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segunda-feira, 28 de junho de 2010

UM DESIGN ECOLÓGICO PARA A DEMOCRACIA

A democracia é seguramente o ideal mais alto que a convivência social historicamente elaborou. O princípio que subjaz à democracia é este:" o que interessa a todos, deve poder ser pensado e decidido por todos".
Ela tem muitas formas, a direta. como é vivida na Suiça, na qual a população toda participa nas decisões via plebiscito.

A representativa, na qual as sociedades mais complexas elegem delegados que, em nome de todos, discutem e tomam decisões. A grande questão atual é que a democracia representativa se mostra incapaz de recolher as forças vivas de uma sociedade complexa, com seus movimentos sociais. Em sociedades de grande desigualdade social, como no Brasil, a democracia representativa assume características de irrealidade, quando não de farsa. A cada quatro ou cinco anos, os cidadãos têm a possibilidade de escolher o seu "ditador" que, uma vez eleito, faz mais a política palaciana do que estabelece uma relação orgânica com as forças sociais.
Há a democracia participativa que significa uma avanço face à representativa. Forças organizadas, como os grandes sindicatos, os movimentos sociais por terra, teto, saúde, educação, direitos humanos, ambientalistas e outros cresceram de tal maneira que se constituiram como base da democracia participativa: o Estado obriga-se a ouvir e a discutir com tais forças as decisões a tomar. Ela está se impondo por todas as partes especialmente na América Latina.
Há ainda a democracia comunitária que é singular dos povos originários da América Latina e pouco conhecida e reconhecida pelos analistas. Ela nasce da estruturação comunitária das culturas originárias, do norte até o sul de Abya Yala, nome indígena para a América Latina. Ela busca realizar o "bem viver" que não é o nosso "viver melhor" que implica que muitos vivam pior. O "bem viver" é a busca permanente do equilíbrio mediante a participação de todos, equilíbrio entre homem e mulher, entre ser humano e natureza, equilíbrio entre a produção e o consumo na perspectiva de uma economia do suficiente e do decente e não da acumulação. O "bem viver" implica uma superação do antropocentrismo: não é só uma harmonia entre os humanos mas com as energias da Terra, do Sol, das montanhas, das águas, das florestas e com Deus. Trata-se de uma democracia sociocósmica, onde todos os elementos são considerados portadores de vida e por isso incluidos na comunidade e com seus direitos respeitados..
Por fim estamos caminhando rumo a uma superdemocracia planetária. Alguns analistas como Jacques Attalli (Uma breve historia do futuro, 2008) imaginam que ela será a alternativa salvadora face a um superconflito que poderá, deixado em livre curso, destruir a humanidade. Esta superdemocracia resultará de uma consciência planetária coletiva que se dá conta da unicidade da família humana e de que o planeta Terra, pequeno, com recursos escassos, superpovoado e ameaçado pelas mudanças climáticas obrigará os povos a estabelecer estratégias e políticas globais para garantir a vida de todos e as condições ecológicas da Terra.
Esta superdemocracia planetária não anula as várias tradições democráticas, fazendo-as complementares. Isso se alcança melhor mediante o bioregionalismo. Trata-se de um novo design ecológico, quer dizer, uma outra forma de organizar a relação com a natureza, a partir dos ecossistemas regionais. Ao contrário da globalização uniformizadora, ele valoriza as diferenças e respeita as singulariedades das bioregiões, com sua cultura local, tornando mais fácil o respeito aos ciclos da natureza e a harmonia com a mãe Terra.
Temos que rezar para que este tipo de democracia triunfe senão ignoramos totalmente para onde seremos levados.

Leonardo Boff é autor do livro Ecologia, Mundialização e Espiritualidade,Record 2008.

ORDEM E DESORDEM MUNDIAIS

Frei Betto

O mundo no qual vivemos é movido por relações internacionais nas quais se destacam estadistas, ministros, organismos supranacionais e, sobretudo, o capital. O fluxo e o refluxo do dinheiro determinam o destino das nações. Com frequência se olvida o protagonismo dos povos no cenário mundial. São eles, sempre, as grandes vítimas.

Na fase pré-monopolista do capital, entre os séculos XV e XIX, a ordem mundial era comandada por potências coloniais como Espanha, Inglaterra e França. Calcula-se que apenas na América Latina e no Caribe a presença colonial deixou um lastro de pelo menos 18 milhões de indígenas mortos. Outras fontes calculam 100 milhões (Población originaria, 1500. Eric Toussaint: La Mundialización desde Cristóbal Colón hasta Vasco da Gama. (http://www.forumdesalternatives.org).

Em busca de mão de obra necessária ao acúmulo do capital, estima-se que cerca de 12 milhões de africanos foram sequestrados em suas terras e escravizados no sul dos EUA, no Caribe e na América Latina.

Os que sobreviveram ao genocídio colonial e se reproduziram no território americano assumiram o protagonismo das lutas anticoloniais que propiciaram, a partir de 1810, a independência da América Latina e do Caribe. No entanto, não se tornaram beneficiários das lutas emancipatórias que implantaram, em nosso Continente, a república e a democracia, salvo alguns ensaios de poder popular como ocorreu no Haiti governado por ex-escravos; no Paraguai antes da guerra movida pela Tríplice Aliança; em Cuba a partir de 1959 e, agora, nas Constituições que incorporam os direitos dos povos originários e afrodescendentes, como ocorre na Venezuela, no Equador e na Bolívia.

Em sua fase imperialista, o capitalismo, em luta por mercados, promoveu duas guerras mundiais. A primeira criou as condições para a ascensão do fascismo e do nazismo, e levou os EUA à bancarrota em 1929. A segunda forçou a migração de 60 milhões de pessoas e causou a morte de 72 milhões – 2% da população mundial da época. A tudo isso somam-se os traumas físicos e psicológicos produzidos pelas guerras, as sequelas dos campos de concentração, a desorganização familiar e os esforços de adaptação à vida civil dos soldados sobreviventes.

As vítimas que escaparam do holocausto, os comunistas europeus e os guerrilheiros dos países ocupados, foram os protagonistas da derrota do nazifascismo e os sujeitos da ordem mundial bipolar do pós-guerra, com o surgimento da União Soviética.

Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, voltamos a um mundo unipolar sob hegemonia do capitalismo que, com seu caráter neoliberal, anulou importantes conquistas sociais, introduziu o Estado mínimo e a privatização do patrimônio público, promoveu a flexibilização dos direitos trabalhistas e fez a especulação financeira sobrepor-se à produção agroindustrial.

Iraque e Afeganistão revelam hoje a face mais cruel desse mundo unipolar no qual os EUA se empenham em assegurar para si uma preciosa mercadoria em fase de escassez: o petróleo. Morreram, naqueles países, mais de 1 milhão de pessoas, a maioria civis e, do lado do agressor, 75 mil soldados usamericanos, mortos ou feridos.

Na América Latina, a principal vítima da hegemonia unipolar é Cuba, submetida ao bloqueio econômico pelos EUA, o que já lhe causou prejuízo superior a US$ 50 bilhões.

O povo mexicano sabe-se, hoje, vítima do engodo que foi o Tratado de Livre Comércio assinado com os EUA, cujo fracasso abortou a proposta usamericana da ALCA. Dizia-se que os mexicanos alcançariam a mesma renda per capita dos estadunidenses. Hoje, a renda per capita dos mexicanos equivale a apenas 0,32% da renda dos canadenses e 0,25% dos estadunidenses. A economia mexicana encontra-se inteiramente desnacionalizada e, a cada ano, cerca de 750 mil mexicanos emigram para os EUA à procura de trabalho.

Segundo a Cepal, a pobreza no México era de 39% da população antes do Tratado. Hoje é de 50,9%. Outras fontes estimam em 70% da população em condição de pobreza (Ulloa Bonilla, 2007).

Apesar do amplo espectro de pobreza no mundo, o monopólio midiático do capitalismo dissemina no imaginário popular a inquestionável superioridade do sistema de apropriação privada dos bens e da riqueza e sua plena consonância com a democracia e a liberdade. Na falta de pão, o circo provoca uma espécie de anestesia na mente daqueles que são as maiores vítimas do sistema.

Basta olhar em volta para se dar conta dos efeitos do sistema: a degradação ambiental; a crise energética; a alta dos alimentos; a escassez de água; os fluxos migratórios; o terrorismo; o tráfico de drogas, de pessoas e de armas; a manipulação dos medicamentos e das patentes genéticas; e, agora, a crise econômica iniciada em setembro de 2008 e que afeta duramente a área do euro.

As eleições de 2010 no Brasil não podem ignorar o protagonismo de nosso país nessa conflitiva conjuntura mundial. E o direito à soberania e autodeterminação dos países da América Latina e do Caribe.


Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org - Twitter:@freibetto

Copyright 2010 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

A COPA E A DOR DE MANDELA

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Quando este artigo sair, a bola já terá rolado há tempos nos gramados da África do Sul. A festa eufórica do país das vuvuzelas, com direito a astros internacionais, deslumbrou o mundo.
O mundo inteiro, como a cada quatro anos, está pendente de uma bola e de vinte e dois pares das pernas mais caras e bem pagas do mundo. No entanto, algumas coisas fazem esta copa diferente das outras. Ela acontece no país que foi palco de uma das segregações mais cruéis do planeta: o terrível “apartheid”. Durante décadas os sul-africanos viveram sérios conflitos, numa sanguinária luta racial que dividiu o país e dizimou seus habitantes. Hoje, a África do Sul pode exibir sua beleza e riqueza humana e cultural, palco e moradia de tantas raças, habitantes, religiões, etnias e línguas, em alegre sinfonia, sediando um evento de repercussão mundial como este. E estreando uma paz que por ser recente não é menos benéfica e ansiosamente esperada.
Mas não só pelo futebol e pela pluralidade inerente à sua identidade que os olhos do mundo inteiro se voltam para a África do Sul. Trata-se também do país que é berço e pátria de uma das maiores pesonalidades da humanidade neste século XXI: Nelson Mandela. A presença desse grande líder marca para sempre a Copa do mundo de 2010 e a faz inesquecível. Fiel à luta antiapartheid, Mandela passou mais de vinte anos no cárcere e agora, livre, é um ícone.
Diante do clima de euforia e do toque de insanidade que às vezes marca os campeonatos mundiais de futebol com episódios de violência, figuras como Mandela e o bispo Desmond Tutu trazem um toque de grandeza e profundidade que, mesmo em meio à mais legítima alegria, nos relembram a seriedade da condição humana. Aqueles que hoje cantam e se movem nos estádios com a ginga incomparável de sua raça, levados pelo ritmo irresistível do espetáculo de abertura do campeonato, são os mesmos que souberam arriscar a vida pela liberdade de seu povo.
Já no início da Copa, antes que a bola rolasse nos primeiros jogos, essa seriedade que nos traz de volta ao chão da vida real se fez presente dolorosamente no já tão marcado coração de Mandela. Ao voltar do espetáculo de abertura, sua bisneta de 13 anos, Zenani Mandela, morreu em um acidente de automóvel.
Enquanto o país abriga o mundo inteiro no colossal evento esportivo, o clã Mandela vive a terrível e irreparável perda da pequena Zenani, vida desabrochando em flor, ceifada antes de abrir-se plenamente. Podemos sentir, por trás das vuvuzelas, dos tambores, atabaques, trombetas e foguetes, o coração do líder confrangido pela dor, sua cabeça branca curvada e seus olhos turvos, vergado pelo golpe.
A nuca que a prepotência dos colonizadores não conseguiu dobrar, o afeto agora o faz. Ainda que possa ser visto nos festejos da Copa, Mandela estará vivendo seu luto.
Em meio à ansiedade dos jogos e dos resultados da Copa, nos é dada a oportunidade de calarmo-nos com o silêncio de Mandela, entrar em comunhão com sua dor, assim como aclamamos sua figura no estádio. Esse doloroso episódio não arruína o clima da Copa do mundo. Pelo contrário, só o torna mais humano.

Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-RioAutora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape

domingo, 20 de junho de 2010

A ÚLTIMA VIAGEM DO ELEFANTE CEGO

ASSUERO GOMES


O condutor do Elefante Cego, como um pastor, chegou antes nos verdes prados. No seu passo lento o paquiderme, ensaiava a Cegueira, quando lia o Evangelho segundo Jesus Cristo, nos jardins do Convento, transformado em memorial.
Foi no ano da Morte de Ricardo Reis, quando este, pensando em estar singrando os mares de Camões, numa Jangada de Pedra, para escapar do Cerco de Lisboa, procurou a Terra do Pecado, mas esta na verdade era a própria Caverna, esta terra, onde se refugiou. Na sua estrutura pesada e tendo a cegueira como guia, foi imprescindível que o condutor com toda sua lucidez, Levantando do Chão, guiasse o elefante na sua última jornada.
No seu caminho, muito à frente do animal, o condutor recebeu pedras, em vez de diamantes, do seu irmão Caim. Seu irmão, sangue do seu sangue verde vermelho, que rasgando o Ensaio sobre a Lucidez, preferiu As Intermitências da Morte, e quis condenar o condutor a uma grande e medieval fogueira inquisitorial.
Escapando, para jogar mais luz sobre o elefante, tentando restituir-lhe a visão, foi refugiar-se em terras de Cervantes, onde teve boa acolhida, entre primos da casa ibérica, talvez na ilha de Sancho Pança, talvez nas páginas do Conto da Ilha Desconhecida, entre a aridez da terra e dos homens.
O pastor-condutor finalmente alçou vôo e desvencilhado do peso do seu rebanho de um único e pesado quadrúpede, mergulhou na luz.
Banhado em luz, livre de toda presença obscura, viu plenamente.
Levava na sua pequena valise os óculos grossos, que já não mais necessitava, as anotações de Lanzarote e suas Pequenas Memórias, em Apontamentos. Embevecido de luz lembrou da sua pequena Bagagem de Viajante, viajante Deste Mundo e do Outro. Trazia na lapela, com orgulho, um pequeno martelo e uma foice, tão carcomidos e desgastados pelo tempo, que quase não se via mais.
“Dar luz aos cegos é prerrogativa de Deus” disse-lhe uma voz feminina, doce e suave “Mesmo para aqueles que não acreditam Nele?” perguntou o pastor de elefante “Especialmente para aqueles que não acreditam Nele” “E o meu elefante, como caminhará na sua escuridão?” “O elefante é pesado e teimoso. Pensa que tudo pode devido à sua força e à sua tromba, mas caminha para o Abismo” “É porque é cego e não vê” “Ele não vê porque é cego, no entanto não sabe que é cego e pensa que vê” “Se Deus existe, por que fez ele cego?” “Ele não é cego de nascença, ele é cego porque pensa que vê e não sabe que é cego”.
Silencioso ficou o pastor, extasiado que estava com tanta luz, como bálsamo para seus olhos, que se mantinham enxutos. A voz feminina falou então “Entra, vamos ver e assistir aos ensaios de algumas peças” “Quais?” “Podes escolher, A Noite, Don Giovanni, Que farei com este Livro? E A Segunda Vida de Francisco de Assis, que agora mesmo a está ensaiando com Clara” “Como permitem que ensaiem essas peças aqui?” “Gostamos de toda Criação” “Posso ficar aqui vendo tudo?” “Aqui é sua casa. Aliás, aqui é a casa de todos os povos” “Já estiveste na minha casa do outro lado do mar?” “Sim, numa Viagem a Portugal. Desde então e sempre, nenhum filho desta terra fica fora da minha proteção”.
Para os que ficamos cavalgando o Elefante, talvez um pouco mais cegos que de costume, na despedida do último cavaleiro lusófono, Saramago.

sábado, 19 de junho de 2010

A PAZ FUNDADA NO PARADIGMA DO CUIDADO

LEONARDO BOFF


Fatores de violência e de empecilhos à paz são, entre outros, a vontade de poder de um pais sobre outro, o patriarcalismo cultural que ainda marginaliza a mulher e a exploração da natureza em vista do benefício material. O patriarcalismo enfraqueceu a dimensão do feminino que nos faz a todos mais sensíveis, rebaixou a inteligência emocional, nicho do cuidado e da experiência ética e espiritual.

Essa parcialidade, negando a dimensão da anima (o feminino) não deixou de afetar fortemente a ética. O núcleo da moralidade clássica herdada dos gregos e aperfeiçoada por Kant, Habermas e Rorty tem por base inconsciente a experiência do animus (masculino). Por isso ela se funda sobre duas pilastras básicas: na justiça que se expressa nos direitos e nos deveres dos homens (deixando invisíveis as mulheres) e na autonomia do indivíduo, na idéia de que somente um ser livre pode ser um ser ético.

Ora, esta visão é parcial pois deixa de fora dimensões fundamentais, próprias mas não exclusivas do feminino (anima), como as relações afetivas que se dão na família, com os outros, com a natureza e com todos com os quais nos sentimos envolvidos. Sem tais relações a sociedade perde seu rosto humano. Aqui mais que a justiça vigora a categoria maior que é a do cuidado. O cuidado é um paradigma que se opõe ao da dominação. É aquela relação que se preocupa e se responsabiliza pelo outro, que se envolve e se deixa envolver com a vida em suas muitas formas, que mostra solidariedade e compaixão, que cura feridas passadas e previne feridas futuras.

A base empírica é a experiência, tão finamente analisada pelo psicanalista inglês D. Winnicott, de que todos necessitamos de ser cuidados, acolhidos, valorizados e amados e desejamos cuidar, acolher, valorizar e amar. As portadoras privilegiadas, mas não exclusivas, desta experiência são as mulheres. Elas estão ligadas diretamente à vida que precisa de cuidado como na maternidade, na alimentação, no desvelo na enfermidade, no acompanhamento da educação. Estas características são próprias do princípio feminino (anima) que se encontra também no homem e que as realiza a seu jeito.

No transfundo desta ética do cuidado há uma antropologia mais fecunda que aquela tradicional, base da ética dominante: parte do caráter relacional do ser humano. Ele é um ser, fundamentalmente, de afeto, portador de pathos, de capacidade de sentir e de afetar e de ser afetado. Além da razão intelectual (logos) vem dotado da razão emocional, sensiível e da razão espiritual. Ele é um ser-com-os-outros e para-os-outros no mundo. Ele não existe isolado em sua esplêndida autonomia, mas vive sempre dentro de redes de relações concretas e se encontra permanentemente conectado. Não precisa de um contrato social para poder viver-junto. Sua natureza consiste em viver comunitariamente.

Sem dúvida, para termos uma cultura da paz duradoura precisamos instituições justas. Mas o funcionamento delas não pode ser formal nem burocrático mas humano, cuidadoso e sensível aos contextos das pessoas e de suas situações. Mais que tudo, devemos nutrir uma cultura generalizada do cuidado para com a Terra, para com as pessoas, especialmente, as mais vulneráveis e nas relações entre os povos para evitar a guerra.

Ao invés do ganha-perde passa a funcionar o ganha-ganha. Com esta estratégia, se diminuem os fatores de tensão e de conflito. Para que se chegue à paz são relevantes as virtudes assumidas conscientemente, como a transparência, a disposição ao diálogo e à escuta, a acolhida calorosa do outro. Isso o presidente Lula o enfatizou ao abordar a questão do Irã sob ameaça da truculência norteamericana e de seus aliados por causa do enriquecimento do urânio para fins pacíficos (pretexto para controlar o petróleo e o gás).

Mas há uma dimensão subjetiva e espiritual que reforça a busca da paz. É a capacidade de perdão e de esquecimento de velhas rixas e conflitos. Hoje que as culturas se encontram, deixam manifestas as tensões históricas que separam os povos. O olhar deve ser dirigido para frente na construção da nova relação fundada numa aliança de cuidado entre todos.

Está dentro das possibilidades de nosso ser, viver esse tipo de humanismo necessário. É a condição da paz duradoura, vista já por Kant como o fundamento da República Mundial.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

17.06.10 - MUNDO- Ubuntu para todos e todas!

Selvino Heck *

Adital - A Copa está revelando ao mundo a África do Sul e o povo africano, livre e alegre. Não podia ser melhor: na primeira década do século XXI, todos e todas podemos ver que os tempos de escravidão e apartheid já se foram e que, mesmo no chão sofrido, duro e pobre de seus países, emerge uma gente com virtudes e jeito de ser há muito perdidos pelos antigos colonizadores, que não puderam tirar o eterno sorriso, o olhar vivo das crianças e das mulheres, a cativante surpresa da felicidade estampada no rosto e na alma.
Os de língua portuguesa temos uma palavra intraduzível em outros idiomas: saudade. É aquela dor no coração que nos deixa tristes e lacrimosos, que nos faz suspirar fundo, que nos faz lembrar no fundo do coração de alguém ou de alguma coisa importante que acontece. Saudade é um estado de espírito.
Pois os africanos têm a sua ‘saudade’. É Ubuntu, "uma forma solidária e participativa de enxergar o mundo numa visão de mundo nascida em sociedades africanas, onde não se enxerga apenas o próprio umbigo, mais se vê o mundo de maneira holística, integrante e integradora. Ter ou ser Ubuntu é lutar contra qualquer tipo de discriminação, ter cidadania ecológica, esforçar-se para melhorar a vida do outro, participar da vida do outro, respeitar a opinião alheia e não humilhar e oprimir. É ser e estar em sociedade, sendo humano e agindo e interagindo com outros seres humanos" (Fátima Reis).
Ubuntu é uma palavra comum em várias línguas africadas, geralmente traduzida como humanidade. Tem muitos significados: amizade, solidariedade, compaixão, perdão, irmandade, ao amor ao próximo, capacidade de entender e aceitar o outro.
Segundo o Prêmio Nobel da Paz, o bispo sul-africano Desmond Tutu, "uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível aos outros, não preocupada em julgar os outros como bons ou maus, e tem consciência de que faz parte de algo maior e que é tão diminuída quanto seus semelhantes que são diminuídos ou humilhados, torturados ou oprimidos. É a essência do ser humano. Nossa humanidade são é afirmada se tem conhecimento da dos outros."
Ubuntu é uma ética ou ideologia da África. A palavra é de origem bantu. Ubuntu é um dos princípios fundamentais da nova república da África do Sul e está intimamente ligado à idéia de uma Renascença Africana. Na esfera política, o conceito do Ubuntu é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária envolvida nessas decisões. No Zimbábue, Ubuntu tem sido usado como forma de resistência à opressão existente no país.
Estamos em tempos em que falta Ubuntu para homens e mulheres e para a humanidade. Vale o ter mais, vale o que posso juntar de bens materiais, o quanto compor todos os dias ou semanas no shopping-templo. Os outros só servem se posso me servir deles. As mansões estão cheias de grades e câmeras, porque o medo do outro supera a vizinhança e a solidariedade. As Bolsas de Valores todos os dias gritam seus milhões e bilhões, como se ficar rico resolvesse alguma coisa na vida. Há uma sede de amealhar bens, de buscar o luxo e o supérfluo. Para isso se fazem guerras, se submetem povos, como o próprio africano, por séculos e ainda hoje. Se alguém morre de fome ou está na miséria, que tenho a ver com isso? Se alguém sofre, ele ou ela que busquem solução onde ela estiver, desde que não me seja exigido nenhum gesto de apoio.
Mesmo no futebol, onde onze formam um time que deve jogar junto, coletivamente para chegar ao gol e à vitória, há falta de Ubuntu. "Olhando os fenômenos do futebol no mundo nos interrogamos: o que é paixão e cultura popular e o que é mercantilização? No lado interno, o futebol é paixão, pulsão e arte; no lado externo, ele é parte importante do mundo globalizado do capital e de um grande negócio. Hoje, cada vez mais, estes lados não se separam. Pelo contrário, convivem e se alimentam. Todos lucram o ano todo com o futebol. Como espetáculo planetário, é a face visível de um Império e um dos dispositivos mais potentes e universais da lógica do lucro. A mercantilização e a monetarização transformaram o futebol numa imensa máquina, que atua no macro e no micro, até o nível mais subjetivo dos corpos dos atletas e mentes dos espectadores. Podemos mesmo falar de ‘economia política do futebol’ como parte da economia política capitalista. Daí nos perguntarmos: o que resta de arte e paixão do povo neste mundo do ‘big business foot’? O que diria Mané Garrincha, eterno romântico, de tudo isso? Será que nada nos resta a não ser assistir ‘Garrincha, alegria do povo’, filme dos anos 60, de Nelson Pereira dos Santos e o mais recente e formidável ‘Invictus’ do diretor Clint Eastwood, em que Nelson Mandela nos mostra a postura político-pedagógica e cultural correta frente ao fenômeno do esporte?" (Cláudio Nascimento, Informativo - Rede de Educação Cidadã, jan/fev/mar 2010 - www.recid.org.br).
Para o ex-presidente e Prêmio Nobel da Paz Nelson Mandela, para ser feliz é preciso viver em coletividade, em harmonia com que está à sua volta: Ubuntu.
Os africanos nos transmitem Ubuntu. Que o futebol e a vida nos levem a viver intensamente!

Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política
FONTE: ADITAL -

terça-feira, 15 de junho de 2010

GOVERNO DOS EUA HOMENAGEIA FREI XAVIER PLASSAT, DA CPT

O coordenador da Campanha da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Combate ao Trabalho Escravo, o dominicano francês, frei Xavier Plassat, foi um dos nove selecionados pelo governo dos Estados Unidos, como ‘herói’ no combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas no mundo. Nesta segunda-feira, 14, foi lançado o relatório anual ‘Tráfico Internacional de Pessoas’, em Washington. Participou da solenidade a secretária de Estado norte-americano, Hilary Clinton.
A homenagem acontece anualmente e é organizada pelo Departamento de Estado dos EUA, que escolhe indivíduos ao redor do mundo que têm dedicado suas vidas à luta contra o tráfico de seres humanos.
Os escolhidos geralmente são militantes de ONGs e movimentos sociais, legisladores, policiais e cidadãos interessados, que estão empenhados em acabar com a escravidão moderna. Eles são reconhecidos por seus esforços incansáveis - apesar da resistência da oposição, e ameaças às suas vidas - em proteger as vítimas, punir os criminosos, e sensibilizar a população contra práticas criminosas em seus países e no exterior.
Além do frei Xavier Plassat, foram escolhidos, também, Aminetou Mint Moctar, da Mauritânia; Natalia Abdullayeva, do Uzbequistão; Linda Al-Kalash, da Jordânia; Ganbayasgakh Geleg, da Mongólia; Christine Sabiyumva, de Burundi; Sattaru Umapathi, da Índia; Irén Adamné Dunai, da Hungria; e Laura Germino, dos Estados Unidos.
O grupo permanece nos Estados Unidos até o dia 19 de junho, participando de atividades com a sociedade, governo e imprensa, a fim de sensibilizar o país, e também o mundo, sobre a questão da escravidão contemporânea e o tráfico de pessoas. Segundo frei Xavier, está sendo uma oportunidade de trocar experiências com os lutadores de outros países, conhecendo a sua realidade, dificuldades e êxitos no combate ao trabalho escravo e ao tráfico humano.
Homenagem da França
Em dezembro de 2009, frei Xavier, juntamente com mais dois dominicanos, freis Henri Burin dês Roziers e Jean Raguenes foram homenageados pela sua atuação social no Brasil, na luta contra o trabalho escravo e as violências agrárias. A homenagem foi idealizada pela embaixada francesa em Brasília e fez parte das comemorações do Ano da França o Brasil. O evento aconteceu na embaixada francesa, em Brasília.

Fonte: CNBB

domingo, 13 de junho de 2010

CARTA A UM AMIGO PETISTA

Frei Betto


Meu caro: sua carta me chegou com sabor de velhos tempos, pelo correio, em envelope selado e papel sem pauta, no qual você descreve, em boa caligrafia, a confusão política que o atormenta.
Pressinto quão sofrido é para você ver o seu partido refém de velhas raposas da política brasileira, com o risco de ser definitivamente tragado, como Jonas, pela baleia... sem a sorte de sair vivo do outro lado.
A política é a arte do improviso e do imprevisto. E como ensina Maquiavel, trafega na esfera do possível. O sábio italiano foi mais longe: eximiu a política de qualquer virtude e livrou-a de preceitos religiosos e princípios éticos. Deslocou-a do conceito tomista de promoção do bem comum para o pragmatismo que rege seus atores – a luta pelo poder.
Você deve ter visto o célebre filme “O anjo azul” (1930), que imortalizou a atriz Marlene Dietrich e foi dirigido por Joseph von Stemberg e baseado no livro de Heinrich Mann, irmão de Thomas Mann. É a história de uma louca paixão, a do severo professor Unrat (Emil Jannings) por Lola-Lola, dançarina de cabaré. Ele tanta aspira ao amor dela, que acaba por submeter-se às mais ridículas e degradantes situações. Torna-se o bobo da corte. Nem a cortesã o respeita. Então, cai em si e procura voltar a ser o que já não é. Em vão.
Me pergunto se o PT voltará, algum dia, a ser fiel a seus princípios e documentos de origem. Hoje, ele luta por governabilidade ou empregabilidade de seus correligionários? É movido pela ânsia de construir um novo Brasil ou pelo projeto de poder? Como o professor de “O anjo azul”, a paixão pelo poder não teria lhe turvado a visão?
Você se pergunta em sua carta “onde o socialismo apregoado nos primórdios do PT? Onde os núcleos de base que o legitimavam como autorizado porta-voz dos pobres? Onde o orgulho de não contar, entre seus quadros, com ninguém suspeito de corrupção, maracutaias ou nepotismo?”
Nunca fui filiado a nenhum partido, como você bem sabe e muitos ignoram. É verdade que ajudei a construir o PT, mobilizei Brasil afora as Comunidades Eclesiais de Base e a Pastoral Operária, participei de seus cursos de formação no Instituto Cajamar e de seus anteparos, como a Anampos e o Movimento Fé e Política.
Prefeitos e governadores eleitos pelo PT me acenaram com convites para ocupar cargos voltados às políticas sociais. Tapei os ouvidos ao canto das sereias. Até que Lula, eleito presidente, me convocou para o Fome Zero. Aceitei por se destinar aos mais pobres entre os pobres: os famintos.
O governo que criou o Fome Zero decidiu por sua morte prematura e deu lugar ao Bolsa Família. Trocou-se um programa emancipatório por outro compensatório. Peguei o meu boné e voltei a ser um feliz ING, Indivíduo Não Governamental. Tudo isso narrei em detalhes em dois livros da editora Rocco, “A mosca azul” e “Calendário do Poder”.
Amigo, não o aconselho a deixar o PT. Não se muda um país vivendo fora dele. O mesmo vale para igreja ou partido. Há no PT muitos militantes íntegros, fiéis a seus princípios fundadores e dispostos a lutar por uma nova hegemonia na direção do partido.
Ainda que você não engula essas alianças que qualifica de “espúrias”, sugiro que prossiga no partido e vote em seus candidatos ou nos candidatos da coligação. Mas exija deles compromissos públicos. Lute, expresse sua opinião, faça o seu protesto, revele sua indignação. Não se sujeite à condição de vaca de presépio ou peça de rebanho.
Se sua consciência o exigir, se insiste, como diz, em preservar sua “coerência ideológica”, então busque outro caminho. Nenhum ser humano deve trair a si próprio. Quando o faz, perde o respeito a si mesmo, como o professor de “O anjo azul”. Mas lembre-se de que uma esquerda fragmentada só favorece o fortalecimento da direita.
A história não tem donos. Muito menos os processos libertadores. Tem, sim, protagonistas que não se deixam seduzir pelas benesses do inimigo, cooptar por mordomias, corromper-se por dinheiro ou função. Nunca confunda alianças táticas com as estratégicas. Ajude o PT a recuperar sua credibilidade ética e a voltar a ser expressão política dos movimentos sociais que congregam os mais pobres e as bandeiras que exigem reformas estruturais no Brasil.
Lembre-se: para fazer a omelete é preciso quebrar os ovos. Mas não se exige sujar as mãos.


Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org – twitter - @freibetto


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sexta-feira, 11 de junho de 2010

SOCIALISMO E LIBERDADE -

FREI BETTO

O socialismo é estruturalmente mais justo que o capitalismo. Porém, em suas experiências reais não soube equacionar a questão da liberdade individual e corporativa. Cercado por nações e pressões capitalistas, o socialismo soviético cometeu o erro de abandonar o projeto originário de democracia proletária, baseado nos sovietes, para perpetuar a maldita herança da estrutura imperial czarista da Rússia, agora eufemisticamente denominada “centralismo democrático”.

Em países como a China é negada à nação a liberdade concedida ao capital. Ali o socialismo assumiu o caráter esdrúxulo de “capitalismo de Estado”, com todos os agravantes, como desigualdade social e bolsões de miséria e pobreza, superexploração do trabalho etc.

Não surpreende, pois, que o socialismo real tenha ruído na União Soviética, após 70 anos de vigência. O excessivo controle estatal criou situações paradoxais, como o pioneirismo dos russos na conquista do espaço. No entanto, não conseguiram oferecer à população bens de consumo elementares de qualidade, mercado varejista eficiente e uma pedagogia de formação dos propalados “homem e mulher novos”.

Nesse cenário, Cuba é uma exceção. Trata-se de uma quádrupla ilha: geográfica, política (é o único país socialista da história do Ocidente), econômica (devido ao bloqueio imposto criminalmente pelo governo dos EUA) e órfã (com o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, em 1989, perdeu o apoio da extinta União Soviética).

O regime cubano é destaque no que concerne à justiça social. Prova disso é o fato de ocupar o 51º lugar no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) estabelecido pela ONU (o Brasil é o 75º) e não apresentar bolsões de miséria (embora haja pobreza) nem abrigar uma casta de ricos e privilegiados. Se há quem se lance no mar na esperança de uma vida melhor nos EUA, isso se deve às exigências, nada atrativas, de se viver num sistema de partilha. Viver em Cuba é como habitar um mosteiro: a comunidade tem precedência sobre a individualidade. E é preciso considerável altruísmo.

Quanto à liberdade individual, ela jamais foi negada aos cidadãos, exceto quando representou ameaça à segurança da Revolução ou significou empreendimentos econômicos sem o devido controle estatal. É inegável que o regime cubano teve, ao longo de cinco décadas (a Revolução completou 50 anos, em 1º de janeiro de 2009), suas fases de sectarismo, tributárias de sua aproximação com a União Soviética.

Porém, jamais as denominações religiosas foram proibidas, os templos fechados, os sacerdotes e pastores perseguidos por razões de fé. A visita do papa João Paulo II à Ilha, em 1998, e sua apreciação positiva sobre as conquistas da Revolução, mormente nas áreas de saúde e educação, o comprovam.

No entanto, o sistema cubano dá sinais de que poderá equacionar melhor a questão de socialismo e liberdade através de mecanismos mais democráticos de participação popular no governo, a flexibilização do monopartidarismo, maior rotatividade no poder, de modo que as críticas ao regime possam chegar às instâncias superiores sem que sejam confundidas com manifestações contrarrevolucionárias. Sobretudo na área econômica, Cuba terá de repensar seu modelo, facilitando à população acesso à produção e consumo de bens que englobam desde o pão da padaria da esquina às parcerias de empresas de economia mista com investimentos estrangeiros.

No socialismo não se trata de falar em “liberdade de” e sim em “liberdade para”, de modo que esse direito inalienável do ser humano não ceda aos vícios capitalistas que permitem que a liberdade de um se amplie em detrimento da liberdade de outros. O princípio “a cada um, segundo suas necessidades; de cada um, segundo suas possibilidades” deve nortear a construção de um futuro socialista em que o projeto comunitário seja, de fato, a condição de realização e felicidade pessoal e familiar.

A SAUDADE DO SERVO NA VELHA DIPLOMACIA BRASILEIRA

LEONARDO BOFF - Teológo

O filósofo F. Hegel em sua Fenomenologia do Espírito analisou detalhadamente a dialética do senhor e do servo. O senhor se torna tanto mais senhor quanto mais o servo internaliza em si o senhor, o que aprofunda ainda mais seu estado de servo. A mesma dialética identificou Paulo Freire na relação oprimido-opressor em sua clássica obra Pedagogia do oprimido. Com humor comentou Frei Betto: "em cada cabeça de oprimido há uma placa virtual que diz: hospedaria de opressor". Quer dizer, o opressor hospeda em si oprimido e é exatamente isso que o faz oprimido. A libertação se realiza quando o oprimido extrojeta o opressor e ai começa então uma nova história na qual não haverá mais oprimido e opressor mas o cidadão livre.

Escrevo isso a propósito de nossa imprensa comercial, os grandes jornais do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre, com referência à política externa do governo Lula no seu afã de mediar junto com o governo turco um acordo pacífico com o Irã a respeito do enriquecimento de urânio para fins não militares. Ler as opiniões emitidas por estes jornais, seja em editoriais seja por seus articulistas, alguns deles, embaixadores da velha guarda, reféns do tempo da guerra-fria, na lógica de amigo-inimigo é simplesmente estarrecedor. O Globo fala em "suicídio diplomático"(24/05) para referir apenas um título até suave. Bem que poderiam colocar como sub-cabeçalho de seus jornais:"Sucursal do Império" pois sua voz é mais eco da voz do senhor imperial do que a voz do jornalismo que objetivamente informa e honestamente opina. Outros, como o Jornal do Brasil, tem seguido uma linha de objetividade, fornecendo os dados principais para os leitores fazerem sua apreciação.

As opiniões revelam pessoas que têm saudades deste senhor imperial internalizado, de quem se comportam como súcubos. Não admitem que o Brasil de Lula ganhe relevância mundial e se transforme num ator político importante como o repetiu, há pouco, no Brasil, o Secretário Geral da ONU, Ban-Ki-moon. Querem vê-lo no lugar que lhe cabe: na periferia colonial, alinhado ao patrão imperial, qual cão amestrado e vira-lata. Posso imaginar o quanto os donos desses jornais sofrem ao ter que aceitar que o Brasil nunca poderá ser o que gostariam que fosse: um Estado-agregado como é Hawai e Porto-Rico. Como não há jeito, a maneira então de atender à voz do senhor internalizado, é difamar, ridicularizar e desqualificar, de forma até antipatriótica, a iniciativa e a pessoa do Presidente. Este notoriamente é reconhecido, mundo afora, como excepcional interlocutor, com grande habilidade nas negociações e dotado de singular força de convencimento.

O povo brasileiro abomina a subserviência aos poderosos e aprecia, às vezes ingenuamente, os estrangeiros e os outros povos. Sente-se orgulhoso de seu Presidente. Ele é um deles, um sobrevivente da grande tribulação, que as elites, tidas por Darcy Ribeiro como das mais reacionárias do mundo, nunca o aceitaram porque pensam que seu lugar não é na Presidência mas na fábrica produzindo para elas. Mas a história quis que fosse Presidente e que comparecesse como um personagem de grande carisma, unindo em sua pessoa ternura para com os humildes e vigor com o qual sustenta suas posições .

O que estamos assistindo é a contraposição de dois paradigmas de fazer diplomacia: uma velha, imperial, intimidatória, do uso da truculência ideológica, econômica e eventualmente militar, diplomacia inimiga da paz e da vida, que nunca trouxe resultados duradouros. E outra, do século XXI, que se dá conta de que vivemos numa fase nova da história, a história coletiva dos povos que se obrigam a conviver harmoniosamente num pequeno planeta, escasso de recursos e semi-devastado. Para esta nova situação impõe-se a diplomacia do diálogo incansável, da negociação do ganha-ganha, dos acertos para além das diferenças. Lula entendeu esta fase planetária. Fez-se protagonista do novo, daquela estratégia que pode efetivamente evitar a maior praga que jamais existiu: a guerra que só destrói e mata. Agora, ou seguiremos esta nova diplomacia, ou nos entredevoraremos. Ou Hillary ou Lula.

A nossa imprensa comercial é obtusa face a essa nova emergência da história. Por isso abomina a diplomacia de Lula.

ARGENTINA: O PRETEXTO DE UM BICENTENÁRIO

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Quem me conhece sabe. Casada com um argentino, “porteño” militante há mais de 40 anos, o país “hermano” não poderia ser-me indiferente. Ou amado ou odiado. Não havia saída. Pois ainda que às vezes hesitando e debatendo, optei pela primeira alternativa. Adotei a Argentina como minha segunda nacionalidade. Amo o país, a capital, os costumes, a comida, a música, o vinho, a cultura.

Confesso que no início eu os achava um tanto antipáticos, com aquele complexo de superioridade, olhando-nos de cima abaixo, com sua elegância britânica. Chamavam-nos de “macaquitos” e criticavam nossas roupas coloridas, nosso carnaval, nosso calor. Depois percebi que era jeito de ser. Assim como nós somos barulhentos, eles são mordazes, ferinos. E como cada povo tem seu pecado capital, o deles é a soberba. E o nosso – ai! - sem dúvida é a inveja.

Pouco a pouco, com viagens frequentes para ver a sogra, visitar amigos, o “medio pelo” foi me conquistando. Aprendi a apreciar a fidelidade que os caracteriza na amizade. Meu marido está longe de lá desde os 22 anos e agora, aos 65, chega a Buenos Aires e é recebido com fanfarras por aqueles que conheceu no colégio, de calças curtas. Parece que Jorge Luis Borges, o grande – mais um ponto para a Argentina! – dizia algo a respeito disso: os argentinos se destacam por sua fidelidade extrema à amizade e aos amigos.

Fui aprendendo que em torno de um “asado” (nome argentino para churrasco) e um vinho as tensões se desfazem e o ambiente se descontrai. Fica tudo agradável e a conversa flui deliciosa. Aliás, são grandes conversadores, além de mestres na arte da sedução.

O tempo foi passando e à medida que eu fazia meu caminho na universidade e na academia, foi um outro lado do país e sobretudo da capital, Buenos Aires, que cativou de vez meu coração: o ambiente culto e sofisticado, e as livrarias maravilhosas e abundantes. Caminhar pela calle Cordoba e tropeçar em livrarias de todos os tamanhos, especialidades e conteúdos é, sem dúvida, um prazer indescritível.

É um povo que lê, que reflete, que discute e tem prazer nisso. Povo que vai ao cinema e debate o filme. Povo que cria revistas, escreve, publica, divulga. País onde os professores e “scholars”, além dos cursos regulares, têm uma vasta clientela que lhes pede seminários, workshops e cursos particulares. Povo que não para de pensar, de refletir, de debater, de elaborar. E para isso lê em toda parte: na rua, nos cafés onde podem passar o dia inteiro, no ônibus, no táxi, no metrô.

Percebo que por isso conseguem emergir de todas as crises. Trata-se de um povo bem educado e culto. E impressionantemente politizado. Não é fácil enrolar o povo argentino, por piores que sejam seus governantes. A sociedade civil se re-organiza por si mesma , inventa novas saídas, pois tem nas mãos a ferramenta de uma educação de qualidade.

A nós olham agora com respeito e algo de admiração. Somos uma potência, dizem. Sabemos olhar para o futuro. É certo e muito me orgulha. Mas quando nosso querido povo brasileiro entenderá que a Educação é prioridade zero para construir um povo e uma nação? Que no bicentenário possamos aprender com o país irmão, é o que desejo de todo coração.


Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape

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