova na qual todos e todas sejam protagonistas e restabelecer a dignidade da Política, colocada a serviço do Bem Comum.

Enquanto o povo brinca as festas juninas, políticos de direita se organizam para impedir o governo federal de cumprir suas metas e fazer o Brasil voltar. O presidente da Câmara mostra suas garras de coronel que faz política em função de si mesmo.  O governo que, para vencer eleições teve de fazer acordo com ampla faixa de partidos e bancadas, é coagido a pagar preço altíssimo.  Em meio a tudo isso, a governabilidade oficial, garantida pela relação entre os três poderes, acaba dificultando a comunicação direta do governo com o povo que continua sendo mais testemunha e assistente da politicagem dos grandes do que participante ativo em uma Política na qual todos possam ser cidadãos e cidadãs.  

Para quem vive um caminho espiritual, religioso ou não, se trata de sinalizar o projeto de um mundo novo possível. Do seu modo e em sua linguagem lúdica, as festas juninas traduzem uma palavra que os evangelhos atribuem a São João Batista: “Mudem de vida porque o projeto divino no mundo está próximo!” (Mt 3, 2).

domingo, 18 de junho de 2023

‘Deus, sive Natura’: a religião de Spinoza.

 

Eduardo Hoornaert.


 

Numa recente entrevista, o pensador francês Edgar Morin, atualmente com 104 anos, realça a importância do filósofo judeu-holandês Baruch Spinoza com as seguintes palavras: ele acaba com a imagem de um Deus superior e externo ao mundo, que seria seu criador e dono. Ele deu soberania criativa à natureza.

E recentemente, entre nós, a filósofa Marilena Chauí mostrou o valor e a originalidade de Spinoza em dois tomos: A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinoza, São Paulo, Companhia das Letras, vol. I 1999; vol. II 2016.

Essas avaliações contrastam com a postura do instituto religioso estabelecido, que guarda o silêncio acerca de Spinoza, seguindo um método experimentado durante longos séculos e sempre eficiente, de deixar figuras incômodas na sombra, nos gabinetes dos intelectuais e faz com que elas não ganhem púlpitos. A igreja esmaga Spinoza sem dizer nada, simplesmente pelo enorme peso de sua história de acesso à fé popular. Em geral, os papas católicos se esforçam em erigir um dique contra a invasão do espírito ´spinoziano‘.

Mesmo assim, os exegetas se sentem, aos poucos,  atraídos por seu espírito crítico. Spinoza está direta ou indiretamente ligado a um sem-número de inovações nos campos das ciências e da fé. No século XIX nascem a egiptologia, a assiriologia, a epigrafia semita etc. No século XX entram a filologia, a linguística e a arqueologia bíblica. Tudo isso provocando terremotos limitados, localizados, controláveis. E quando se avança no mapeamento de um universo religioso mítico, comum a todos os povos e se percebe que as grandes imagens bíblicas são patrimônio comum de uma humanidade em determinadas fases históricas, que os anjos só descem do céu dentro de um determinado imaginário, um mundo desmorona aos poucos, enquanto outro emerge. Até hoje, a repercussão dessas novas percepções é muito limitada. Mesmo assim, quando as múltiplas narrativas sobre o dilúvio começam a serem  comparadas entre si, quando se descobre que há ´dilúvios‘ na história da Babilônia, da Grécia, da Índia, da Austrália, em Nova Guiné e na Melanésia, na Polinésia e na Micronésia, na América do Sul, América Central e México, na América do Norte e na África (Frazer, J. G., El Folklore en el Antiguo Testamento, Fondo de Cultura Econômica, México, 1986), quando se abre o vasto campo de estudos de mitos religiosos, em escala planetária, e se dilui aos poucos a ideia que ‘a Bíblia tinha razão’, o olhar sobre a mitologia bíblica vai assumindo novas formas, num movimento lento, mas consistente.  

 

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Spinoza em seu tempo.

 

Vale a pena retomar aqui brevemente o percurso de Bento (Baruch, Benedito) Spinoza (1633-1677), judeu vivendo na Holanda. Árduo lutador contra a insensatez dos pregadores (tanto judeus como cristãos) na Holanda de seu tempo, Spinoza simplesmente diz que é sensato não falar tanto em Deus. Pois Deus só se aproxima de nós em forma de imagens e comparações. A Bíblia é literatura. Os pregadores que usam a autoridade da Bíblia para reprimir o pensamento livre, por exemplo, não seguem o bom senso. Transformar a Bíblia em texto doutrinário é deturpar seu sentido, pois seu núcleo (a Torá) é constituído por uma coletânea de narrativas populares antigas e prescrições sacerdotais reunidas por Esdras e outros intelectuais após o retorno das elites judaicas do exílio babilônico no século VI aC. Afirmar isso não é desobedecer às autoridades religiosas, é praticar ciência. Pois, não se pode confundir entre conhecimento e obediência: O mais grave erro da teologia consiste em ocultar a diferença entre conhecer e obedecer, em fazer com que tomemos os princípios da obediência por modelos de conhecimento (Tratado teológico-político, 1672. Veja Spinoza, B., The Complete Works, Ed. M.L. Morgan, Hackett, Indianopolis, 2002).

Esses posicionamentos, derivados de uma aguda percepção da diferença entre o sensato e o insensato, fazem com que o cidadão Spinoza seja olhado com suspeita nas ruas tranquilas da pequena cidade de Haia, na Holanda, onde vive. As pessoas têm medo dele, pois corre o rumor, primeiramente em Haia, depois em Amsterdã e finalmente um pouco por toda a parte, que ele é um ateu. Um ateu virtuoso, como escreve Bayle no seu ‘Dictionnaire Historique et Critique’, mas mesmo assim um ateu. Ele passa mesmo a ser o protótipo do ateu, transgressor das leis e da religião, um anarquista. Seus textos circulam clandestinamente. Durante toda a vida, Spinoza tem consciência de ser um estranho no ninho judaico (é expulso da sinagoga) e cristão (não frequenta a paróquia cristã). Em sua última obra, o ‘Tractatus politicus’, ele escreve: Eu fiz esforços sem fim para não ridicularizar, não lamentar e não desprezar ações humanas, mas para entendê-las. Por não desprezar as tradições religiosas de seus contemporâneos, sejam eles católicos, calvinistas ou judeus, Spinoza faz com que alguns de seus textos não sejam traduzidos ao holandês e toma providências para que seu texto principal, a Ética, só seja publicado depois de sua morte, para não chocar as pessoas com quem convive. Sentindo a extensão do domínio da insensatez em seu redor, ele desabafa: No fundo, a minha crença é a mesma dos profetas hebreus do passado.

Só na Alemanha do final do século XVIII, entre românticos e idealistas como Goethe, Lessing, Herder, Schelling e Hegel, Spinoza encontra respeito e percepção de seu valor. Mesmo no século XX, poucos intelectuais falam dele e, até hoje, sua filosofia é pouco conhecida.  Uma exceção, como já escrevi acima, é a postura da filósofa brasileira Marilena Chauí, cujo artigo ‘Baruch Espinosa’ (Revista Cult 109, dezembro 2006, pp. 53 sqq) recomendo vivamente.

Mesmo assim, algo se mexe. Os exegetas começam a estudar as línguas bíblicas como o hebraico, o aramaico e o grego, ensaiam uma leitura da Bíblia em consonância com os ditames da ciência moderna e enfrentam com maior ou menor coragem os inevitáveis obstáculos eclesiásticos. Graças à progressiva introdução da ideia de tolerância no decorrer do século XVIII, tanto na França como na Alemanha, os estudos crítico-históricos conseguem avançar. Voltaire e outros liberais lutam para que ninguém mais seja queimado vivo por emitir opiniões contrárias às autoridades, como ainda aconteceu com Giordano Bruno em 1600. Essa ideia triunfa com a Revolução Francesa de 1789. Outro passo consiste na dissolução progressiva da ideia de se estabelecer uma igreja, antes sobre doutrina e profissão de fé que sobre o agir concreto do cristão. Assim, a base do dogmatismo vai se diluindo aos poucos. Mesmo assim, as igrejas continuam tendo dificuldades em unir o amor intellectualis Dei de Spinoza (um amor que encoraja a livre investigação) à imitatio Dei de tantos mestres e santos.

No campo católico, as coisas evoluem lentamente. O papa se proclama sucessor de São Pedro, não mais vigário de Cristo (como na Idade Média), o que já é um progresso. Outro ponto positivo consiste no gradativo abandono do tradicional método de se fazer teologia a partir de citações e o uso crescente de se contextualizar textos evangélicos, corânicos e bíblicos. O reconhecimento positivo do fator sincrético é outro avanço importante, pois vai corroendo aos poucos a insistência monoteísta em termos de religião.

 

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A religião de Spinoza.

 

Vale a pena considerar, por uns momentos, onde Spinoza situa a religião, no campo da inteligência humana. No campo da ‘imaginatio’, da ‘ratio’ ou da ‘scientia intuitiva’?  

Ele começa afirmando que, para a maioria das pessoas, palavras são puras imagens que, ao rigor, não têm nada a ver com ideias. O ser humano dificilmente vive plenamente as capacidades cerebrais que a natureza lhe oferece. A grande maioria das pessoas permanece a vida toda no estágio intelectual que Spinoza denomina imaginatio, ou seja, um estágio em que a pessoa fica presa às impressões, imaginações, comoções e afetos que lhe vêm de fora. A terceira parte de sua Ética é inteiramente dedicada à questão da prisão ‘imaginada’. Spinoza não rejeita imaginações e afetos, não rejeita Daniel Goleman (Inteligência Emocional), mas reconhece que é preciso alcançar um estágio intelectual superior, que ele denomina ratio. A imaginação é parte necessária do processo de conhecimento, mas só oferece um conhecimento desordenado e confuso. A ratio, pelo contrário, permite formular as coisas de modo mais claro. Mas aí não para o processo. Além da conquista da ratio, uma pessoa verdadeiramente interessada em prosseguir intelectualmente, procura conseguir o estágio da scientia intuitiva, que consiste em ‘intuir Deus’, ou seja, a natureza infinita em que vivemos e nos movemos. A intuição é o saber que provém de uma experiência mística (Ética, terceira parte). Nesse terceiro grau da inteligência humana, o amor próprio coincide com o amor ao próximo, o corpo do outro coincide com o próprio corpo, a beleza do(a) outro(a) faz parte da própria beleza. Spinoza sabe que é difícil chegar a esse estágio. Nas últimas palavras de sua Ética, ele escreve: O que é lindo é difícil e raro. A maioria das pessoas não percebe o valor do processo cognitivo desafiante, por viver apenas movida por impulsos imediatos.

 

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Alguns apontamentos.

 

Há muito que merece ser considerado, quando se aborda o tema Spinoza. Aqui só alguns apontamentos, de modo sumário.

- Como escrevi acima, a leitura propriamente moderna da bíblia se inicia em 1670 como o Tractatus theologico-politicus de Spinoza, um texto definitivo, que contesta de frente o teor supostamente histórico da Torá e sua autoria por um único autor Moisés. Com isso, Moisés, Davi e Salomão migram de vez para o mundo mítico, juntamente com os patriarcas Abraão, Jacó, Isaac e José.

O método de Spinoza causa, na época, um espanto geral, mas com ele nasce a exegese crítica propriamente dita. Nasce igualmente a ideia da tolerância. No decorrer do século XVIII, tanto na França como na Alemanha, os estudos crítico-históricos conseguem avançar. Voltaire e outros liberais lutam para que ninguém mais seja queimado vivo por emitir opiniões contrárias às autoridades, como ainda aconteceu com Giordano Bruno em 1600. Essa ideia triunfa com a Revolução Francesa de 1789.

- O instituto eclesiástico reage energicamente contra a ideia de se desconsiderar Moisés como autor da Torá. Moisés é um nome consagrado, seu nome aparece nada menos que 750 vezes no Antigo Testamento e 80 vezes no Novo Testamento. Além disso, mexer com Moisés significa abandonar a ideia de uma Bíblia como corpo doutrinário coeso, escrito por um grande legislador sob a inspiração direta de Deus. Mesmo assim, desde o século XVIII, se sucedem as mais diversas hipóteses de leitura bíblica e aparecem os mais engenhosos métodos de interpretação. A final das contas, a tendência é a descrença na historicidade de muitos textos bíblicos. Os papas católicos ainda tentam colocar um dique. Leão XIII publica a encíclica Providentissimus Deus de 1893 e Pio X decreta em 1906: Moisés é o autor do Pentateuco. Em vão. A tempestade continua e em 1948 as próprias autoridades eclesiásticas recuam, permitindo de novo abertura as pesquisas por parte de especialistas católicos. O embate não deixa de fazer vítimas, entre as quais se destaca o sacerdote francês Alfred Loisy (1857-1940), cujo livro: O Evangelho e a Igreja (L’Évangile et l’Église), publicado em 1902, defende a antiga tese do intelectual romano Porfírio: os evangelhos não correspondem fielmente à história de Jesus. Em 1903, a obra completa de Loisy é colocada no Índice dos Livros proibidos e em 1908 ele é expulso da igreja. A partir do caso Loisy, todos os sacerdotes católicos são obrigados a fazer um juramento ‘anti-modernista’ (leia: anti-Loisy) antes de receber as ordens.

Não é só no mundo católico que a exegese ‘moderna’ causa problemas. O mundo protestante também é afetado. No mesmo ano da publicação do O Evangelho e a Igreja, de Loisy, o filho de um pastor luterano, Adolfo von Harnack, publica na Alemanha seu Missão e Expansão do Cristianismo nos três primeiros Séculos (1902), baseado em premissas científicas crítico-históricas parecidas das defendidas por Loisy.  O trabalho mais importante de von Harnack é seu Lehrbuch der Dogmengeschichte (Mohr, Tübingen, 1886), no qual ele já pratica o estudo comparativo entre religiões, e que teve imensa repercussão. Von Harnack encontra também forte oposição por parte da igreja luterana. As vidas de Loisy e von Harnack ilustram a tensão reinante nas igrejas estabelecidas no alvorecer do século XX em torno da crítica histórica e literária.

- Mas, ao longo do processo, Moisés é destronado como autor, enquanto a arqueologia bíblica tem um surto nunca dantes verificado. Já no século XIX nascem a egiptologia, a assiriologia, a epigrafia semita etc. No século XX, os progressos são igualmente grandes, tanto na filologia como na arqueologia, provocando sucessivos sustos nos que acreditam em ‘eternas verdades bíblicas’. Numa noite do ano 1872, em Londres, por exemplo, Sir George Smith apresenta com orgulho ao mundo científico inglês uma coleção de tábuas de barro trazidas da biblioteca de Assurbanipal em Nínive, com o texto cuneiforme da Epopeia (mesopotâmica) de Gilgamesh, em que se verifica um sugestivo paralelismo com o relato bíblico do dilúvio. Aos poucos vão aparecendo, além do Gilgamesh, outros mitos babilônicos que influenciaram narrativas bíblicas. Estudiosos como Sir James George Frazer, já citado aqui, arrolam as mais diversas narrativas de dilúvios na Babilônia, na Grécia, na Índia, na Austrália, em Nova Guiné e na Melanésia, na Polinésia e na Micronésia e até na América do Sul, na América central e no México, na América do Norte, na África, um pouco por todo o planeta, abrindo campo para um estudo dos mitos religiosos em escala planetária. Menos de trinta anos depois de Smith, em 1901, aparece o Código de Hamurabi, em 282 artigos, que coincide, em diversos pontos, com os Dez Mandamentos da Lei de Moisés. O código de Hamurabi proíbe furtar, matar, praticar suborno, mentir, prejudicar outras pessoas, na mesma linha da lei de Moisés.

É desse modo que a arqueologia bíblica entra no século XX, ao mesmo tempo em que se avança muito no mapeamento de um universo religioso comum a todos os povos que mantêm contato com a Mesopotâmia e especificamente com a Babilônia, como, por exemplo, os egípcios. Registram-se os grandes paradigmas comuns ao imaginário religioso do Oriente médio, sua visão do céu, da terra, do ar, do sopro animador, do sol, do rio, da montanha, da planície, da cidade, do estado. Mesmo dos utensílios agrícolas, como a enxada, o arado, a pá, a fornalha. Há deuses celestes como Marduk, que cria o céu e a terra, dá regularidade aos planetas e às estrelas, e finalmente dá vida à raça humana. Mas há igualmente os poderes do mundo em baixo da terra, os demônios. Cada pessoa tem seu anjo, protetor da vida. Fala-se em filhos de Deus (título dado aos faraós do Egito) e em virgens que geram deuses.

- Hoje acoplado ao estudo mais amplo da mitologia em geral, a leitura crítico-histórica da Bíblia, inaugurada por Spinoza, continua dinâmico nos nossos dias, tanto no mundo cristão como entre os judeus. Vai se diluindo sempre mais a ideia de que ‘a Bíblia tinha razão’. Com o tempo, as evidências em contrário se acumulam. O relato bíblico do êxodo vai sendo despojado de sua base histórica, pois até hoje nenhum documento ou monumento do Egito antigo, encontrado por arqueólogos ou filólogos, atesta a presença de israelitas em suas terras. Não foi encontrada em torno de Jericó a famosa muralha, mencionada no livro de Josué, apesar de exaustivas escavações. A descrição topográfica de Jerusalém, feita na base de textos bíblicos referentes aos reinados de Davi e Salomão, não encontra nenhuma verificação arqueológica. Não se consegue descobrir em torno do monte Sinai nenhum resto (em cerâmica, por exemplo) da passagem de um importante agrupamento de pessoas por aqueles desertos, apesar do impressionante relato bíblico da permanência dos hebreus com Moisés ao pé do monte, por muito tempo. Ou seja, os caminhos da arqueologia e da Bíblia divergem sempre mais, na realidade levam para horizontes diferentes. Fica sempre mais difícil entender a Bíblia como palavra imutável de um Deus único.

- Mas não podemos esquecer o outro lado da medalha. Se Moisés ficou, durante séculos, confinado a amarras eclesiásticas, ele corre o perigo de ficar condenado, nos últimos séculos, à prisão de uma modernidade que despreza o mito e faz dele um produto de épocas desde muito pretéritas, estágios primitivos na evolução da humanidade, forma ultrapassada e confusa de se comunicar. O postulado de uma determinada razão moderna, autossuficiente e arrogante, tende a destruir o mito. Com isso, a palavra tende a ficar presa nos domínios de uma inteligência fria, racional e calculadora, tende a migrar do reino da liberdade ao mundo do trabalho por trabalho, lucro por lucro, proveito por proveito. A modernidade autossuficiente a tal ponto promulga a supremacia dos valores materiais, que ela avalia tudo em números, cálculos e dados estatísticos comparativos. Não se fala de outra coisa, pelo menos nos grandes veículos de comunicação, que produzem diariamente uma avalanche de palavras pré-fabricadas, quase matemáticas, para convencer as pessoas que o mundo é feito de sucesso, lucro e proveito. Neles, não se fala o óbvio. Não se diz, por exemplo, que rendimentos materiais bastante modestos são suficientes para que o ser humano viva com dignidade, que valores não materiais podem aumentar a ‘qualidade de vida’ e que o exagerado lucro individual é uma loucura, sobretudo diante da falta de rendimentos elementares por parte da maioria das pessoas. Par sustentar tal loucura, a modernidade teve que reduzir a palavra a uma simples fórmula invariavelmente repetida, e que acaba não dizendo mais nada, pois cai no vazio da comunicação de massa. Essa fórmula serve apenas para impor, de forma hábil e insidiosa, a vontade de lucro ilimitado de uns em detrimento da vida da maioria da humanidade.

Não é dentro dessa modernidade fechada, autossuficiente e capitalista, que se situa Spinoza, como procurei demonstrar nestes breves apontamentos. A modernidade de Spinoza apela para posturas que, afinal, realçam a originalidade da Bíblia e do cristianismo.

 

 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe

                                     Leonardo Boff


“Deus não existe”, estimava o físico e  astrônomo Stephen Hawking  que morreu em março de 2018. Retrucarei com um filósofo e teólogo medieval, dos mais perspicazes, a ponto de se chamado de “doutor sutil”, o franciscano escocês Duns Scotus (1266-1308):”Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”.

Ambos, Hawking e Scotus, têm razão. O famoso físico e identificador dos “buracos negros” se move dentro da bolha da física, daquilo que pode ser medido, calculado e feito objeto de experimentação empírica. Buscar Deus dentro deste paradigma significa não poder encontrar Deus porque Deus não é uma coisa, com as características das coisas, por minúsculas que sejam (um topquark ou o bóson de Higgs) ou pelas maiores que se apresentem como o conglomerado de galáxias de tamanho incalculável. O máximo que a razão poderia dizer é que Deus é o “Ser que faz ser todas as coisas”, não sendo uma coisa.

Então, a partir da física, vale  afirmação de que “Deus, de fato, não existe”. Só que a física não é a única janela de acesso ao real.

Há outras realidades que, por não serem físicas, não deixam de ser realidades. Assim um minhoca jamais entenderá uma música de Vila Lobos, nem o coronavírus saberá apreciar um quadro de Tarcila.São realidades de natureza diferente.

Duns Scotus tem também razão porque, ao nos referirmos a Deus, sustenta ele, estamos pensando numa Última Realidade que transcende todos os limites da física, do espaço e do tempo ou de qualquer outra forma de conhecimento. É o Inominável e o Inefável, Aquele que não cabe em nenhuma linguagem, nem em nenhum dicionário.  Deus não é um fato da realidade palpável que pode ser captada e dita. Por sua natureza Ele está além dos fatos. Ele é Aquele face ao qual devemos,reverentemente, calar, expressando o Nobre Silêncio. Essa é a verdadeira posição do pensamento radical que se expressa pela filosofia e pela teologia, tão bem elaborado nos escritos de Duns Scotus Enfatizando: Ele é o Mistério que transcende qualquer realidade dada, mensurável ou captável pelo ser humano. Quem viu claro isso foi o filósofo vienense Ludwig Wittgenstein (1889-1951) em seu famoso Tractatus Logico-philosophicus (1921) ao dizer:”A ciência estuda como o mundo é; o místico se admira que o mundo é. Seguramente existe o Inefável. Isso se mostra, é o  místico….Sobre aquilo que não podemos falar,devemos calar”(aforismo 6 .522).

Aqui ressoa a frase famosa de Gottfried  Leibniz (1646-1716): “por que existe o ser e não o nada”? A essa questão não cabe resposta: é o Mistério do ser, face ao nada. Face ao Mistério do ser, deve-se antes  calar do que falar, porque tudo o que dissermos fica aquém do Mistério que é Inefável e Inexprimível e já supõe que estamos no ser.

 Mas não estando no horizonte das coisas, Deus no entanto está no horizonte do sentido. Por isso assevera Wittgenstein: “Crer num Deus significa compreender a questão do sentido da vida. Crer num Deus significa perceber que ainda nem tudo está decidido com os fatos do mundo. Crer em Deus significa perceber que a vida tem um sentido”(Id.ibd).

Mas voltemos a Hawking: todos os grandes cientistas a começar por Newton que introduziu o matematismo na natureza, passando por Einstein e outros, chegando ao genial inglês, buscavam uma fórmula que desse conta de toda a realidade. O intento era uma “Teoria do Tudo” (TOE em inglês: Theory of Everything) ou também chamada de “Teoria da Grande Unificação”(TGU).

Há dois livros clássicos que resumem os caminhos e des-caminhos desta magna questão: John B.Barrow, Teorias de Tudo: a busca da explicação final (Zahar 1994) e o de Abdus Salam, Werner Heisenberg,Paul Dirac, A unificação das forças fundamentais: o grande desafio da física contemporânea (Zahar 1994). Todos acabaram reconhecendo o fracasso desse intento. Na expressão de John Barrow:”Toda a vida cotidiana, o que move os seres humanos em sua busca de felicidade e em sua tragédia, não cabem da concepção física do “Tudo”.

O último a reassumir esta questão foi exatamente Stephen Hawking em seu famoso  livro Uma breve história do tempo (Ediouro 2005). Tentou de todas as formas. Ao final, reconheceu a impossibilidade afirmando:” Se realmente descobrirmos uma teoria completa, seus princípios gerais deverão ser, no devido tempo, ser compreensíveis por todos, e não apenas por uns poucos cientistas. Então, todos nós, filósofos, cientistas e simples pessoas comuns, seremos capazes de participar da discussão de porquê é que nós e o Universo existimos. Se encontrássemos uma resposta para essa pergunta, seria o triunfo último da razão humana porque então conheceríamos a mente de Deus”(Uma breve história do tempo, p. 145). Refere-se a Deus e a sua mente abscôndita. Esse Deus-Mistério se encontra na raiz de todas as existências, sustentando-as e fazendo-as continuamente subsistir, mas sempre se subtraindo à vista humana. Por isso as Escrituras judeu-cristãs afirmam: ”Deus mora numa luz inacessível que nenhum ser humano viu nem pode ver”(1Tim 6,16; Sal 104,2; Ex 33,20; Jo,1,18;  1Jo 4,12).

Então cabe, realmente, concluir: se Deus existe como as coisas existem, então Ele não existe”. Para além das coisas, Ele existe, com uma natureza diversa das coisas, como Aquele que tirou tudo do nada e continuamente subjaz a tudo o que existe e poderá existir.

Leonardo Boff é filósofo, teólogo e escreveu: Experimentar Deus hoje:a transparência de todas as coisas, Vozes 2012;Tempo de transcendência, Vozes 2009.

 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

POR QUE REVOGAR O “NOVO” ENSINO MÉDIO

 

Frei Betto


 

        Os primeiros meses do governo Lula mostram como será difícil reconstruir o Brasil. A frente ampla em defesa da democracia para vencer a eleição expressa limites para o avanço em políticas que apontem para um futuro estruturalmente melhor para a população, em especial os mais pobres.

        Na educação, o exemplo é o Ensino Médio, cuja reformulação e implementação teve origem no governo Temer. O golpe parlamentar contra a presidenta Dilma legou ao país a profunda crise política em que ainda estamos enrascados e, no bojo, as heranças malditas do teto de gastos, da liberalização da terceirização, da precarização das relações de trabalho e do chamado “novo Ensino Médio”. O golpe visou fazer avançar estas contrarreformas de nítido sentido neoliberal e antipopular.

        Desinteresse em relação às disciplinas e currículos, elevada evasão de alunos, necessidade de conexão entre teoria e prática e com o mundo do trabalho. São fatores importantes que exigem constante avaliação e eventual reformulação do Ensino Médio. O governo Dilma já debatia alterações nesta etapa da educação, que representa os anos finais da escolarização da juventude. 

        O projeto de lei 6.840, de 2013, esboçava mudanças pretendidas pelo governo em relação ao Ensino Médio. Era avaliado criticamente por entidades de professores e estudantes, inclusive ao propor elementos de organização curricular que depois seriam retomados pelo “novo Ensino Médio”, como a redução das disciplinas comuns e a oferta de temas de livre escolha.

        O golpe de 2016, entretanto, interrompeu este processo de diálogo. Através da Medida Provisória 746/2016 e, posteriormente, da Lei 13.415/2017, o governo Temer impôs o “novo Ensino Médio”, que alterou a Base Nacional Comum Curricular e seu suporte pedagógico legal, depois aprovada no governo Bolsonaro. 

        Como se deu a aprovação? Alterou-se a composição do Conselho Nacional de Educação, com a nomeação de conselheiros ligados às fundações e institutos empresariais, defensores das orientações do Banco Mundial para a educação. 

        A Base Nacional Comum Curricular, portadora dos conceitos neoliberais de empreendedorismo e meritocracia, engessa o currículo escolar do Ensino Médio. Conteúdos de Matemática e Língua Portuguesa passam a ser oferecidos quase no limite de um ensino para domínio instrumental dessas disciplinas, essenciais para a formação plena do estudante.

        O que Temer e o Congresso Nacional impuseram significou a precarização do currículo escolar e comprometeu a formação dos estudantes, ao reduzir a carga horária da Formação Geral Básica (Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes, Filosofia, Sociologia) no segundo e terceiro anos do Ensino Médio. E ampliou para 40% da carga horária, nesses anos, a parte diversificada do currículo, ao inserir os chamados “itinerários formativos”, em que supostamente os estudantes poderiam escolher o que estudar.

        Há uma contradição entre a propaganda de que os estudantes seriam protagonistas de sua carreira escolar e a realidade do “novo ensino médio”, que prescreve habilidades e competências sócio comportamentais necessárias à sobrevivência desses jovens no mundo do trabalho: capacidade de adaptação e resiliência em um cenário de competição e instabilidade. São “habilidades” para uma sociedade baseada na “viração”, na esperteza, o que os defensores da educação neoliberal chamam de “empreendedorismo”. Trata-se de educar para adequar-se ao mercado de trabalho precarizado e ao conformismo como ausência de alternativa.

        A implementação do “novo Ensino Médio” ao longo dos últimos dois anos e sob responsabilidade das secretarias estaduais de educação, evidenciou mais problemas, como a precariedade da infraestrutura das escolas públicas – em que estudam cerca de 88% dos quase 8 milhões de estudantes matriculados no Ensino Médio no Brasil –, e a falta de professores. Somam-se a este grave problema  maus contratos, muitas contratações  temporárias, além de ausência de formação adequada e pouco tempo para preparação de aulas. Todos esses fatos revelam a inadequação desta proposta para a realidade dos estudantes, que passaram a se mobilizar pela revogação.

        O “currículo em migalhas” não atende às necessidades e interesses dos alunos, notadamente dos filhos e filhas da classe trabalhadora que estão nas escolas públicas, e não os prepara para a continuidade dos estudos em nível superior ou escolas técnicas, se assim desejarem. Nem para que possam ingressar dignamente no mundo do trabalho, forçando-os à exclusão das esferas de decisão nas empresas, instituições e órgãos do poder público, e à permanência em funções subalternas e mal remuneradas.

        O ensino médio neoliberal ampliou o abismo que já existia entre as escolas públicas e as melhores escolas privadas, reforçando o fato de haver no Brasil uma escola “pobre” para os pobres, e escolas de qualidade para os ricos, o que aprofunda o apartheid social. 

        A bandeira do “Revoga já!” em relação à contrarreforma neoliberal do Ensino Médio tem potencial para expor a raiz do problema educacional no Brasil: a desigualdade nas condições de ensino-aprendizagem entre as escolas pública e privada. E mesmo entre escolas privadas de elite nos grandes centros urbanos e as localizadas no interior do Brasil e nos bairros de classe média nas grandes cidades. É a reprodução ampliada dessa desigualdade. 

        Ao mesmo tempo, condiciona o horizonte de possibilidades dos jovens (ricos e pobres) ao fatalismo do “fim da história”, ou seja, que o futuro do Brasil não comporta desenvolvimento social e econômico que nos faça superar a dependência e as heranças neocoloniais do subdesenvolvimento: pobreza estrutural, concentração da propriedade da terra (rural e urbana), elevada inserção informal, precária e sem proteção social no mercado de trabalho.

        Revogar o ensino médio neoliberal é imprescindível para reconstruir o Brasil. A educação básica e, em especial, a etapa final do seu percurso formativo, que é o Ensino Médio, precisa ser refundada a partir de amplo e democrático processo participativo que reúna estudantes secundaristas e suas organizações, professoras e professores e suas representações sindicais, e especialistas em educação comprometidos com um projeto popular para o país. 

        Se queremos uma educação que viabilize a democratização e a desmercantilização da vida, há que construir uma reforma educacional humanista e crítica inspirada na educação libertadora de Paulo Freire.

 

Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 73 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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