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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ORDENAÇÃO DE MULHERES? PARA QUAL IGREJA E COM QUAL TEOLOGIA?

Por Ivone Gebara



Minha reflexão embora se abra a um contexto internacional da Igreja Católica Romana se situa mais particularmente no contexto latino-americano até certo ponto menos envolvido na temática da ordenação de mulheres. Nunca fomos assíduas lutadoras nessa reivindicação. Entretanto, nessas últimas semanas em meio ao conturbado contexto político nacional, uma quantidade significativa de textos sobre o assunto tem sido divulgada pelas redes sociais, sobretudo católicas.

Da mesma forma, em diferentes sites nacionais a reflexão sobre a ordenação de mulheres e a possível constituição de uma comissão de estudo no Vaticano para o diaconato feminino tem ocupado espaço significativo. Até uma paróquia da zona leste da cidade de São Paulo organiza para breve um debate sobre o tema. Muitos textos divulgados contam histórias de mulheres que segundo a oficialidade da Igreja Católica foram ilegitimamente ordenadas e, por isso, excomungadas. Calcula-se que mais de duzentas mulheres estejam hoje nessa situação e entre elas há também algumas poucas bispas, ordenadas sigilosamente por bispos refratários às ordens vaticanas. A questão da ordenação das mulheres sai de novo das catacumbas e começa a ver a luz do dia, apesar de envolta em mil e uma dificuldades provenientes de posições de grupos os mais diversos e divergentes.

Uma questão crítica

Reconheço que a efetivação da ordenação de mulheres seria um passo que, segundo algumas pessoas, poderia sanar em parte uma situação de desigualdade pública na sociedade e especialmente na Igreja Católica Romana. Entretanto, é preciso deixar claro que para muitas adeptas e adeptos da ordenação de mulheres trata-se apenas da afirmação de um “direito” de ambos os sexos de representarem Jesus Cristo diante da comunidade e não necessariamente de uma reivindicação feminista. Em outros termos, trata-se de pensar apenas na integração das mulheres ao sacerdócio oficial guardando-se a mesma forma de pensar e viver a Igreja. Critica-se a autoridade católica por não abrir espaços às mulheres quando o que elas pedem é estar a serviço da Igreja em diferentes tipos de trabalho e especialmente no ministério ordenado.

Quero apenas abrir algumas pistas de reflexão frente a essa questão de complexa solução no momento.

A meu ver o problema crítico situa-se justamente na consideração do direito das mulheres muitas vezes tomado de forma bastante simplista. O que significa um direito quando a instituição na qual se quer ter direitos é uma das que nega ou que não apóia muitos direitos às mulheres? O que significa ter direito numa instituição cuja ideologia teológica segue valorizando e incentivando o poder masculino em detrimento de uma visão mais participativa e diversificada de serviços, carismas e poderes? O que significa ter direito à ordenação de mulheres quando há uma visão do sacerdócio eminentemente masculina, anacrônica e com uma secular simbologia teológica masculina? O que significa esse direito quando outros direitos são frontalmente desrespeitados? Será que a admissão ao sacerdócio ordenado traria respostas a essas espinhosas questões?

A teologia sacerdotal vigente

A partir da teologia sacerdotal vigente os padres são revestidos de poderes não apenas simbólicos, mas poderes políticos e sociais que lhes permitem orientar vidas e até manipulá-las ou dominá-las.

Usam muitas vezes dos textos bíblicos como lhes convém e justificam suas escolhas como se fossem emanações evangélicas. Sem dúvida as exceções sempre existem e não quero esquecê-las. Mas, o mais comum é os padres concentrarem uma autoridade sobre as pessoas e especialmente sobre as mulheres mantendo e justificando de muitas formas as hierarquias que dominam a terra.

 Essa concentração exagerada de poder impede a ascensão e organização de ministérios ou serviços múltiplos a partir e em favor das comunidades cristãs. Além disso, o modelo de sacerdote que se apresenta é o sacerdócio de Jesus numa interpretação judaizante que me parece cada vez mais distante das ações e inspirações que descobrimos nos Evangelhos. Em vez de renunciarem ao poder que os coloca em evidencia e ao lado de seus pares seculares fortaleceram as alianças entre poder político, econômico e religioso ao longo dos séculos. Impõem decisões e muitos atuam de forma desrespeitosa, sobretudo quando o assunto refere-se à sexualidade feminina.

Reconheço o papel social e cultural de sacerdotes, pajés, mães e pais de santo, imãs nas diferentes religiões e sua evolução na história contemporânea. Estes atores e atoras sociais não são apenas os únicos “guardiães” da tradição religiosa a que pertencem, mas líderes que deveriam ter o coração colado às necessidades de suas comunidades. Dessa forma a participação dos membros nos serviços e na construção de significados atualizados seria uma responsabilidade comum. Isto requer um constante diálogo e uma divisão de saberes e poderes para responder aos sempre novos desafios do contexto em que se vive. Nesse sentido não pleiteio a extinção do papel de pessoas mais preparadas ou líderes éticos em relação aos conteúdos e tradições religiosas, mas estas pessoas só deveriam ter sua autoridade legitimada na medida em que estiverem em conexão com as questões vividas pela comunidade.

Reforma política da Igreja Católica

Nessa perspectiva não penso que as mulheres devam fortalecer um modelo de sacerdócio hierárquico masculino e nem aceitar a ordenação a partir de uma teologia também hierárquica no seu conteúdo e de simbologia fundamentalmente masculina. No processo histórico atual não se fala de “reforma política na Igreja Católica” o que seria a meu ver útil e necessário. É como se a política e a organização atual da Igreja proviessem diretamente de Deus, segundo a vontade de Jesus e se apresentassem de forma imutável nos diferentes séculos da história e nas diferentes culturas onde o cristianismo se implantou. Falar em “reforma política da Igreja Católica” implica igualmente falar de uma reforma das teologias que sustentam essas políticas de caráter masculino patriarcal centralizador. E a reforma dessa teologia vai revelar quase o óbvio, ou seja, a existência não só de muitas teologias e interpretações, mas entre a vida ordinária cotidiana e as teologias que sustentam a organização da Igreja nos seus diferentes níveis. Em termos concretos estou querendo dizer que uma coisa é a vida de cada dia e outra coisa é a teoria política teológica de uma organização religiosa com suas leis e princípios e, sobretudo com a diversidade de pessoas que dela participam. A pretensa uniformidade dos dogmas, a legalidade das leis canônicas escritas, apesar de sua utilidade, vão de encontro ao pluralismo das situações e crenças presentes nas diferentes culturas e momentos da História. A Igreja hierárquica nem sempre as respeitou, mas muitas vezes as combateu como negações da verdadeira doutrina revelada por Deus. É nesse contexto que também se pode falar das teologias feministas e de sua crítica ao centralismo religioso e ao corte eminentemente masculino de sua simbologia religiosa. Têm denunciado com insistência os abusos do poder religioso, sobretudo em relação à posse indevida da decisão sobre nossos corpos. Têm reinterpretado de forma rica e contextualizada a Bíblia e as teologias de forma a responder aos desafios atuais de nosso mundo.

Estas teologias são quase absolutamente rejeitadas ou ignoradas pelos mantenedores da tradição masculina, pois fogem do roteiro estabelecido por esta tradição.

Teologia feminista

Suspeito que boa parte do movimento em favor da ordenação das mulheres não trabalha na linha crítica assumida por muitas teologias feministas. Buscam apenas a igualdade de gênero nos ministérios sem fazer perguntas às bases de sustentação teológica e política da Igreja na atualidade.

Em geral, apenas visualizam o direito das mulheres a exercer ministérios na Igreja Católica pré-definida, na Igreja “universal” já constituída do ponto de vista de sua organização hierárquica. É como se apenas ao se tornarem presentes nas fileiras sacerdotais, as mulheres pudessem por sua presença modificar algo do panorama real, visual e formal de sua representação até agora unicamente masculina. Não ignoro a importância do visual, das quotas de representatividade, mas apenas isto não modifica por dentro nossas convicções. É preciso ter claro quais os comportamentos sociais, políticos e eclesiais que devem acompanhar a ordenação das mulheres. Que novas políticas a Igreja vai assumir, que orientações se vai propor quando novos “sujeitos”, os femininos, passarem a fazer parte de seus quadros de direção e da liderança das comunidades nos diferentes níveis. Estas são exigências que nós mulheres devemos fazer para não assumir algo como se fosse um favor dos homens de Igreja ou um ato magnânimo de concessão a nós simples mulheres.

Opino dessa forma porque conheço algumas das sacerdotisas, pastoras e candidatas ao sacerdócio feminino e minha impressão embora limitada e discutível, carrega a percepção de que não conseguirão uma mudança qualitativa e significativa na estrutura atual da Igreja Católica. Muitas apenas pedem o sacerdócio, mas não expõem e nem exigem as condições de seu lado para essa efetivação.

Trabalham como se a Igreja que deve reconhecê-las fosse, sobretudo o episcopado e o papado, instituições ministeriais masculinas. São estas que devem conceder-lhes a autorização para servirem a comunidade. Elas, sem perceber, se tornam ou se consideram menos Igreja identificando-a a hierarquia que a governa. Algumas dessas mulheres sacerdotisas têm trabalhos de ponta junto a populações marginalizadas e discretamente reorganizadas por elas. Algumas têm até doutorados em teologia e estudaram em universidades de renome internacional. E, no entanto, essa capacitação não é reconhecida pelos prelados. Posso entender a emoção e o desejo de muitas mulheres de se verem no altar, de sentirem que presidem uma celebração eucarística publicamente e que têm certo poder na comunidade. Posso até avaliar a emoção que algumas narraram de poder levantar a hóstia e dizer “este é o corpo de Cristo” como um sonho de infância esperando ser realizado. Ou ainda a emoção de sentirem-se chamadas de ‘pastoras’, ‘madres’ (?), presbiteras ou diáconas numa paróquia. Não as condeno, mas acredito que poderíamos ir mais longe e exigir bem mais num diálogo que deveria ser entre iguais e não entre superiores e inferiores.

Afetos e poderes absolutos e domésticos

Nessa problemática da ordenação das mulheres há um dado igualmente importante que nem sempre é considerado. Trata-se do fato de o Cristianismo na sua forma católica romana ser uma religião organizada a partir de fortes emoções culturais onde o circuito dos afetos revela uma espécie de divisão social de poderes que reproduz a sociedade na qual vivemos. A figura masculina de Deus Pai, Filho e Espírito Santo reveste-se de poder sócio-emocional absoluto enquanto que as figuras femininas como Maria e as muitas santas revestem-se de poder absoluto doméstico, cuidador, acolhedor, protetor e sanador. A representação sacerdotal masculina aparece também emocionalmente ligada ao poder político absoluto masculino, embora muitas vezes, o poder efetivo e decisivo no imediato seja o feminino. Sabemos bem que a ordenação masculina obedece a uma dogmática hierárquica masculina que no fundo começa pela imagem de Deus Pai entregando poder a seu Filho único que envia o Espírito perpetuado e simbolizado pelos sacerdotes masculinos.

Estaríamos nós mulheres, com o advento do feminismo, do pensamento crítico e da teologia feminista plural, dispostas a manter essa anacrônica hierarquia masculina? Estaríamos dispostas a manter a diferença entre sexo masculino e sexo feminino como desnível de capacidades que se expressa também no desnível salarial no serviço às comunidades? Estaríamos querendo manter a divisão social dos afetos e poderes de forma mecânica e naturalizada? Um pequeno exemplo chama nossa atenção. Hoje em muitas dioceses há uma discrepância salarial entre os padres e as freiras e leigos por serviços semelhantes... A discrepância salarial para além das necessidades de cada um reflete mais uma vez a manutenção do privilégio das hierarquias masculinas no interior da Igreja. A revolução de significados em curso nos tempos de hoje não estaria indicando a necessidade de sair das afirmações dogmáticas do passado e abrir novas possibilidades para repensar a herança cristã para nossos dias? A expansão da luta plural pelos direitos humanos não tocaria igualmente direitos mais amplos na Igreja na diversidade de suas comunidades, organizações e ministérios?

A naturalização

Outro aspecto importante nessa problemática refere-se ao perigo de naturalizarmos os comportamentos masculinos e femininos acreditando que todos os pertencentes a um ou outro gênero e até mesmo os transgêneros, se comportariam da mesma maneira. A naturalização significa tornar certos comportamentos como pré-dados pela natureza ou por Deus e afirmar, por exemplo, que a vocação sacerdotal das mulheres é o cuidado diário e não a lida nas políticas públicas em favor do bem comum. Era isso que se acreditava, por exemplo, em muitos países no tempo da luta sufragista das mulheres. Não se pode mais acreditar que existem tarefas ou trabalhos especificamente masculinos e outros especificamente femininos como se tivéssemos identidades laborais pré-definidas e comportamentos já pré-atribuídos a essas identidades. De certa forma essas atitudes assemelham-se as de Jean Jacques Rousseau e séculos depois ao do positivista Augusto Comte que queriam educar as mulheres em função dos homens e da família e buscavam preservá-las da política e dos vícios da vida social para o benefício da sociedade, dos maridos e da educação dos filhos. Além disso, consideravam as mulheres moralmente melhores do que os homens a até vítimas ilibadas reservando a elas um lugar que nada mais era do que uma reprodução talvez melhorada da naturalização dos comportamentos sociais de gênero. Assistimos hoje a reflexões e atitudes semelhantes embora com matizes e justificações diferentes. Estas precisam ser desconstruídas para que nosso rosto humano misturado apareça na sua complexidade e ambigüidade.

A história

Nesse contexto de “pedido” de ordenação das mulheres não podemos nos esquecer também das perseguições que prelados e funcionários da Igreja Católica Romana exerceram e exercem em relação às mulheres. Acusadas de bruxas ou de usurpadoras do poder de pensar que deveria ser apenas masculino foram condenadas à morte ou perseguidas e castigadas durante sua vida. De Ipazia de Alexandria (assassinada por ordem de futuro São Cirilo de Alexandria), a Marguerite Porette ( condenada à fogueira), a Joana D’Arc (condenada à fogueira) e Juana Inés de la Cruz(condenada e proibida de escrever e ensinar) e, sem falar das muitas contemporâneas, as figuras femininas massacradas por ousarem penetrar nos átrios do saber teológico foram milhares. Será que podemos esquecer estas histórias e também esquecer que nos séculos XX e XXI as teologias feministas repensaram boa parte da tradição cristã, mas que esse pensamento é minimamente conhecido além de freqüentemente recusado pelos donos do poder e saber religioso? A recusa a pensar de outro jeito é com freqüência característica das hierarquias religiosas e políticas... Podemos acaso esquecer que alguns eminentes personagens de nossa história atual até propõem a ‘ingenuamente’ a necessidade de uma ‘teologia da mulher’ ou de uma ‘teologia feminina’ ignorando completamente o percurso já feito durante séculos de história e particularmente da história desses últimos 40 anos? E mais não aceitam sequer que se fale de feminismo no interior da Igreja...

Continuam usando um conceito de igualdade abstrata, igualdade diante de Deus, sem confrontar-se com a real situação de violência e exploração vivida pelas mulheres. É simplesmente lamentável...

Podemos acaso esquecer que ainda hoje há interrogatórios, cartas de advertência, admoestações a congregações religiosas femininas, a teólogas e filósofas que acolhem o dom de pensar a vida como parte do serviço ao Movimento de Jesus? Tudo se articula com tudo. 

Uma reivindicação não é um pedido isolado de um conjunto. A ordenação das mulheres se inscreve nesse complexo contexto de idéias e crenças clericais que governam mentes e corações e mantém estruturas organizacionais anacrônicas. Não pode haver um direito isolado da conjuntura em que ele deva ser afirmado e vivido.

Situação ideal?

Muitas pessoas poderão alegar que busco uma situação ideal para o exercício público do sacerdócio ordenado feminino. De forma alguma. Sinto-me apenas chamada a ajudar a refletir sobre velhas e novas questões em que algumas soluções que parecem justas e igualitárias escondem os sinistros meandros do fortalecimento de um poder hierárquico e patriarcal no qual continuamos a viver, a nos alimentar e alimentar outras vidas. Antes mesmo de aprovar esse sacerdócio como direito das mulheres, o que não penso que o governo atual da Igreja Católica fará, teremos que refletir sobre as condições do direito que pleiteamos e os limites do modelo de sacerdócio vigente. Ao mesmo tempo em que este modelo ainda presta alguns serviços à comunidade cristã, também a isenta de muitas responsabilidades frente à construção de sentidos e à organização plural da vida cristã. Por isso sou contra a ordenação das mulheres como concessão, no estilo atual, pois esse é igualmente limitativo e pernicioso para os homens e mulheres.

Tenho consciência, embora bem limitada, da história das mulheres na Igreja Católica Romana e do enorme percurso de lutas que nós percorremos no Cristianismo. Desde a participação próxima e íntima no Movimento de Jesus até os dias de hoje temos sustentado e vivido a fé, a esperança e a caridade, sabendo desde as nossas entranhas que a caridade continua a ser a maior delas. É nela e a partir dela que a reprodução de modelos sacerdotais tradicionais na configuração atual do mundo corre o risco de manter e até ampliar poderes autoritários que desde muito tempo deveriam ter sido revistos e transformados à luz do reconhecimento da outra/o como meu semelhante e meu diferente. Tudo isso é apenas um convite ao pensamento...



Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A ESPERANÇA QUE ENGRAVIDA


Por Marcelo Barros



Nos dias atuais, a análise da realidade sócio-política do Brasil e do mundo não favorece o cultivo da esperança. Cada dia mais, fica difícil pensar que "tempos melhores virão", como se o próprio ritmo da história pudesse garantir que amanhã será melhor do que hoje. O evangelho diz que quem planta espinhos não pode colher uvas. O jeito como a sociedade organiza o mundo revela um futuro em nada promissor. E o sistema dominante se reproduz e se desenvolve através do dogma, pregado, tanto no plano da economia, como no âmbito da política, subserviente aos interesses do Capital: "Não há alternativas". Assim, se justificam planos de austeridade que sempre penalizam os mais pobres e as PECs, planejadas para transformar direitos sociais dos trabalhadores em despesas a serem evitadas. Os gerentes de governo e os meios de comunicação que os controlam falam em crise e nos preparam para o pior.

Nesse contexto, a nossa esperança pode ser alienada. Quem passa a vida jogando na loteria esperando um dia ganhar uma fortuna nunca analisa as raízes de sua esperança. É bonito ver pessoas que, contra tudo e contra todos os sinais, teimam em esperar o impossível. Elas mesmas não sabem porque esperam e de onde vem esse milagre de sempre esperar. Há um tipo de esperança que projeta um futuro melhor para fugir do presente pesado. Como, nos anos da ditadura, dizia a canção do Geraldo Vandré: "quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

O tipo de esperança proposto pelo evangelho é bem diferente. Não cruza os braços hoje à espera do amanhã. Faz da esperança força para agir agora na teimosia de crer que podemos transformar a realidade. A parte mais consciente da humanidade, assim como, nas diversas tradições espirituais, os homens e mulheres que optam por viver a fé são chamados, como diz a carta de Pedro: "a estar sempre prontos a prestar contas das razões de sua esperança" (1 Pd 3, 15). Aqui e agora.

Sem cair no lamento, nem na auto-piedade, assumir a responsabilidade de alimentar uma esperança viva e real é um desafio exigente. Essa esperança, enraizada na fé, não pode se basear em uma análise fria da realidade. Ela se fundamenta na confiança de que, mesmo o sistema mais iníquo e o império mais poderoso do mundo não conseguirão impedir a realização da promessa divina.

Nas Igrejas antigas, como a Igreja Católica, a Anglicana, a Luterana e a Metodista, esse último domingo de novembro marcou o início do tempo do Advento. São quatro semanas de preparação à festa do Natal. No entanto, de um modo mais profundo, o Advento é um tempo para reavivar em nós a esperança do reino de Deus e para nos dispor à proximidade de sua vinda. Nas celebrações desse domingo, o evangelho proclamado se referia à destruição do templo de Jerusalém, à queda da cidade e aos sinais que antecederiam ao que o povo habituou-se a chamar de "fim do mundo". Desde antigamente, os cristãos aprenderam de que todos os sinais de destruição não bastam e o evangelho insiste em dizer: "ainda não é o fim". Para quem tem fé, mesmo se tudo no mundo vai mal, Deus se revelará presente em forma humana e através de uma parte sadia da humanidade (é isso que significa no evangelho a figura misteriosa do Filho do Homem). Na realidade atual, os movimentos sociais, as comunidades de base, os grupos alternativos e toda parte da humanidade que busca um novo mundo possível representam essa manifestação divina intervindo no mundo. E dali surgirá uma nova esperança.

Alguém contou que, na língua alemã, há um modo lindo de afirmar que uma mulher está grávida. Diz-se que ela está "in der Hoffnung", ou seja, está em esperança. De fato, é a esperança que dilata o útero da humanidade e o torna acolhedor e disponível à nova vida que virá. Essa esperança comprometida com a transformação do mundo e comprometedora do nosso agir hoje é sempre nova. Ela "dança na corda bamba de sombrinha", como cantava Elis. Antecipa a hora e, como Dom Pedro Casaldáliga afirma em um de seus belos e profundos poemas, a esperança nos ensina a: “saber esperar ativamente aquilo que não nos permite apenas esperar”.

Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países. 

   

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

AINDA E SEMPRE A MISERICÓRDIA

 por Maria Clara Lucchetti Bingemer




            O Papa fechou a Porta Santa e encerrou o ano da misericórdia. Mas, ao mesmo tempo, escreveu a carta apostólica  Misericordia et miseranda, que mostra que esta atitude deve ser o centro da vida de todo cristão.  Comentarei detalhes importantes da carta na próxima crônica.  Nesta resgato as raízes da centralidade da misericórdia para a vida.

A alguns pode deixar perplexos a misericórdia ser o maior desejo de Deus e não o sacrifício.  Pois não nos ensinaram sempre que é importante fazer sacrifícios, porque esses agradam a Deus?  Os da minha geração certamente perderam a conta de quantas tabelinhas de ramalhetes espirituais preencheram, em folhinhas parecidas com as do jogo de batalha naval, dando conta de quantos sacrifícios haviam sido feitos naquele mês.  E esses sacrifícios consistiam em privar-se de balas, ou rezar ajoelhada no chão frio durante bastante tempo, ou passar um mês sem comer chocolates.  Tudo isso para agradar a Deus.  E agora nos dizem que ele não quer sacrifícios e sim misericórdia?  Como assim?

Porque sabe disso, Jesus insiste.  Sabe que não é espontânea em nós a prática da misericórdia. Não é natural nossa inclinação para olhar o outro sem julgá-lo, sem segregá-lo, sem classificá-lo com rótulos ou compartimentos que sigam nossos padrões.  Pelo contrário, é costume nosso olhá-lo de cima. Pobre dele ou dela se não tem fé como nós, nem faz sacrifícios diários e miúdos que acumulamos, acreditando assim economizar para uma eternidade mais confortável ou mais brilhante. 

Ganhar a salvação aplicando na poupança do sacrifício parece que não agrada a Deus.  Pelo menos é isso que diz seu Filho Jesus, o único que O conhece verdadeiramente. E para reforçar ainda mais sua afirmação, Jesus o diz após ver seu poder questionado por ocasião da cura de um paralítico, depois de chamar para segui-lo um publicano malvisto entre o povo por ser desonesto e ladrão, após ser criticado por comer com publicanos e pecadores. 

Impressionante contexto em que muitos de nós poderíamos identificar-nos facilmente com os críticos de Jesus.  Esclarecedora situação em que estaríamos certamente entre os que julgam sem cessar o próximo e por isso têm muito que aprender em termos das preferências de Deus.  Ele não se compraz com nossos sacrifícios, oferendas e rituais, com os quais pensamos comprar sua benevolência.  Mas – pasmem! – deseja a misericórdia incessante e permanente, uma atitude de vida que nos faça aproximar-nos do outro com as entranhas carregadas de carinho, ternura e abertura total.  Mesmo que o outro não seja puro, nem justo, nem imaculado, segundo os cânones oficiais.

Este é o aprendizado que somos convidados a encetar hoje e sempre.  

Não podemos acreditar-nos mestres da pureza e doutores da ascese, exibindo em praça pública quão grande é o nosso espírito de penitência e sacrifício.  Estamos sendo carinhosamente chamados pelo Senhor, em convite reforçado pelas palavras de Francisco, a sermos discípulos da misericórdia, procurando humildemente aprender a fazer dela nosso estilo de vida.

Em tudo a misericórdia deve perpassar-nos de alto a baixo.  Deve inspirar nossas palavras, fazendo-nos “sair dos círculos viciosos das condenações e vinganças, que continuam a encadear indivíduos e nações", tal como disse o Papa. A palavra do cristão, reiterou ele, "propõe-se fazer crescer a comunhão”. Portanto, logicamente não pode ser de juízo e condenação sobre o outro. 

A misericórdia deve guiar nossos gestos.  Estender a mão ao diferente, ouvir o angustiado, erguer o caído sem condená-lo, procurar colocar-se no lugar do outro para entender sua perspectiva e aprender com ela.  

O próprio Papa deu o exemplo ao encontrar-se em Cuba com o patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa russa, em fevereiro passado. Um gesto concreto que pôs fim a uma separação entre cristãos que já dura mais de mil anos.

Tudo isso é um delicado aprendizado.  Para tanto, necessitamos de disciplina.  E do tempo propício para aprender do próprio Deus, que quer misericórdia e não sacrifício, que é misericórdia em Si mesmo.  Ao longo de toda a Escritura, nós podemos ver e ouvir esse Deus desviando o rosto das gordas oferendas rituais a Ele feitas com o coração carregado de dureza e intransigência, com a vida pontilhada de cupidez e avareza.  Não é possível agradá-lo assim.  Pois o que Ele quer é misericórdia.

Deus é Aquele que recebe o filho que se foi com festa nunca antes vista naquela casa; que deixa para trás as noventa e nove ovelhas fiéis e sadias para buscar a que se perdeu nos espinhos do caminho por não seguir a voz do pastor.  Em Jesus, encarnação de sua misericórdia, Deus acolhe a adúltera sem uma palavra de condenação; aceita com gratidão a homenagem do amor da pecadora pública que entra no banquete do fariseu e banha com lágrimas e perfume seus pés cansados da poeira da estrada; cura doentes, toca leprosos, abraça crianças, liberta os pobres, faz os cegos verem, os surdos ouvirem e os coxos andarem. Olhando para Ele aprenderemos que a misericórdia é maior que o sacrifício.


Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ e
 teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão"(Edusc)  Copyright 2016 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

SÓCRATES E A DEMOCRACIA SELETIVA

Frei Betto



      Preconceitos e acusações descabidas são uma prática mais antiga que a Sé de Braga. Meleto, no século IV a.C., acusou Sócrates de “descrer dos deuses em que crê a cidade e propor novas divindades. Também é acusado de corromper os jovens. A pena proposta é a morte.”

      Era o ano 399 a.C., quando Sócrates tinha 70 anos. Integravam o júri 501 cidadãos com mais de 30 anos. Não havia promotores, advogados, juiz ou força policial. Quem se considerasse vítima de um crime, que se queixasse ao oficial encarregado do tribunal de Atenas.

      Meleto se apoiou em duas testemunhas, Ânito e Lícon. Em seguida, Sócrates se defendeu. E desafiou Meleto a apresentar os jovens que teriam sido desviados da fé citadina.

      Ouvidos acusação e defesa, os jurados depositaram seus vereditos na urna. Culpado, 281; inocente, 220. Restava decidir a pena. Meleto propôs a morte. Sócrates, penas menos cruéis. Na nova votação, a maioria preferiu a pena capital: 361 a 140. Um mês depois, Sócrates pôs fim à vida ao beber cicuta.

      Quem estava com a razão: o filósofo ou a maioria que votou contra ele? A inteligência ou o júri popular impelido pelas acusações a Sócrates?

      O que sabemos de Sócrates é por via de Platão que, em sua Apologia (que, em grego, significa “defesa”), reproduz o que Sócrates teria dito aos jurados. Sócrates nada escreveu e todo o processo foi oral. É possível que Platão tenha colocado a sua versão dos fatos na boca de seu mestre. Existem mais duas versões do julgamento, ambas assinadas por Xenofonte, mas contraditórias entre si.

      Todo fato exige ser analisado dentro de seu contexto político. Sócrates foi julgado cinco anos após o fim da Guerra do Peloponeso, que opôs Atenas e Esparta. Iniciada em 431 a.C., terminou em 404, com Atenas derrotada. E, com ela, a sua democracia.

      Atenas passou a ser controlada pelo exército espartano e governada por uma junta ditatorial conhecida como os Trinta Tiranos. Derrubada a junta em 403, restabeleceu-se a democracia coroada por uma anistia geral.

      Na verdade, o impeachment da junta deu lugar a uma democracia seletiva. Todos são livres, desde que não manifestem ideias contrárias a quem governa. E o poder e quem o apoia reagem com ódio quando alguém ousa criticá-los.

      Ora, como considerar democrático um governo que não suporta a liberdade de opinião de facto? A saída foi acusar Sócrates de herege. Logo ele que, segundo Platão, era homem piedoso e cumpridor de seus deveres religiosos.

      E por que acusá-lo de “introduzir novas divindades” se a democracia ateniense se estendia às esferas celestiais? Asclépio, deus da cura, acabava de ser introduzido ali, ao lado de divindades estrangeiras, como Cibele e Bendis.

      É verdade que Sócrates admitia possuir um daemoninterior, um deus em seu íntimo, que o inspirava buscar princípios éticos, não no Olimpo, mas na razão. Mas certos poderes não suportam o pensamento crítico.

      E que jovens ele teria corrompido? Mileto, precursor da Escola Sem Partido, alegou que muitos deixaram de seguir a autoridade dos pais para abraçar a dos mestres, como Sócrates. Este retrucou afirmando que educação deve ser confiada a professores, e não a parentes, pois quem necessita de médico deve procurar o especialista, e não os pais.

      Até o século V a educação formal não existia na Grécia, exceto para música e exercícios físicos. As crianças aprendiam a ler e a escrever com escravos letrados. Os jovens se instruíam no contato com os mais velhos, no teatro, na ágora, nos rituais religiosos.

      Porém, em meados do século V apareceram os sofistas, professores de retórica, filosofia e política. Aplicavam a crítica à moral e à religião. Os líderes obscurantistas reagiram, pois não queriam um povo pensante. Em Mênon, Platão transcreve a reação de Ânito, um dos acusadores de Sócrates: “Mais loucos que os sofistas são os jovens que gastam seu dinheiro com eles; e piores, os seus responsáveis, por deixá-los cair nas mãos dos sofistas. E piores ainda as cidades que os admitem e não os expulsam.”

      Como o senso comum se deixava influenciar pelo principal meio de comunicação de massa da época, o teatro, 24 anos antes do julgamento Aristófanes retratou, em As nuvens, Anaxágoras, Protágoras e Sócrates como corruptores da juventude.

      Por isso, Platão se decepcionou com a democracia. Defendia que o governo deveria ser entregue aos mais preparados, os filósofos. E confirmou que o preço da liberdade é a eterna vigilância.
      Platão e Xenofonte passaram a idealizar Esparta. Esqueceram apenas de um detalhe: lá Sócrates sequer teria a liberdade de pensar, quanto mais ensinar.

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.

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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

NOTA DA CNBB SOBRE A “REFORMA DO ENSINO MÉDIO” – MP 746/16



“A fim de que os estudantes tenham esperança!” (Papa Francisco, 14 de março de 2015)

O Conselho Episcopal Pastoral (CONSEP), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reunido em Brasília-DF, nos dias 22 e 23 de novembro de 2016, manifesta inquietação face a Medida Provisória 746/16 que trata da reforma do Ensino Médio, em tramitação no Congresso Nacional.

Segundo o poder executivo, a MP 746/16 é uma proposta para a superação das reconhecidas fragilidades do Ensino Médio brasileiro. Sabe-se que o modelo atual, não prepara os estudantes para os desafios da contemporaneidade. Assim, são louváveis iniciativas que busquem refletir, debater e aprimorar essa realidade. 

Contudo, assim como outras propostas recentes, também essa sofre os limites de uma busca apressada de solução. Questão tão nobre quanto a Educação não pode se limitar à reforma do Ensino Médio. Antes, requer amplo debate com a sociedade organizada, particularmente com o mundo da educação. É a melhor forma de legitimação para medidas tão fundamentais. 
Toda a vez que um processo dessa grandeza ignora a sociedade civil como interlocutora, ele se desqualifica. É inadequado e abusivo que esse assunto seja tratado através de uma Medida Provisória.

A educação deve formar integralmente o ser humano. O foco das escolas não pode estar apenas em um saber tecnológico e instrumental. Há que se contemplar igualmente as dimensões ética, estética, religiosa, política e social. A escola é um dos ambientes educativos no qual se cresce e se aprende a viver. Ela não amplia apenas a dimensão intelectual, mas todas as dimensões do ser humano, na busca do sentido da vida. Afinal, que tipo de homem e de mulher essa Medida Provisória vislumbra?

Em um contexto de crise ética como o atual, é um contrassenso propor uma medida que intenta preparar para o mercado e não para a cidadania. Dizer que disciplinas como filosofia, sociologia, educação física, artes e música são opcionais na formação do ser humano é apostar em um modelo formativo tecnicista que favorece a lógica do mercado e não o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade.

Quando a sociedade não é ouvida ela se faz ouvir. No caso da MP 746/16, os estudantes reclamaram seu protagonismo. Os professores, já penalizados por baixos salários, também foram ignorados. Estes são sinais claros da surdez social das instâncias competentes. 

Conclamamos a sociedade, particularmente os estudantes e suas famílias, a não se deixar vencer pelo clima de apatia e resignação. É fundamental a participação popular pacífica na busca de soluções, sempre respeitando a pessoa e o patrimônio público. A falta de criticidade com relação a essa questão trará sérias consequências para a vida democrática da sociedade.
Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, interceda por nós.

                 Brasília, 23 de novembro de 2016.
Dom Murilo S. R. Krieger, SCJ
Arcebispo de São Salvador da Bahia
Presidente em Exercicio da CNBB
Dom Guilherme A.Werlang, MSF
Bispo de Ipamerí
Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz
Dom Leonardo Ulrich Steiner, OFM
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB


terça-feira, 22 de novembro de 2016

A SUBVERSÃO DA AÇÃO DE GRAÇAS

por Marcelo Barros


No Brasil, o Dia de Ação de Graças nunca se tornou popular, como é nos Estados Unidos, desde o século XVIII e em outros países do continente. Em nosso país foi implantado por um decreto do general Dutra nos anos 40 e depois ratificado em 1966 pelo governo militar. Por isso, muitos associam essa iniciativa com a ideia de Cristandade e de uma religião civil pouco crítica. Atualmente, o Brasil é um estado laical e pluricultural. Isso não significa que qualquer expressão de fé deva ser reduzida ao âmbito privado do indivíduo. O fenômeno religioso faz parte da cultura e essa é sempre comunitária e social. No entanto, a sociedade é plural e nenhuma religião deve ser hegemônica. A função do Estado é cuidar da relação justa e fraterna entre todas as tradições religiosas, para que possam contribuir para a paz e a justiça de toda humanidade. O fato do Estado ser laico não proíbe a celebração de um dia de ação de graças, seja a Deus, seja dando "graças à Vida", como cantava Violeta Parra.

Essa celebração não pode ser confessional ou sectária e nem tem sentido agradecer a Deus algo que Deus não quer nem tem nada a ver com isso. É importante saber por que dar graças. Se damos graças a Deus por uma vitória militar, ou pelo fato de termos dinheiro e poder, estamos falando mal de Deus que teria beneficiado a uns e ignorado ou até prejudicado a outros. Esse Deus, cuja imagem esteve na cruz dos conquistadores que invadiam território dos índios e os escravizavam nada tem a ver com o Deus que Jesus nos anunciou. O Deus, cujo nome está em agência de bancos e nas notas de dólar, não é o Deus que Jesus chamou de Paizinho. Todas as grandes tradições religiosas da humanidade concordam que se existe Deus, só pode ser fonte de Justiça, Paz e Amor.

 Ainda há poucos dias, em Roma, no 3o encontro que teve com representantes de movimentos sociais, o papa Francisco repetiu: o atual sistema econômico que domina o mundo é iníquo e nada tem a ver com Deus. É a base do terrorismo de Estado e do assassinato violento de muitos pobres. 
Se queremos dar graças, precisamos reconhecer que todos dependemos uns dos outros. É na comunidade que crescemos como pessoas e o que temos nunca é apenas individual. Todos os bens da terra, sob certo ponto de vista, são sempre bens comuns. Por isso, só em uma visão socialista e comunitária, há lugar para a gratidão e a ação de graças. A ação de graças supõe uma postura de abertura e ternura em relação à vida, às pessoas e ao mistério de amor que fecunda o universo. É isso que as antigas tradições espirituais sempre procuraram ensinar.

Na Bíblia, a palavra salmo vem de um termo hebraico que significa louvor. Um dos mais importantes livros bíblicos é o livro dos Louvores (salmos). Poderia se chamar de “palavras do nosso amor”. Os evangelhos mostram que, muitas vezes, Jesus deu graças ao Pai. Sua confiança de que, através dele, Deus atuava no mundo era tão forte que, algumas vezes, ele agradecia a Deus não apenas por fatos que ele havia visto ou vivido e sim por algo que ainda não ocorrera, mas que ele sabia que Deus iria fazer. Assim, quando foi ao túmulo de Lázaro, ele deu graças ao Pai, antes mesmo de ver o seu amigo sair vivo do sepulcro (Cf. Jo 11).
Devemos sim desenvolver uma cultura da ação de graças. Quem crê em Deus dá graças por contemplá-lo presente em cada ser do universo e no milagre que é a Vida e o amor que nos une. A ação de graças tem de ser a postura de cada dia da vida. Para verdadeiramente dar graças, vamos abrir criticamente nossos olhos e nossa inteligência para a desordem mundial em que vivemos e nos unir aos movimentos sociais e populares por uma América Latina livre dos colonialismos e uma terra mais justa, fraterna e de comunhão eco-social.


Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.