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segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

ASSÉDIO SEXUAL: UMA TERCEIRA VIA?


 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Os últimos dias foram marcados pelo debate sobre assédio sexual.  Em parte, graças a Deus, porque de assédio político e econômico estamos todos um pouco cansados.  

O discurso de Oprah Winfrey na festa do Globo de Ouro foi o clímax de uma caminhada legítima e positiva da mulher. Em busca do seu espaço e a paridade de direitos com o homem há várias décadas, a mulher hoje se nega a ser assediada e oprimida em um mundo ainda marcado pela supremacia masculina. 

Como mulher e negra – portanto duplamente vulnerável – Oprah deu voz a muitas de suas colegas do meio cinematográfico e artístico que trabalharam para construir uma carreira e no caminho foram submetidas a chantagens, assédios, passando até mesmo pelo “teste do sofá”. O discurso incluiu igualmente todas as vítimas de abusos e violências sexuais de qualquer espécie.  A apresentadora comoveu e convocou com seu inflamado e emocionado discurso. 

Pouco depois, outras mulheres tomaram a palavra.  Cem francesas publicaram uma carta com outra visão sobre a questão.  Entre elas, ninguém menos que a grande e belíssima atriz Catherine Deneuve e também a pensadora e escritora Catherine Millet.  Com a visão do feminismo francês – bem diferente do estadunidense – criticaram o tom com que as denúncias de assédio vêm sendo feitas do outro lado do Atlântico.  E apontaram para o que poderia ser um “machismo às avessas”, sendo os homens vítimas de denúncias irresponsáveis e extremistas. 

Catherine Deneuve pediu desculpas às vítimas pelo mal-estar que sua carta causou.  Mas deixou bem claro que o fazia “a elas e só a elas”.  Ou seja, não pretendia incluir em seu pedido de desculpas as feministas de além-mar.  As reações foram fortes e muitas, na França mesmo e nos Estados Unidos mais ainda. As cossignatárias francesas foram acusadas de serem inimigas da liberdade e coniventes com os abusos sexuais cometidos pelos homens contra as mulheres. 

Com temor e tremor, registro meu sentir.  Impossível não compreender e sentir-se solidária com as norte americanas, a luta delas e o luto pela pisoteada dignidade da mulher.  É fato que não apenas ao norte do Equador, e mais ainda ao sul, mulheres são usadas, abusadas, chantageadas e agredidas.  O assédio pode começar na família, protagonizado pelo pai, o tio, um amigo, o irmão, o primo. As histórias são muitas e dolorosas, compostas de silêncios, pânicos, lágrimas e o pavor de que a noite viesse, a casa dormisse e as visitas indesejáveis se aproximassem. 

A idade adulta e a entrada no mercado de trabalho não melhoram o panorama.  Na vida profissional, até mesmo nos mais inimagináveis e improváveis setores, o assédio se faz presente. E a sombra do abuso cerca, roça, toca, encosta, força e se tem algo de poder, chantageia. O comportamento sinistro é encoberto pela mentalidade que não escuta, não observa, não acredita.  E reforçada pelos que acham que a culpa é da vítima, que saiu de short ou decotada, provocando indevidamente a libido masculina.   

Por outro lado, a convivência entre homens e mulheres supõe uma diferença que quase nunca repele e quase sempre atrai. E esta pode se expressar em galanteios, admiração, olhares, que não podem ser apressadamente classificados de assédio ou abuso.  Este intercâmbio é necessariamente sexuado (não sexual) e pode ser vivido no respeito e dentro de limites éticos. E quando assim sucede, dignifica tanto o homem como a mulher. 

Não necessariamente a admiração de um homem por uma mulher deve derivar para assédio, abuso ou violência.  Portanto, não há que anatematizar qualquer iniciativa dos homens nesse sentido como digna de ser repelida, denunciada e execrada.  O manifesto das francesas não deixa de acertar neste ponto.  Só não me agrada a palavra “importunar”. A associação imediata se faz com “molestar”, que leva ao assédio e à repulsa ao mesmo.  Ninguém gosta de ser importunada, mas de ser admirada com respeito e delicadeza, sim.  Duvido que haja alguma mulher que não goste. 

Gosto que me ajudem a carregar a mala pesada, que abram a porta da sala ou do carro para que eu possa entrar, que puxem a cadeira para que eu me sente. Tantos amigos tive e tenho na vida que já fizeram isso, na frente de meu marido ou na sua ausência.  E jamais me senti assediada. E se o admirador se tornar insistente e inconveniente, a mulher é livre e adulta para fazê-lo sentir que o limite chegou e é melhor parar por ali.  

Entre o feminismo militante das estadunidenses e de muitos outros coletivos na Europa, no Brasil e em toda parte e a visão mais flexível das francesas, haverá uma terceira via?  Quero crer que sim.  E ela reside na tolerância zero com a violência sexual de qualquer tipo: física, emocional, profissional etc.  Porém não ao se criar uma atitude tão antitética em relação aos homens que transforme todos e cada um em potencial agressor e/ou inimigo.

Nada se constrói de positivo se a proposta é lutar apenas “contra” algo.  Lutar apenas “contra” o machismo não nos levará muito longe, parece-me.  Melhor é lutar a favor.  A favor de mais educação e formação para as mulheres, mais reconhecimento de sua competência, mais respeito à sua diferença, mais equidade e justiça para avaliar seu desempenho junto aos colegas homens, mais esforços para que a equiparação salarial para iguais competências seja uma realidade.

Senão, como ficariam as obras literárias, musicais e artísticas em que a beleza da mulher é cantada e louvada? A canção de Vinicius de Moraes e Tom Jobim sobre uma garota que passava em Ipanema rumo à praia celebra a beleza e o encanto daquela mocinha sem deslizar nem um milímetro para a grosseria ou a falta de respeito.  Por outro lado, há canções, textos pretensamente literários e manifestações supostamente artísticas que, na verdade, são de extremo mau gosto e desrespeito e não ajudam em nada o processo de emancipação da mulher. 

Um mundo onde não se possa mais cantar “Garota de Ipanema”, onde os poemas de Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda e outros sejam banidos como misóginos e machistas, onde as pinturas e esculturas que retratam o corpo feminino com suas curvas e relevos sejam postos sob suspeita será um mundo enfadonho, opaco e desagradável.  Não humanizará ninguém e muito menos as mulheres. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)

  Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

TEXTO PARA SER LIDO NO EVENTO NO TEATRO CASA GRANDE PELA DEMOCRACIA E PELA ELEGIBILIDADE DE LULA



Por Leonardo Boff

Por razões de saúde na minha família, não pude estar neste evento no teatro OI Casagrande, no Leblon, pela democracia e pela elegibilidade do ex-presidente Lula. Como forma de estar presente envio este texto de reflexão.
Companheiros e companheiras, querido amigo e presidenciável Lula (lá onde estiver).
Saúdo a vocês todos e a todas que não se renderam à covardia, à mentira oficial e mediática, à explícita cumplicidade do Judiciário e à geral venalidade de boa parte da classe política.
Estamos num momento crucial de nossa história que nos obriga escolher um lado. Tornou-se claro que estão se enfrentando dois projetos que irão definir o futuro de nosso pais: a reconolização ou a refundação.
O projeto da reconolização do Brasil, força-o a ser mero exportador de commodities para os países centrais. Isso implica mais que privatizar os bens públicos mas de desnacionalizar nosso parque industrial, nosso petróleo, grandes instituições públicas, quem sabe, até universidades. Trata-se de dar o maior espaço possível ao mercado concorrencial e nada cooperativo e reservar ao Estado só funções mínimas.
Este projeto conta com aliados internos e externos. Os internos são aqueles que deram o golpe e aqueles 71.440 multibilionários que o IPEA sob Jessé Souza elencou e que controlam grande parte das finanças e financiam o Estado  com pesados juros. O aliado externo são as grandes corporações globais, interessadas em nosso mercado interno e principalmente o Pentágono que zela pelos interesses globais dos Estados Unidos.
O grande analista das políticas imperiais, recém falecido, Moniz Bandeira e  o notável intelectual norte-americano Noam Chomsky bem como Snowden nos revelaram a estratégia de dominação global. Ela se rege por três ideias forças: primeira, um mundo e um império; a segunda, a dominação de todo o espaço (full spectrum dominace), cobrindo o planeta com 800 bases militares, muitas com ogivas nucleares. É prevista, sob o olhar do neoliberal presidente da Argentina, Macri, uma grande base na tríplice fronteira (Brasil, Paraguai, Argentina) para controlar o Brasil e particularmente o Aquífero Guarani, decisivo para o futuro próximo de grande parte da humanidade sedenta e que poderia abastecer de água o Brasil por 300 anos; a terceira, desestabilizar os governos progressistas que estão construindo um caminho de soberania própria e que devem ser alinhados à lógica imperial.
A desestabilização não se fará por via militar, mas por via parlamentar, já ensaiada eficazmente em Honduras e no Paraguai e agora no Brasil. Trata-se de demolir as lideranças carismáticas, fazer da política o mundo do sujo e desmantelar políticas sociais para os pobres. Um conluio foi arquitetado entre parlamentares venais, estratos do judiciário, do ministério público e da polícia militar, secundados pela mídia conservadora que nunca apreciou a democracia e sempre apoiou os golpes.
Conseguiram apear a presidenta Dilma, democraticamente eleita e instalar um Estado de exceção, antipopular, corrupto e violento. Todos os itens político-sociais pioraram dia a dia.
O outro projeto é o da refundação de nosso país. Ele já vinha sendo esboçado muito antes mas ganhou força sob o governo do PT e aliados, para o qual a centralidade é dada aos milhões de filhos e filhas da pobreza, descendentes da senzala, apesar dos constrangimentos impostos pelo neoliberalismo imperante no mundo e no Brasil. Junto com a garantia do substrato vital para milhões de excluídos através dos vários projetos sociais, foi a dignidade humana, sempre aviltada, que foi resgatada. Esse é um dado civilizatório de magnitude histórica.
Para todos nós que estamos aqui presentes, esse projeto da refundação do Brasil sob outras bases, com uma democracia construída a partir de baixo, popular, participativa sócio-ecológica e aberta ao mundo constitui, certamente nosso sonho bom e nossa utopia alviçareira.
Três pilastras a sustentarão: a natureza de riqueza singular, fundamental para o equilíbrio ecológico da Casa Comum, a Terra, a nossa cultura criativa, original, diversa e apreciada no mundo inteiro e, por fim, o povo brasileiro inteligente, inventivo, hospitaleiro e místico a ponto de pensar que Deus é brasileiro.
Essas energias poderosas poderão construir nos trópicos, não direi o sonho de Darcy Ribeiro, a Roma dos trópicos, mas uma nação soberana, ecumênica que integrará os milhões de deserdados e que contribuirá à nova fase da humanidade, a planetária, com mais humanidade, humor, alegria e que sabe conjugar trabalho com festa. Importa derrotar as elites do atraso e anti-nacionais que representam um Brasil, agregado e sócio menor do projeto-mundo.
Não anuncio otimismo, mas esperança. Santo Agostinho que não era europeu mas africano, um dos maiores gênios do cristianismo, bispo de Hipona, hoje Tunísia, deixou escrito em sua biografia, as Confissões, esta palavra que será a minha última.
A esperança, já o disse muitas vezes, tem duas formosas irmãs: a indignação e a coragem.
indignação para rejeitar tudo o que se apresenta como injusto e ruim.
coragem para transformar a política do Brasil de ruim e péssima em boa e justa e refundar um Brasil onde todos possam caber, a natureza incluída.
Hoje precisamos cultivar a indignação contra as maldades oficiais que transbordaram o cálice da amargura. E a coragem para irmos às ruas, às praças, quem sabe, a Porto Alegre, para salvar a democracia, garantir a possibilidade da candidatura presidencial de Lula e assegurar um país soberano, nosso, com um destino definido pelo próprio povo.
Alimentamos a certeza que chegará o dia em que a justiça e a igualdade triunfarão. Uma sociedade não pode se sustentar sobre a injustiça, a profunda desigualdade e a violência estrutural. A luz tem mais direito que todas as trevas que nos estão ocultando o horizonte.
Obrigado a todos e caminhemos juntos no mesmo compromisso por um Brasil de tipo diferente.
Leonardo Boff
Petrópolis/ Rio, 16 de janeiro de 2018


Leonardo Boff é teólogo e escreveu o livro São José, a personificação do Pai, Vozes 2005.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

LULA E O JULGAMENTO DO JUDICIÁRIO


 por Frei Betto

       Lula, o mais destacado líder popular brasileiro da atualidade, vai a julgamento dia 24 de janeiro. Não há como ficar indiferente ao fato.
       A expectativa deixa a nação em suspenso. E a divide: de um lado, aqueles que já o pré-julgaram e esperam apenas que a sentença seja confirmada pelos juízes de Porto Alegre; de outro, os que afirmam não haver suficientes provas para condená-lo, e as acusações estão de tal maneira impregnadas de caráter político que extrapolam o exercício imparcial da Justiça.

       Estamos em ano de eleição presidencial. Vários candidatos em potencial aguardam o veredicto para tomarem uma decisão. Com Lula no páreo a disputa fica bem mais difícil para os neocandidatos. É o que apontam as pesquisas eleitorais.

       Lula adotou uma firme postura frente às acusações que lhe imputam: o ônus da prova cabe ao acusador. Ele se declara inocente, vítima de uma conspiração do Judiciário movido por forças aparentemente “ocultas”.

       Os que derrubaram Dilma e empossaram Temer miraram no que viram e acertaram no que não viram. Lula, após oito anos de mandato presidencial, saiu do Planalto com aprovação de 87% da opinião pública. É um dado significativo. E ainda conseguiu emplacar por duas vezes a eleição de Dilma para o comando do país.

       Armou-se um golpe parlamentar, à semelhança dos ocorridos em Honduras e Paraguai, defenestrou-se Dilma do poder para dar lugar a Temer, acusado de graves delitos. Porém, a costura saiu pior que o remendo. Temer não consegue alcançar 5% de aprovação. Governa graças ao descarado “franciscanismo” que mantém a maioria da Câmara dos Deputados refém dos cofres do Tesouro Nacional, cuja chave Temer traz em mãos.

       Nada indica que Temer logrará fazer aprovar a tão almejada (por ele) reforma da Previdência. Reeleger-se é muito mais importante para a bancada governista do que enfiar agora mais dinheiro no bolso e sofrer desgaste político. Afinal, muitos governistas ostentam no pescoço a corda da Lava Jato, e a reeleição é o modo mais indicado de se manterem afastados do patíbulo.

       Qualquer que seja o resultado do dia 24, Lula sai ganhando: absolvido, ficará livre das acusações que lhe são feitas. Se condenado, se tornará um mártir político do Judiciário que condena uns e se mantém cego e leniente diante de outras figuras políticas que cometeram delitos comprovados em imagens e gravações exibidas no noticiário.

       Na verdade, quem estará sentado no banco dos réus, dia 24, não será o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva. Será o Judiciário brasileiro.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.
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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

SOBRE VENCEDORES E VENCIDOS: UMA REFLEXÃO OPORTUNA E IMPORTUNA


Por Ivone Gebara

Em tempos de desesperança e tendência a se calar na multidão postamos um artigo de 2016 para reacender a chama da esperança.

“Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ou vir
E se ela for de samba
Há de querer ficar"


Não chore presidenta Dilma porque tem muita gente no bom samba da dignidade que se recusa a calar sua voz, se recusa a parar de gingar, se recusa a parar de pensar, de escrever, de analisar o momento presente e de cantar, e cantar... Liberdade, liberdade, liberdade. A vida brasileira está confusa e atirar pedras ou lamentar o leite derramado não resolve a situação! Convencer os outros de que há uma única culpada de nossos atuais problemas é no mínimo assustador e incompreensível. O ser humano habituou-se a encontrar ‘bodes expiatórios’ que levam a culpa sem coletivizá-la e sem tornar a responsabilidade social e política uma responsabilidade comum assumida.

Não chore ainda não presidenta, não vale chorar porque os que se julgam vencedores e creem em sua vitória estão alegremente atribulados e acuados. Mas qual é mesmo essa vitória tão grande? Uma lei expressa em palavra inglesa, ‘impeachment’ pareceu mudar os rumos da vida de muitos e a sua? É ela que os tornou vitoriosos? É ela que nos tornou vencidos com você?

Depois de nosso orgulho de ter você como primeira presidenta, de saber de suas lutas e fraquezas como as de todas nós, com você estamos ouvindo novos impropérios sobre a incapacidade das mulheres de fazer política original e eficaz. Não nos deram muito tempo e nem muitos espaços...

Não chore presidenta... Tem muita gente sentindo a mesma raiva que você deve estar sentindo, mas reunindo forças de vida por que “tanto menino novo nasceu” nessa semana, tanto “jovem se apaixonou pela vida”, “tanto velho dançou nas praças”, “tantas andorinhas estão cantando”, tanta “flor nasceu no campo”,... Embora, o som do violão esteja fraco...

Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir

Olé, Olé, Olá..
.
Depois de uma noite de quase insônia na qual pedaços da fala da presidenta Dilma explicando e se defendendo em meio à fala acusatória de alguns senadores povoavam involuntariamente meus pensamentos, decidi levantar-me para não aumentar mais minha angústia. A música do Chico Buarque “Olé, Olé, Olá” estranhamente fazia um fundo musical insistente na minha tristeza. Passei do quarto para meu pequeno escritório e, não sei bem porque olhando minha estante de livros tomei em minhas mãos um velho livro sobre ‘a oração de Jesus' escrito em 1973, pleno período de governo militar, pelo saudoso amigo Padre José Comblin. Folheei o livro e algumas palavras que faziam as vezes de pequenos subtítulos começaram a desfilar sob meus olhos... Solidão, abandono, derrota, vencedores, vencidos, reconhecimento... Li um e outro parágrafo como se quisesse buscar neles a calma necessária para começar o dia. Sentia-me atravessada pelo dia e noite de julgamento de nossa presidenta e depois pelo dia do veredito final. Mal conseguia imaginar as noites que ela passou depois das perguntas ardilosas e armadilhas que os juízes senadores lhe estendiam. Parecia-me aviltante que ela tivesse que repetir várias vezes a mesma informação porque as excelências presentes só tinham em vista a pergunta que queriam lhe fazer em público. Mal ouviam o que ela dizia atentos aos seus celulares, às câmaras de televisão e a buscar um ou outro olhar de cumplicidade entre os seus pares. Sob o pretexto de julgar seus atos políticos se mostravam ao público como justos e justiceiros defendendo o pobre povo brasileiro contra a primeira mulher presidenta de nossa história!

Minha tribulação aumentou com essas lembranças e por isso resolvi escrever convencida que cantar, escrever, cozinhar 'parecem com não morrer' sobretudo diante da confusão do momento político e das trevas que sem querer invadem a alma.

Espontaneamente pensei que apenas fazer de novo críticas aos opositores de Dilma, à sua superficialidade democrática e humanista não aliviariam meu coração. Da mesma forma, cantar as glórias da presidenta não me parecia o melhor caminho. Provavelmente muitas amigas e amigos estariam fazendo as mesmas constatações e não tinha mais vontade de beber de novo da mesma massacrante situação vivida que parecia não me levar a nenhuma saída. Também fazer análises políticas a partir da conjuntura nacional e internacional não era o meu forte...

Lembrei-me então do que havia lido no livro de José Comblin e me voltou a ideia de que nem sempre os vitoriosos, os que têm o êxito imediato são de fato os construtores da história da dignidade humana. O êxito talvez gere a boa consciência do dever cumprido, da vitória aparente da legalidade, do bom resultado obtido pelo desempenho social, da vitória sobre os adversários... Entretanto, o êxito ou a vitória não levam à reflexão, a interiorização e análise de nossos comportamentos e sentimentos. Que insensatos /as somos! Inebriamo-nos facilmente com nossa própria imagem acreditando ser o centro do mundo. Esquecemos que a vitória de Pilatos, do Império Romano, dos doutores da lei e até do povo acusador na realidade foi o golpe mortal à liberdade. E por isso foi um golpetambém contra os acusadores. Condenar Jesus à crucifixão e à morte foi uma vitória daqueles a quem a integridade das ações de Jesus molestava no imediato. A História tem nos ensinado embora não tenhamos aprendido que não há uma relação lógica de coerência entre os atos humanos realizados e os resultados obtidos e, sobretudo os considerados vitoriosos ou exitosos. Provavelmente Hitler e seus aliados mais próximos sentiram-se vitoriosos quando as câmaras de gás e os fornos crematórios conseguiram eliminar milhares de seres humanos...

Estupenda vitória! Limpeza étnica realizada! Missão cumprida! Também os ditadores sanguinários da América Latina vibraram de alegria quando torturaram e mataram milhares dos chamados 'inimigos da pátria'... Afinal conseguiram o que esperavam, ou seja, eliminar os 'vermes' que buscavam a liberdade do povo. E quantas guerras vitoriosas foram glorificadas apenas porque as armas que mataram vidas significaram o sucesso das empresas produtoras de artefatos bélicos? A história humana é de fato eivada de uma mistura imensa de sentimentos, palavras, ações salvíficas e cruéis que levam à vida e à morte num movimento sem fim.

Quase sempre pensamos que a vitória é o resultado do sucesso provisório de nossa ideologia, de nossa empresa, de nossa competência ou de nosso sonho por mais extravagante que seja ele. Mas a história também acaba por desmentir a vitoria dos vencedores... Só que não a história imediata cheia de conflitos passionais, tecida de mentiras vestidas de verdade, de encobrimentos e acusações mútuas, de golpes de luva de pelica sob a qual se escondem alfinetes envenenados. Também não a história oficial dos Impérios que se sucedem e escrevem suas vitórias ensinadas e aprendidas nas escolas. Mas a história que desmente as grandes vitórias das guerras de uns contra os outros é a pequena história dos pequenos amores e das pequenas ações de justiça e solidariedade que sustentam a dignidade da vida. Essas pequenas histórias irrompem cada dia de diferentes maneiras...

Num campo de concentração um decide dar a vida no lugar de outro, a outra dá a sua porção de alimento à colega grávida, a lavadeira entrega seu salário para comprar o remédio para a filha da vizinha, um homem ajuda um marginal que matou seu filho, mulheres denunciam a violência infantil...

Estas e outras tantas pequenas histórias são as narrativas muitas vezes desconhecidas das pequenas vitórias da vida. Histórias ocultas, de personagens desconhecidos e insignificantes mantêm a chama da dignidade humana!

Para além das polarizações da história imediata na qual cada indivíduo espera convencer o outro ou atirá-lo num covil de leões famintos, para além do reducionismo da realidade limitada e perspectivista que apenas meus olhos são capazes de ver, há um tênue fio de contradição que se instaura em todas as posições. É ele que nos fará pensar e buscar a de novo a liberdade... É ele que convidará as novas gerações a analisar os fatos passados e perceber que é esse fio obscuro e incômodo, talvez enredado a muitos outros o portador da novidade que nos fará reviver com dignidade. É a contradição e o paradoxo de nossos atos que nos convida ao pensamento e a novas ações. É ele que revela a fragilidade de nossos pensamentos e de nossos atos e nos remete à limitada condição humana. É a suspeita em relação as nossas próprias verdades e interpretações, aos poderes que utilizamos aos abusos que deles fazemos que conduzem a História para frente. São esses incômodos no pensamento e nas emoções, na consciência e no coração que emergem sem querer e que persistem apesar dos pesares... São eles que desmentem a vitória dos vencedores imediatos e a tragédia vivida pelos vencidos que não são apenas os “outros” partidos, mas o povo vivendo em condições sub-humanas. São eles que restauram de novo a história da dignidade humana e nos fazem esperar de novo apesar dos medos que nos acompanham sempre.

No presente, os vencidos parecem cabisbaixos mesmo quando gritam sua dor e decepção nas praças públicas. Sentem-se feridos e abandonados até por quem antes parecia estar de seu lado...

Os vencidos são deixados aos seus próprios problemas e os que eram próximos deles até negam conhecê-los, os que antes os aconselhavam para serem ‘ganhadores’ desviam-se de seus caminhos, orgulhosos de serem também indiretamente vitoriosos, pois afirmam que seus sábios conselhos não foram seguidos. Facilmente, em meio à derrota, desenvolvem outras vitórias, alinham-se aos moralmente corretos, fazem teoria ‘clara e distinta’, explicam as razões dos vencidos, querem ser bons e justos sem perder a aura de sua moralidade. Escondem-se usando mil e um pretextos e não aderem mais à causa que os movia e os fazia brilhar no provisório palco da história. Hipócritas! Sepulcros caiados!

Os vencidos parecem desamparados... Nem suas velhas esperanças os sustentam visto que os vencedores parecem ter se apropriado delas... Apropriaram-se de seus feitos, de sua linguagem, de suas vestes, de seus amigos e de suas leis. Desnudaram os vencidos de suas crenças, roubaram a ‘bandeira nacional’ de todos e fizeram dela a veste de alguns privilegiados sedentos de glória e poder.

Porém, os vencidos por incrível que pareça não são apenas os que perderam uma partida de futebol, ou perderam as eleições, ou um trabalho, ou um lugar ao sol... Somos todos nós como humanidade buscando o sentido de sua vida embora só saibamos considerar a nossa individualidade.

Em tudo isso, ainda resta a contradição, o paradoxo, aquela experiência que nos mostra que no fundo todos nós somos menores que nossas vitórias e bem maiores que nossas derrotas. Todos nós somos de alguma maneira, vencidos e vencedores. Todos nós temos que recomeçar nossa busca comum de dignidade para além dos fracassos experimentados. Nosso futuro se chama hoje...

Por isso, querida presidenta Dilma, “não chore ainda não”, não choremos porque temos razões para não chorar... Olé, Olé, Olá...

Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

LUTHER-KING, O DIREITO DE SONHAR



Por Marcelo Barros

Nos Estados Unidos, essa semana começa com um feriado. A cada ano, na terceira segunda-feira de janeiro, festeja-se o aniversário do nascimento do pastor Martin-Luther King (29/ 01/ 1929). É um dia consagrado à celebração da igualdade racial e da liberdade cidadã. Nesse ano, no qual comemoramos 50 anos do assassinato de Luther King, (04 de abril de 1968), é importante rever o quanto avançamos no caminho da justiça e da liberdade e que novos desafios se apresentam para vivermos, hoje, a herança desse mártir da paz.  
Vivemos em um país no qual todas as pesquisas revelam o recrudescimento do racismo e da discriminação de classes. Aqui no Brasil, não temos, como nos Estados Unidos, Igrejas que se dizem cristãs e ainda estão divididas, entre “Igrejas de brancos” e “Igrejas de negros”. No entanto, a segregação social e racial penetra também nas Igrejas. No Brasil, há grupos que se consideram cristãos e condenam como idolátricos e demoníacos cultos afrodescendentes. Julgam sem conhecer e, a partir de uma leitura superficial e descontextualizada de alguns textos bíblicos, os condenam. Dão, assim, um péssimo testemunho sobre Jesus, exclusivista, desrespeitador das outras culturas e cruel com os pobres.  
Quase sempre, na América Latina e no Caribe, ser negro é sinônimo de ser pobre. A África do Sul superou o apartheid político, mas mantém uma imensa desigualdade racial, baseada na divisão econômica. Com relação a isso, ainda ressoam as palavras do pastor Martin-Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Mais do que a violência de poucos, me assusta a omissão de muitos”. Ele explicava: “Uma pessoa que não descobriu nada pela qual aceitaria morrer, não está ainda pronta para viver”.
A causa pela qual ele deu a vida foi a dignidade de todo ser humano, concretamente daqueles que não veem reconhecidos seus direitos de cidadania. Atualmente, o mesmo país que faz feriado para homenagear Luther-King aceita que o seu governo construa monstruosos muros de segregação para separar o seu território do México. A maioria do povo não sabe onde fica o Iraque ou a Líbia e nem se interessa pelo que se passa lá. Entretanto, em seu nome, o governo ataca países da África e da Ásia, mata milhares e destrói tudo o que precisa para explorar o petróleo, ali abundante. Enquanto isso, nas próprias cidades do seu paraíso capitalista, 40 milhões de cidadãos (não de migrantes) sobrevivem abaixo do nível da pobreza.
No Brasil, se fôssemos fazer feriado para cada pessoa que,  nesses últimos 40 anos, deu a vida pela justiça e pela liberdade de todos, não sobraria, no ano inteiro, um dia sem memória de algum mártir. Por isso, o melhor é que na memória de Martin-Luther King, pensemos nos tantos irmãos e irmãs que deram a vida pela causa da justiça e da paz em nosso país. O pastor Luther-King fez isso movido pela fé. Muitos dos mártires latino-americanos também tiveram  a mesma motivação. Mesmo os que não eram ligados a nenhuma Igreja, podem ser considerados testemunhas do projeto divino para esse mundo. Afinal, o evangelho diz que Jesus afirmou: "Bem-aventuradas são todas as pessoas que têm fome e sede de justiça, porque delas é o reino dos céus" (Mt 5, 1- 12).  

A sociedade em que vivemos opõe sonho e realidade. Chega a ensinar que sonho não é real. Assim, a única saída seria submeter-se à realidade dura e cruel, imposta pela ditadura do mundo, dominado pelo dinheiro. Graças a Deus, continuamos a ter profetas e poetas que nos fazem sonhar e acreditar no sonho que temos. Em março, em Salvador, BA, um fórum social mundial reunirá pessoas de todo o mundo que acreditam no sonho e se mobilizam para realizá-lo. O tema dos fóruns sociais têm sido: "Um outro mundo é necessário. Juntos, podemos torná-lo possível".  Se acreditarmos nesse sonho, nos unimos a essa caminhada.
Em várias pesquisas, as pessoas declararam que, em todo o século XX, o mais importante discurso, proferido nos Estados Unidos, foi o que Martin Luther-King pronunciou no 28 de agosto de 1963. Nos degraus do Lincoln Memorial em Washington, ao encerrar a marcha por direitos civis, diante de mais de 200 mil pessoas, ele começou seu discurso com as palavras: “Eu tenho um sonho”. Apesar de ter sido proferido há 55 anos, suas palavras ainda se mantêm atuais e proféticas: "O meu sonho é viver em um mundo no qual os meus filhos negros possam andar de cabeça erguida e conviver de igual para igual com seus colegas brancos, frequentar os mesmos colégios e participar dos mesmos ambientes sociais. (...) Sonho com um mundo no qual possa ver meus filhos julgados por sua personalidade e não pela cor de sua pele”.
Graças a Deus, muita gente no mundo ainda alimenta esse sonho e se dispõe a enfrentar todos obstáculos e desafios para realizá-lo.
Para quem vive uma busca espiritual, a espiritualidade está ligada à capacidade de sonhar e à opção de lutar pacificamente para tornar realidade aquilo que sonhamos. A Bíblia contém a revelação progressiva de um projeto divino de paz, justiça e comunhão entre os seres humanos e com a natureza. Luther King nos recordava: “Lembremo-nos de que existe no mundo um poder de amor que é capaz de abrir caminho onde não há caminho e de transformar o ontem escuro em um amanhã luminoso”.  


 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.br  

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

MUDANÇA DE ANO


Frei Betto


       O que há de especial no início de um novo ano? Não somos trilobitas. Somos humanos, dotados da capacidade de imprimir ao tempo caráter histórico e, à história, sentido. Mudar de ano é rito de passagem. Ressoa em nosso inconsciente o alívio por terminar um ano de tantas decepções, frustrações e crises, e a expectativa de, em breve, celebrar conquistas, avanços e vitórias.

       Vivemos premidos pelo mistério. Como as partículas subatômicas, somos regidos pela lei da indeterminação. Essa impossibilidade de prever o futuro suscita angústia, e nos induz a tentar decifrá-lo por via da leitura dos astros, das cartas, da premonição de videntes, dos búzios ou da rogação aos santos protetores.

       Eis uma característica da pós-modernidade: em plena era da emergência da física quântica e da falência do determinismo histórico como ideologia, acreditamos que o futuro está escrito nas estrelas. 

       Daí a inércia, a indignação imobilizadora, a impotência frente aos escândalos éticos, ao descaramento com que corruptos são absolvidos por seus pares, essa letargia que em nada lembra um povo que inundou as vias públicas pelas Diretas Já, a queda do presidente Collor, e contra o aumento das tarifas de ônibus.

       O Brasil já viveu tempos mais sombrios, como os anos de chumbo, os generais metendo no coldre as chaves dos parlamentos, a utopia dependurada no pau-de-arara, as rotas do exílio a se multiplicarem, os mortos e desaparecidos enterrados nos arquivos secretos das Forças Armadas. Ainda assim, havia sonho, e ele não era motivado pela ingestão química; brotava da fome de liberdade e justiça, fomentava o desejo irrefreável a adjetivar de novo a criatividade incensurável – o cinema, a bossa, a literatura, o tropicalismo.

       No passado, o futuro era melhor. Hoje, imersos nessa sociedade da hiperestetização da banalidade, na qual as imagens contraem o tempo e a rede virtualiza o diálogo na solidão digital, andamos em busca da razão de viver. Perdemos o senso histórico, trocamos os vínculos de solidariedade pela conectividade eletrônica, vendemos a liberdade por um punhado de lentilhas em forma de segurança.

       Neste 2018, seremos chamados às urnas. Haveremos de tentar discernir os idealistas dos arrivistas; os servidores públicos dos que se afogam no ego destilado na embriaguez dos aplausos; os movidos pela intransigência dos princípios éticos dos que miram os recursos do Estado como carniça fresca ofertada à sua gula insaciável.

       Ano de comemorar o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 30º de nossa atual Constituição. Impossível celebrar conquistas em direitos humanos enquanto a polícia estigmatiza como suposto bandido o morador de favela; o Judiciário mantém-se indiferente à reforma do sistema prisional; indígenas e quilombolas têm suas terras invadidas; a frouxidão da lei cobre de imunidade corruptos e, de impunidade, bandidos. 

       Não basta o propósito de fazer novo em nossas vidas o ano de 2018. É preciso fazer novas as realidades que nos cercam, de modo que ocorram mudanças efetivas, e a paz floresça como fruto da justiça.
       Feliz 2018, Brasil!

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
        

Copyright 2018 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

RAÍZES PROFUNDAS (E FREQUENTEMENTE INVISÍVEIS) DA VIOLÊNCIA


  
Eduardo Hoornaert.



Todos lamentamos as crescentes ondas de violência em nossas sociedades. Contudo, nem sempre tomamos consciência de suas raízes profundas, que frequentemente ficam tão escondidas que acabam sendo confundidas com fatores considerados neutros. Aqui também um estudo da história é esclarecedor, como se verá em seguida.



A tecnologia é neutra?



Visto superficialmente, o desenvolvimento tecnológico parece neutro, mas numa análise histórica se revela gerador de violência. Basta contemplar a história do Brasil, de Cuba, do sul dos Estados Unidos e de Colômbia, para verificar como a tecnologia de transformar cana de açúcar em tabletes de rapadura (açúcar não refinado) está na origem do tráfico negreiro e das misérias da escravidão, que perduram até hoje. Que o diga Jessé Souza, autor do best-seller ‘A elite do atraso’ (Leya, São Paulo, setembro 2017).



O império do algodão.



Neste texto me concentro numa história concreta: a história da produção tecnológica de tecidos a partir de algodão. Três anos atrás, o escritor americano Sven Beckert publicou um livro impressionante, que demonstra como a tecnologia do algodão mudou, nos últimos séculos, a face da terra. O título do livro é Empire of Cotton (Vintage Books, New York, 2015) e mostra como o ‘império inglês’, na realidade, é o ‘império do algodão’. Pelo que me consta, o livro não foi traduzido nem ao castelhano, nem ao português. Nele se pode ler, a partir do exemplo da tecnologia do algodão, como se deu o surgimento e o crescimento do capitalismo industrial, a lógica da agricultura industrial e das multinacionais de alimentos etc.

Ao longo de milhares de anos, os povos cultivam seu algodão em equilíbrio com as lavouras de alimentos. Há um equilíbrio. Como se entende então que, a partir do final do século XVIII, depois de muitos milhares de anos de crescimento econômico lento em toda a humanidade, algumas partes dessa humanidade repentinamente se tornam muito ricas, enquanto outras mergulham na pobreza? Eis o que a história do algodão industrial mostra, pois ela marca o início da Revolução Industrial. Embora, na atualidade, a indústria de algodão tenha sido ultrapassada por outras indústrias, o produto continua a ser importante para o emprego e o comércio mundiais. A produção mundial, em 2013, foi de 123 milhões de fardos, cada um com cerca de 180 quilos, suficientes para 20 camisetas por pessoa.

Estima-se que, já em 1621, a Companhia das Índias Orientais  criada pelos ingleses em 1600  importou cerca de 50 mil peças de produtos de algodão para a Grã-Bretanha. No entanto, esse comércio era marginal em comparação com o que os comerciantes do Oriente Médio e da Índia negociavam. Esses últimos detinham, durante séculos, o comércio internacional nas mãos, ou seja, ‘vestiam a humanidade’. Mas, a partir do momento em que os ingleses começaram a ‘dominar as águas’ (‘rule the waves’), ou seja, possuíam as frotas marítimas mais poderosas do mundo, as coisas mudaram.  A tese do livro acima citado consiste em mostrar que, concomitantemente com a presença sempre mais forte do Império Britânico em todo o planeta, se deu o primeiro processamento de algodão na Inglaterra, exatamente em 1784.



A tecnologia do algodão na fábrica de Samuel Greg.



Em 1784, a cidade inglesa de Liverpool se tornou um rico porto de tráfico de escravos e é com base nessa riqueza negreira que a emergente indústria de algodão pôde florescer. Membro de uma família negreira bem situada, Samuel Greg reuniu em 1784, numa pequena fábrica às margens do Rio Bollin, algumas máquinas de fiação ultramodernas (conhecidas como water frame), movidas a água (ainda não a vapor). Órfãos e trabalhadores domésticos de aldeias da região começaram a trabalhar com um estoque de algodão proveniente do Caribe. Toda novidade de Greg consistia no fato que ele não utilizava mais a força do músculo humano, mas a queda d’água. Embora modesta, sua fábrica era algo novo. Ela estava destinada a  mudar os destinos do mundo. Pela primeira vez na história humana, a produção de fios era feita por máquinas não impulsionadas por mãos humanas.

A fábrica de Greg provocou mudanças que ele mesmo nunca imaginou. A matéria-prima que ele precisava para as suas máquinas era fornecida por comerciantes de Liverpool, os quais a haviam comprado de navios provenientes da Jamaica e do Brasil. Greg passou a expulsar fiadores e tecelões indianos que até então dominavam a produção, tanto no mercado doméstico quanto no internacional. Além disso, ele lutou para que grande parte de sua produção deixasse o Reino Unido e sustentasse o comércio de escravos na Costa Oeste da África, além de vestir seus próprios escravos em Santo Domingos, no Caribe. Em cima, ele começou a atender usuários fora da Inglaterra, na Europa Continental. Assim se formou uma vasta rede internacional. Partindo de Liverpool, os comerciantes britânicos dominavam os mares e formavam redes comerciais que se estendiam por todo o globo.



O triângulo Europa, África, América.



Desse modo se formou um triângulo de consequências, que eram positivas para uns, nefastas para outros. Eis os pontos do triângulo: a. a Inglaterra (Liverpool) que, naquela época, controlava os mares com sua frota comercial e militar; b. a África Ocidental, onde os ingleses trocavam seus tecidos por escravos; c. a América, que comprava escravos em troca de fardos de algodão cru cultivados por escravos da África. Era a repetição do triângulo feito em torno da produção de açúcar no Brasil, no Caribe e na América do Norte, mas desta vez com repercussões mundiais. Os fardos de algodão eram usados como carga de retorno a Liverpool ou Manchester, onde os tecidos eram fabricados, assim como, anteriormente, os fardos de tabaco enchiam os navios negreiros, depois de descarregar os fardos humanos. Desse modo, a carga dos navios estava sempre assegurada.

As máquinas maravilhosas de Greg, impulsionadas pela força da água (e, mais tarde, por vapor), impulsionavam outra inovação de grande importância: passaram a ser operadas por assalariados e se tornaram fonte de riqueza por causa da grande acumulação de capital. Isso criou um novo tipo de Estado, impulsionador do ‘progresso’, ou seja, criado como principal pilar do novo império do algodão. A partir de um embrião local, nas redondezas de Liverpool, a Inglaterra acabou por dominar uma economia global amplamente ramificada e por se apropriar de uma das principais indústrias da humanidade.  Ao ‘vestir a humanidade’, a Inglaterra estendeu suas asas por todo o globo. Eis como nasceu o mundo como a conhecemos hoje.



A monocultura e o estado.



Sob pressão do império do algodão inglês, os agricultores na Ásia e na África foram forçados a entrar na monocultura do algodão, o que resultou, às vezes, em grande escassez de alimentos. Morreram milhões de pessoas em 1877 e, novamente, na década de 1890, tanto na Índia como no Nordeste do Brasil. A especialização em algodão  com seus preços voláteis – dominava o universo do dinheiro. Estamos diante de uma evolução violenta e ao mesmo tempo silenciosa, que causa a morte de milhões de pessoas, enquanto beneficia a poucos ricos. O sistema de processamento tecnológico de algodão, desde o início do século XIX, baseado na monocultura, com vastas plantações e exploradora do trabalho escravo, é fonte de violência. Durante um longo período, os britânicos não conseguiram forçar os agricultores indianos a praticar a monocultura do algodão, não conseguiram controlar os teimosos intermediários indianos, que não estavam dispostos a enviar algodão não processado para a Europa. Era preciso apelar para um Estado forte. Para o império de algodão, com seus barões de algodão, na Inglaterra e, mais tarde, na Europa Continental, era importante ter um forte poder de Estado, que pudesse forçar os agricultores e os trabalhadores a fornecimento e produção permanentes. Assim se compreende que não é coincidência que o século XIX fosse marcado pelo surgimento de poderosos Estados-nação (o termo ‘nação’, aqui, é um eufemismo, como bem explica Fábio Konder Comparato), bem como de um proletariado nas centenas de fábricas de algodão (com fiação e tecelagem mecânicas) na Europa e nas centenas de milhares de fazendas de cultivo do algodão que exploravam escravos, do outro lado do Atlântico.

Isso explica a Guerra Civil Norte-Americana, que teve efeitos globais. O ano 1861, início dessa guerra, foi uma data-chave na rede mundial do algodão. A guerra continuou até 1865. O motivo era a abolição da escravidão. As cidades do Norte da América, onde o algodão era processado, eram a favor da abolição; o Sul rural, onde os escravos proporcionavam riquezas nas imensas plantações, defendia a escravidão a ferro e fogo. O conflito entre o Sul conservador dos EUA e as cidades ao longo da Costa Leste norte-americana tem reflexos até hoje (é só pensar na vitória eleitoral de Donald Trump). Devido a essa guerra, houve de repente uma escassez de algodão no mercado mundial, resultando em aumento de preços. Centenas de fábricas na Europa foram fechadas; centenas de milhares de trabalhadores ficaram desempregados. Os barões de algodão estavam ansiosamente à procura de novas regiões produtoras de algodão. Ao se unir ao Império Britânico, a Índia expulsou os indianos ‘teimosos’ de seus teares e os empurrou em direção à zona rural. O Estado Indiano serviu para cultivar algodão  não para os seus próprios teares ou para as fábricas de algodão da Índia (que surgiram por todo canto nesse período) - mas para ‘o mundo’, ou seja, para a Europa. A história de Gandhi gira em torno dessa realidade. Ao mesmo tempo, a África foi dividida em colônias e também foi direcionada, tanto quanto possível, para a monocultura do algodão. Com a crise da Guerra Civil Norte-Americana, as colônias foram forçadas a produzir algodão para ser processado na Europa. Indianos e egípcios, brasileiros e mexicanos, todos compravam máquinas britânicas e desse modo, o império do algodão provocou uma desindustrialização nos países do Sul. Os fabricantes de tecidos ocidentais fizeram numerosas tentativas para, por meio de pressão exercida pelo domínio colonial (portanto, o governo), destruir o processamento de algodão por fiadores e tecelões locais. Em consequência, fiadores e tecelões tinham de optar por cultivar algodão como assalariados ou, então, desaparecer no proletariado urbano ou se refugiar no campo.



O algodão migra para o Sul.



Mesmo assim, aos poucos o algodão migrou para o Sul. Na década de 1930 surgiu, na então colônia britânica do Egito, uma das maiores fábricas de tecido de algodão do mundo, com 25 mil trabalhadores têxteis. Isso depois de anos de dificuldades criadas pela importação de algodão britânico. Foi um marco na história, pois mostrou que a produção de tecidos de algodão estava aos poucos abandonando a Europa e criando um novo cenário mundial. Em muitos países, a descolonização foi fortemente apoiada pelos fabricantes de algodão e seus trabalhadores. Nacionalismo, emancipação e apoio ao processamento nacional de algodão andavam de mãos dadas. Enquanto a posição dos fabricantes de algodão no Norte enfraquecia gradualmente, os fabricantes do Sul (no Brasil, por exemplo) conseguiram criar um Estado (apoiador) de acordo com suas necessidades. Quebraram aos poucos a hegemonia do algodão do Norte.

No início do século XX, a indústria de algodão da Ásia era a que crescia mais rapidamente e desse modo a produção da matéria-prima voltou para onde ela tinha começado, milênios atrás. Hoje, nossas roupas são fabricadas na China, em Bangladesh etc. (muitas vezes em péssimas condições de trabalho). Se o império do algodão primeiramente se serviu de Estados fortes e apoiadores, ele, a partir da década de 1970, procurou se libertar deles. As multinacionais de algodão e de têxteis tomaram a dianteira e agora ignoram largamente os Estados (que elas primeiro utilizaram para a regulamentação e para os subsídios). Sem obstáculos, elas hoje se instalam onde é mais barato, sem mais nem menos. Pois, no mundo de hoje, são elas que mandam, sem contestação à altura.



O império Monsanto.



Até aqui focalizei a história do algodão. Mas, em se tratar da relação entre tecnologia e violência, não se pode omitir histórias mais recentes, como a do ‘Império Monsanto’, por exemplo. Um Império novo, vinculado à tecnologia do algodão, pois 26% de todos os inseticidas usados no mundo são destinados ao cultivo de algodão. A Monsanto conseguiu impor à Índia seu algodão geneticamente manipulado (algodão Bt), provocando ondas de suicídio entre os agricultores. Ela é famosa por dispor de um lobby fortíssimo junto a governos do mundo inteiro, com uma legião de advogados. Assim conseguiu que se discriminasse, em muitos países, a produção de tecidos a partir de fibras de e cânhamo (hemp, hanf, chanvre), que são quatro vezes mais resistentes do que as fibras de algodão. Depois da Segunda Guerra Mundial, as grandes companhias usaram a problemática das drogas para lançar suspeitas sobre a fibra de cânhamo. Acontece que o cânhamo não precisa de agroquímicos (leia: não precisa de Monsanto) e a planta capta muito CO2, o que é muito interessante em tempos de mudanças climáticas. Felizmente, nas últimas décadas, está ocorrendo um retorno da produção e do processamento de cânhamo.



O império ABCD.



Poderíamos falar aqui igualmente do ABCD. Nunca ouviu falar? Todo mundo conhece as ‘Unilevers’ e as ‘Nestlés’ da vida, mas quem conhece as invisíveis gigantes de alimentosADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus? Assim como o império do algodão, no passado, puxou todo o poder para a Europa, o comércio mundial de cereais e de substitutos de cereais (como a soja) puxa hoje o poder para grandes companhias multinacionais. A ADM (Archer Daniel Midland Company) foi fundada em 1902, a Bunge surgiu em 1818, a Cargill veio em 1865 e a Dreyfus foi criada em 1851. O valor conjunto das vendas das quatro empresas ABCD é maior do que a de muitos países. Em conjunto, somam cerca de 250 bilhões de euros por ano (dos quais, em 2015, a Cargill levou 106 bilhões). Se você analisar os dados do lucro dessas empresas nas últimas décadas, perceberá que os maiores lucros se originam menos da logística do transporte a granel não processado (trigo, soja, milho, café), que beneficia países como o Brasil, por exemplo, mas do primeiro processamento (e posterior transporte a granel) dessa matéria-prima (por exemplo, soja), a serviço da indústria de alimentos (que desemboca nos Supermercados) e de rações animais, sempre beneficiando os países centrais do sistema.  Essas empresas de comércio jamais teriam conseguido ser tão grandes sem subsídios por parte de governos nacionais. Além disso, elas quase não pagam impostos. Porém, sem elas (as empresas ABCD), não haveria fazendas industriais na Europa e não haveria, do outro lado do oceano (com o Brasil na liderança), gigantescas lavouras de monocultura de soja e de milho. Não haveria os supermercados. Assim como o algodão provocou uma concentração nunca dantes vista de riqueza, as ABCD de hoje são o motor de uma agricultura industrial imposta mundialmente, que gera imensas riquezas para poucos. Elas representam, juntamente com as ‘Monsantos’ e as ‘Syngentas’, uma agricultura intensiva de capital, que marginaliza centenas de milhões de famílias da agricultura camponesa e que, além disso, esgota os ecossistemas, pois o transporte global de granel (por navio) é uma das causas do aquecimento global. Esse modelo agrícola faz parte do problema ecológico que enfrentamos, enquanto as práticas agrícolas sustentáveis nas mãos dos agricultores campesinos poderiam ser parte da solução.



Uma nota positiva.



Termino com uma nota positiva: ao lado desses absurdos, surgem, no mundo inteiro, movimentos de resistência, visando devolver às comunidades locais as chamadas ‘comodidades’ (commodities), coisas que são (ou deveriam ser) comuns a toda a humanidade, patrimônios da humanidade: ar, terra, sementes, água, transporte, alimentos. Atualmente surgem, em todos os continentes, soluções criativas que contrariam a fragmentação do planeta pelas ABCD e por outras mãos invisíveis.



(Este texto é baseado num estudo do Frade norbertino belgo-brasileiro  Luc Vankrunkelsven, militante da Wervel (www.wervel.be), a quem, por este caminho, agradeço).  

 Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.


www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/