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sábado, 30 de janeiro de 2021

XENOFOBIA EM TEMPOS DE CORONAVIRUS (3)

 

FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(26/01/2021)

 

     Em certas situações desafiadoras da vida, a leitura de um genial pensador abre-nos o entendimento para discernir os fatos, em suas raízes, causas e efeitos. Em se tratando de questões  políticas (na prática, a política envolve todos os segmentos de uma sociedade), há  um filósofo que permanece sempre atual: Nicolau Maquiavel, autor de "O Príncipe".

     Compreenderemos  melhor esta onda de extremismo fascista que se alastra mundo afora, à luz deste pensamento maquiavélico: "os homens tem menos escrúpulos de ofender quem se faz amar do que quem se faz temer; pois o amor depende de uma vinculação moral que eles, sendo maus, rompem, mas o temor é  mantido pelo medo do castigo, que não abandonamos nunca" ("O Príncipe"). Maquiavel conclui daí que o Estado se funda no terror e precisa usar as armas do terror.

      Governos de tendência totalitária não escondem sua admiração por Maquiavel nem sua aversão à democracia, ao princípio de que o poder emana do povo e se legitima pela vontade popular. Meta prioritária de todos  eles é  criar um "Pensamento Único", sob a tutela do Estado.

     Dentro desta visão encaixa-se o tema da xenofobia, do ódio ao diferente.

     Uma pandemia, com a dimensão desta que estamos enfrentando, deixa-os na perplexidade e na impotência, justamente porque nivela indivíduos e classes sociais, e os nivela "por baixo", q.d. na dor e na solidão. A dor e solidão de um banqueiro internado na UTI não são menores do que as de um humilde operário. Nem as de um "pé rapado" maiores do que as de um "sangue azul".

     Frente a essa catástrofe, fascistas e fundamentalistas buscam saída no negacionismo ("coronavirus é invenção  chinesa"). É a cegueira dos que precisam não ver para não descambar num inferno astral. Pois não há maior tortura para eles do que a prova irrefutável de que estão errados. Com medo das evidências bloqueiam qualquer discussão a nível racional. Ao primeiro argumento do adversário, reagem com gritos de guerra: "Comunista! Ateu! "Bolivariano!"

     Em duas reflexões  anteriores, focamos, como vítimas da xenofobia social, os povos indígenas. Contudo, para uma compreensão mais ampla, convém lembrar que eles não são os únicos, há outros até mais próximos de nós. Por ex. CANUDOS. No ano de 1893, uma grande massa de flagelados nordestinos, vivendo na mais total escravidão, sob o chicote implacável das elites oligárquicas dos coronéis, ouviram o beato Antônio Conselheiro pregando "um outro mundo possivel". Não  tinham eles a mínima chance de libertar-se, sofrer como escravos para não  morrer pela fome era seu destino e o legado que podiam deixar para seus filhos e filhas. Só lhes restava uma saída contra o desespero: a Fé  messiânica. Chega-lhes então um novo "Messias" na pessoa de um visionário cearense de Quixeramobim. O Conselheiro prega valores religiosos de cunho  subversivo contra a República recém proclamada, contra os maus costumes e a ordem estabelecida, em vista de um novo Reino terrestre e celeste. Seus seguidores fogem para Canudos, no interior da Bahia e fundam uma aldeia a que chamaram Arraial do Belo Monte.

      começam a fazer a diferença. Em Canudos não se cobravam impostos, não havia roubo nem opressão, acolhiam-se mães solteiras desamparadas e o produto do trabalho era distribuído entre os habitantes igualitariamente.

    Contra essas hordas de "comunistas" aliaram-se os poderes supremos da nação: os Fazendeiros, que perdiam mão-de-obra, a Igreja, que perdia fiéis e via distorções doutrinárias na pregação do Conselheiro, o Governo, que não tinha controle sobre eles, e a Imprensa, subserviente e venal.

     Depois de 4 expedições fracassadas,  15.000 soldados cercaram o arraial, com ordem de não fazer prisioneiros. Os habitantes de Canudos foram massacrados até

os últimos: dois homens e um menino.

     Foi a morte de mais uma utopia. Mas não da UTOPIA. Inspirado na tragédia de Canudos, o famoso romancista peruano Vargas Llosa escreveu "A Guerra do Fim do Mundo". O título aponta para sua dimensão simbólica: "ESTA LUTA VAI DURAR ATÉ O FIM DO MUNDO".

     A despeito de erros e limites, salvemos as raízes cristãs de cada utopia, a fim de perpetuá-las com as palavras de Jesus: "Não tenham medo, eu venci o mundo... e estarei com vocês até o final dos tempos" cf.Mt.16,1ss e 20,1ss.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O PROTO FACISMO BRASILEIRO E SEU ¨DUCE” E “FÜHRER” DE ARAQUE

 


                                                                            Leonardo Boff


         Estamos vivendo num momento trágico de nossa história nacional. Tivemos regimes autoritários e até ditatoriais. Estes se caracterizam pela brutalidade nas relaçõe sociais, a tortura e o desaparecimento de seus opositores.Era feita política de estado e seus  líderes apresentam-se farsescos, arrogantes e toscos na linguagem e nos comportamentos públicos.

         O Brasil atual é dominado por um fascismo tardio com características nossas mas cujo miolo teórico é inegavelmente nazifascista. Dizemos que é um proto fascismo porque é tão fraco de propósito e desorientado teeoricamente que mesmo querendo não consegue se impor como um real fascismo. Mas excele em grosserias, fake news, mentiras deslavadas e perda quase total de sentido de realidade. Nosso “Führer/Duce”de araque afirma que o Brasil está em primeiro lugar no mundo no combate ao Corona-vírus quando no ranking internacional figura em último lugar. O ministro das relações exteriores, conhecido terraplanista, considera um louvor ser “pária internacional” e o afirma dentro do próprio prédio do Itamaraty para vergonha da memória de notáveis diplomatas e chanceleres. 

Se há um poço em nossa história, encontramo-nos no mais profundo, embora o seu “Führer/Duce” tresloucado,  acha que estamos no monte das bem-aventuranças. Todas as sombras de nossa história, os níveis de karma coletivo do genocídio indígena, de nossa fase colonial, da bruta escravidão e da dominação das classes argentárias que nunca tiveram um projeto de Brasil mas somente para si,com explícita exclusão do povo, a maioria empobrecida e marginalizada, ganharam densidade na atual administração. Sequer pode ser considerado de governo, pois não apresenta nenhum projeto nacional e atua conforme o humor de seu “chefe”. As constituições não funcionam, como se pretende, pois os piores crimes como os  ecológicos (os incêndios de Amazônia e no Pantanal) e sociais (a matança de jovens, na maioria negros, nas periferias das grandes cidades, especialmente no Rio de Janeiro) e a humilhação sistemática de pessoas de outra opção afetiva como os LGBTI permanecem impunes e sequer investigados.

Notáveis juristas nacionais e internacionais apontaram dois tipos de crimes do atual chefe de estado: crimes de responsabilidade que embasaram dezenas de pedidos de impeachment  a serem analisados e julgados pelo Parlamento; e outros dezenas de crimes comuns a serem acolhidos e julgados pelo STF em razão da imunidade da figura do presidente. Nenhum deles foi acolhido e analisado, para perplexidade da consciência cívica da nação e por descaso acerca dos destinos de todo um povo que não lhes importa desde que sejam assegurados seus privilégios monetários e de estado de que gozam à custa do erário público.

Os que mais deveriam se preocupar com a vida do povo como o STF e o MPF colocam a Constituição ou as leis diante dos olhos para assim não verem a realidade e se dispensarem de agir como deveriam. Poucas vezes em nossa história conhecemos tão vergonha omissão e leniência que se aproxima da cumplicidade.

Mas procuremos conhecer melhor esse nefasto modo proto fascismo de governar, conhecer suas origens e darmo-nos conta de sua versão tupiniquim e de araque entre nós. Ficamos entre o riso amargo e o escárneo.

O fascismo originário é uma derivação extremada do fundamentalismo que tem larga tradição em quase todas as culturas. S. Huntington em sua discutida obra Choque de civivlizações denuncia o  Ocidente como um dos mais virulentos fundamentalistas e nas guerras exteriores com claros sinais de fascismo. Imagina que sua cultura é a melhor do mundo, possui a melhor religião, a única verdadeira, a melhor forma de governo, a democracia, a melhor tecno-ciência que mudou a face do planeta e que lhe conferiu a capacidade de destuir todos os seres humanos e parte da biosfera com suas armas letais. Quando o fujão ex-presidente Donald Trump afirma “America first” está entendendo “só a América” e o resto do mundo que se lasque.

Conhecemos o fundamentalismo islâmico e outros, também de grupos da Igreja Católica atual que ainda creem ser ela a única e exclusiva Igreja de Cristo, fora da qual não há salvação. Tal visão errônea medieval e superada oficialmente pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) publicada de forma oficial pelo então Card. Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, num documento oficial do ano 2000 “Dominus Jesus”, humilhou todas as igrejas e abriu espaço para a satanização e até a perseguição de outras denominações cristas e não cristas. Graças a Deus temos o Papa Francisco, cheio de razoabilidade e de bom senso, que invalidou tais distorções e favoreceu o mútuo reconhecimento das igrejas, todas unidas, no serviço à humanidade e na salvaguarda do planeta seriamente ameaçado.

Todo aquele que pretende ser portador exclusivo da verdade está condenado a ser fundamentalista, com mentalidade fascistoide e fechar-se sobre si mesmo, sem diálogo com os outros.

Aqui vale recordar as palavras do grande poeta espanhol António Machado, vítima da ditadura de Francisco Franco na Espanha:”Não a tua verdade. Mas a verdade.Vem comigo buscá-la. A tua guarde-a para ti mesmo”. Se juntos a procurarmos, ela  será então mais plena.

O fascismo nasceu e nasce dentro de um determinado contexto de anomia, de desordem social ede crise generalizada bem como estamos vivendo no Brasil e em outras partes do mundo, particularmente no Norte da África e no Oriente Médio. Desaparecem as certezas e as ordens estabelecidas se debilitam. A sociedade e os cidadãos têm dificuldade em viver em tal situação.

Cientistas sociais e historiadores como Eric Vögelin (Order and History, 1956; L. Götz, Entstehung der Ordnung 1954; Peter Berger, Rumor de Anjos: a sociedade moderna e redescoberta do sobrenatural,1973), mostraram que os seres humanos possuem um tendência natural para a ordem. Lá onde se assentam, criam logo uma ordem e o seu habitat. Quando esta desaparece, usa-se comumente a violência para impor certa ordem. O Leviatã de Thomas Hobbes de 1651 (ed. Vozes 2020) elaborou o arcabouço teórico desta urgência de ordem. Todos os impérios, desde aquele dos romanos até o russo e o atual norte-americano, mesmo sob Joe Biden, não ocultam sua excepcionalidade e se acercam ao Estado descrito por Hobbes, sempre alegando razões de segurança.

O nicho do fascismo encontra seu nascedouro nesta desordem. Assim o final da Primeira Guerra Mundial gerou um caos social, especialmente na Alemanha e na Itália. A saída foi a instauração de um sistema autoritário, de dominação que capturou a representação política, mediante um único partido de massa, hierarquicamente organizado, enquadrando todas as instâncias, a política, a econômica e a cultural numa única direção. Isso só foi possível mediante um chefe (Füher na Alemanha e o Ducce, na Itália) que organizaram um Estado corporativista autoritário e de terror.

Como legitimação simbólica cultuavam-se os mitos nacionais, os heróis do passado e as antigas tradições, geralmente num quadro de grandes liturgias políticas com a inculcação da ideia de uma regeneração nacional. Esta visão foi tão tentadora que chegou a iludir, por um curto tempo, o maior filósofo do século XX que foi Martin Heidegger e por isso feito reitor da Universidade de Friburgo i. B. Especialmente na Alemanha os seguidores  de Hitler se investiram da convicção de que a raça alemã branca é “superior”às demais com o direito de submeter e até de eliminar as inferiores. Nos USA o supremacismo da raça branca encontra nessa visão seu embasamento prático. No Brasil a estratégia continua sendo perversa: destruir todo um passado seja na cultura, nas leis sociais e ambientais, seja nos costumes e implantar um regime com nítidos indicadores  pre-iluministas, inspirados pelo lado escuro do mundo medieval encobrindo o lado luminoso das grandes catedrais, das geniais sumas teológicas de seus sábios e místicos.

A palavra fascismo  foi usada pela primeira vez por Benito Mussolini em 1915 ao criar o grupo “Fasci d’Azione Revolucionaria”. Fascismo se deriva do feixe (fasci) de varas, fortemente amarradas, com um machado preso ao lado. Uma vara pode ser quebrada, um feixe, é quase impossível de fazê-lo. Em 1922/23 fundou o Partido Nacional Fascista que perdurou até sua derrocada em 1945. Na Alemanha  se estabeleceu a partir de 1933 com Adolf Hitler que ao ser feito chanceler criou o Nacional-socialismo, o partido nazista que impôs ao país dura disciplina, vigilância e pavor.

O fascismo se apresentou como anticomunista, anticapitalista, como uma corporação que vai além das classes e cria uma totalidade social cerrada. A vigilância, a violência direta, o terror  e o extermínio dos opositores são características do fascismo histórico de Mussolini e de Hitler  e entre nós de Pinochet no Chile, de Videla na Argentina e do governo de Figueiredo e de Médici no Brasil.

O fascismo nunca desapareceu totalmente, pois sempre há grupos que, movidos por um arquétipo fundamental desintegrado da totalidade,  buscam a ordem de qualquer forma. É o proto fascismo atual. Hoje no Brasil há uma figura mais hilária que ideológica que propõe o fascismo em nome do qual justifica a violência, a defesa da tortura e de torturadores, da homofobia e outras distorções sociais. Sempre em nome de uma ordem a ser forjada contra a pretensa  desordem vigente, usando de violência simbólica e real.

O fascismo sempre foi criminal. Criou a Shoah (eliminação de milhões de judeus). Usou a violência como forma de se relacionar com a sociedade, por isso nunca pode nem poderá se consolidar por longo tempo. É a perversão maior da sociabilidade que pertence à essência do ser  humano. No Brasil ganhou uma forma assassina e trágica: um governo que se opõe à vacina contra o Covid-19, estimula as conglomerações e ridiculariza o uso da máscara e, o que é pior, vê hilariamente mais de 218 mil vitimados pela pandemia, sem qualquer sentido de empatia pelos familiares e próximos, com quase dez milhões de afetados, como expressão criminosa de desprezo pela vida de seus compatriotas. Não só nada ou pouco faz, como impede e cria entraves para quem faz. Dada a omissão senão da cumplicidade das autoridades competentes que deveriam agir em termos de salvação nacional e não agem, nos levam a pensar na verdade deixada por  Martin Heidegger em sua última entrevista sobre os riscos letais de nosso tipo de civilização:”Só um Deus nos poderá salvar” (nur noch ein Gott kann uns retten). Mas temos confiança de que o Brasil é maior e melhor do que seu atual algoz e  por isso, vamos ainda viver, sobreviver e irradiar um futuro bom para nós e para a inteira humanidade. Cremos e esperamos.

 

Leonardo Boff teólogo, filósofo e escritor e publicou: Fundamentalismo e terrorismo:desafios para o século XXI,  Vozes 2009; Brasil: concluir a refundação ou  prolongar a dependência, Vozes 2018 e Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a humanidade, Vozes 2020/2021.

 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

2022, UM PRESIDENTE DE CENTRO?

 

Frei Betto


              Todos os chamados “candidatos de centro” são, sem exceção, de direita. Defendem as mesmas pautas de Bolsonaro. Mudam apenas os métodos e a retórica.

 

       Como no mar, toda onda começa pela sobreposição de gotas empurradas pelo vento. “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, dizia Goebbels. É o que vimos nas eleições de 2018. Fake news em profusão e as tramoias da Lava-Jato impediram Lula de ser candidato e ainda suscitaram o moralismo antipetista. Nessa onda surfou Bolsonaro e arrebatou a faixa presidencial.

       Dois anos de governo foram suficientes para o stablishment se dar conta de que apostou suas fichas no cavalo errado. Nada neste governo dá certo, exceto as sucessivas obras de demolição da saúde, da educação, da cultura, dos direitos humanos, das políticas ambientais e da segurança pública. A pandemia ganhou no Brasil dimensão genocida; a economia retrocede; a inflação reaparece; o desemprego cresce; a desigualdade se agrava; e a violência explode.

       O Brasil virou o patinho feio da conjuntura internacional. Alvo de chacotas e desprezo, a política exterior brasileira se atrelou ao trumpismo e, agora, órfã, está condenada a se apegar aos próprios fantasmas, da natureza comunista do coronavírus ao terraplanismo.

       De olho nas eleições presidenciais de 2022, a elite brasileira afixa por toda parte o cartaz “Procura-se um candidato”. Até agora apenas dois se postulam com certeza, mas nenhum deles interessa aos donos e beneficiários do cassino financeiro: Bolsonaro e Ciro Gomes. Busca-se, então, um candidato “de centro”, para fugir aos “extremismos” do capitão e do peão (Lula). 

       Súbito, o centro se inflou de possíveis candidatos: Moro, Huck, Doria, Maia, e sabe-se lá quantos mais aparecerão para repetir o que, certa vez, me disse um arcebispo: “Não sou de esquerda nem de direita, sou do alto...”

       Ora, todos os chamados “candidatos de centro” são, sem exceção, de direita. Defendem as mesmas pautas de Bolsonaro. Mudam apenas os métodos e a retórica. Todos naturalizam a desigualdade social e rejeitam uma reforma tributária que obrigue os ricos a pagar mais impostos. Todos defendem os privilégios do capital privado sobre os direitos coletivos. Todos são favoráveis à criminalização dos movimentos populares e aprovam a PEC que congelou por 20 anos os orçamentos da Saúde e da Educação. Todos apoiam políticas sociais paliativas e são contrários a qualquer reforma estrutural capaz de mudar este país para melhor, como a reforma agrária. 

       É hora de denunciar essa falácia! Para a elite, o ator principal desse governo exagera no desempenho ao ficar indiferente à pandemia, promover queimadas e desmatamento, fazer apologia da tortura e do livre comércio de armas. É preciso substituí-lo por alguém mais comedido, perfumado, dotado de bons modos. Alguém que efetive a privatização do patrimônio público e tenha mais habilidade na relação com o nosso maior parceiro comercial, a China.

       Enfim, é preciso trocar o ator para que a encenação prossiga com o mesmo roteiro e assegure o final feliz do andar de cima, e as desgraças do andar de baixo. Como diz o personagem de Lampedusa, “é preciso mudar, para que tudo permaneça como está”.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – uma leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

 

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 


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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

XENOFOBIA EM TEMPOS DE CORONAVIRUS (2)

 

FREI ALOISIO FRAGOSO


(22/01/2021)

     Em nossa última Reflexão começamos a falar de um fenômeno  que está se alastrando por toda parte, como uma das mais cruéis  discriminações  entre seres humanos. Além de tenebroso, ele é subliminar, só aparece em seus efeitos, semelhante ao coronavirus, porém mais devastador porque é gerado conscientemente.

     Trata-se da xenofobia.

     Em tradução literal, esta palavra de origem grega significa "medo do estrangeiro"; em suas consequências, ela se amplia e se transforma em "ódio ao diferente".

         Escolhemos como parâmetro um grupo de brasileiros cujos ancestrais habitavam estas terras quando aqui aportaram os primeiros invasores portugueses. A irrupção  do coronavirus veio escancarar sua vulnerabilidade, a ameaça que enfrentam por serem diferentes.

     Faz pouco tempo, um alto funcionário da FUNAI apresentou uma proposta com o seguinte conteúdo: vamos matricular crianças  das tribos indígenas em escolas das aldeias vizinhas. Aí  elas se misturam com outras crianças brancas, negras, morenas. Com tempo se amigam, se gostam, se casam e então acontece, espontaneamente, a miscigenação.

       os idiotas não  percebem nesta política de aparência simplória, a mais sutil forma de genocídio: a eliminação da própria identidade de um povo, vale dizer, o aniquilamento de sua alma. Uma repetição disfarçada do que aconteceu há 500 anos. Presenciando a completa destruição dos lugares sagrados de suas tribos pelos invasores espanhóis, muitos pajés aztecas pensavam "se destroem nosso deuses, destroem nossas almas". Então sentavam-se à beira do caminho e deixavam-se  definhar até  a morte. Como viver sem alma, sem identidade, sem história, sem ser?

 

     Qualquer pessoa que perde a raiz de seus ancestrais, as referências que lhe dão  sustentação vital, passa a vagar como ser indefinido, à deriva, privado de auto-estima, igual a um louco, sem saber quem é.

     A maior parte da nossa população, condicionada, mal-informada, enxerga nessa gente que vive em contato permanente com a natureza, personalizando todo universo, tratando como pessoas os montes, os rios, os bichos, as plantas; chamando a terra de mãe e se negando a ser proprietários dela porque não se pode comprar e vender a própria mãe, vendo nos outros seres não apenas os provedores da sua subsistência, mas também o sentido da sua existência, recusando-se a contribuir com um progresso que nada tem a ver com sua idéia de progresso... a maior parte a vê como subhumanidade, não se apercebe que aí se revela uma cosmovisão, uma filosofia de vida. Quem garante que a nossa é melhor, em sentido vivencial? Não somos melhores, não somos piores, somos iguais. Melhor é quem alcança o bem supremo de conviver em paz, em felicidade. O resto vem a seu tempo, determinado pela evolução dos séculos, no tempo de cada povo.

     É  hora de reaprendermos as grandes lições  da História. As atuais políticas xenofóbicas refazem o plano de todos os sistemas totalitários: morte às minorias! E novos Adolfos Hitler se reencarnam prontos a impor a ideologia da raça superior e única  no domínio  das nações.

    Nossa consciência cidadã  nos adverte: o fato de sermos iguais em humanidade não nos obriga à uniformidade de idéias, valores e crenças, mas nos torna capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças. Enquanto a Fé cristã nos remonta às origens do cristianismo: ele teve início, logo após o acontecimento de Pentecostes, quando os apóstolos começaram a pregar em Jerusalém, a um platéia heterogênea de judeus, partos, medos, ilamitas, e outros vindos do Egito, da Mesopotâmia, da Capadócia, da Frígia, da Panfília, (cfr. Atos 2,5ss). Todos estes ouviram decerto os apóstolos repetirem esta palavra de Jesus: "vocês sabem que os governantes deste mundo subjugam e oprimem seu povo; entre vocês não deve ser assim. Quem quiser ser o maior, seja o servo de todos" Mt.20, 25-26.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

A URGÊNCIA DE GANDHI NO MUNDO ATUAL

 


Marcelo Barros

 

 

Assim como termômetro denuncia a febre, se houvesse um instrumento que mostrasse o grau de intolerância e violência presente na sociedade, talvez tivéssemos inventar números acima de cem. Parece que, a cada dia, as pessoas se tornam mais incapazes de lidar com diferenças políticas, culturais e religiosas. Há quem se pergunte porque e como chegamos a esse ponto. No Brasil, nenhuma rede de televisão ou órgão de comunicação vai publicar tudo o que tem feito para semear, ódio, racismo e para sustentar no poder não apenas um Bozo qualquer, mas os/as representante daquilo que, com razão, Jessé de Souza chama de “elite do atraso”. Por isso, é urgente buscar algum antídoto para a epidemia da raiva e reencontrar motivos para teimar em termos fé na humanidade. Assim sendo, nunca foi tão necessário e oportuno, nestes últimos dias de janeiro, nos unir aos irmãos e irmãs da Índia, no aniversário do martírio do Mahatma Gandhi. Que a memória da sua vida e da sua mensagem de paz e não violência possam nos ajudar.

Em Dehli, no dia 30 de janeiro de 1948, um hindu fanático assassinou Gandhi pelo fato de que o mestre, sendo hinduísta, decidiu morar em um bairro de muçulmanos para vivenciar o diálogo entre as religiões. Até hoje, na Índia, um partido político prega que ser hindu de nacionalidade significa pertencer à religião hinduísta. E assim todos os hindus que são muçulmanos, judeus ou cristãos são considerados traidores.

Infelizmente, mais de 70 anos depois, o mundo de hoje ainda está menos tolerante e menos capaz de convivência nas diferenças. Por isso, é urgente recordar a herança do Mahatma Gandhi e atualizá-la para nós e para toda a humanidade. Alguns de seus pensamentos percorrem o mundo inteiro e propõem um novo modo de agir: “Comece por você mesmo a mudança que propõe ao mundo”.Você pode se considerar feliz somente quando o que pensa, diz e o modo como age estiverem em completa harmonia”. Aí está uma profunda indicação de caminho.

A realidade do mundo atual é muito diversa da época de Gandhi na qual a Índia era dominada colonialmente pela Inglaterra. No entanto, apesar disso, as principais intuições de Gandhi se mantêm necessárias.  Sua luta pacífica, através da Satyagraha, o caminho da verdade e da Ahimsa, a não violência podem ser  para nós instrumentos de nossa ação social e política para transformar o mundo.

No século XX, a ação de Gandhi conduziu a Índia à sua independência política. Na África do Sul, inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela. Nos Estados Unidos, norteou o pastor Martin-Luther King em sua luta contra a discriminação racial. No Brasil,  foi a inspiração para o trabalho de Dom Hélder Câmara contra a ditadura militar e por uma insurreição evangélica, a partir da justiça e da paz.

Na América Latina, muitos movimentos sociais têm se firmado no caminho da não violência ativa como instrumento de luta pacífica pela justiça e pela libertação dos povos. Na Argentina, Adolfo Perez Esquivel, escultor e ativista cristão pelos Direitos Humanos, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Também, em 1992, Rigoberta Menchu, índia Maya da Guatemala foi agraciada com o mesmo prêmio por sua luta pacífica pela libertação do seu povo e sua mensagem de esperança para todo o continente.

 Nas novas Constituições nacionais, aprovadas no Equador e na Bolívia, um dos princípios fundamentais colocados como meta do Estado é garantir o “bom viver” que cada povo indígena chama de uma forma diferente (suma kawsay ou suma kamana ou ainda com outros nomes), mas significa a opção por uma vida plenamente sadia, baseada no princípio da sustentabilidade ecológica e social e na dignidade de todas as pessoas. O “bom viver” privilegia o coletivo e não o individual e busca uma cultura da sobriedade e da partilha solidária na relação com a Terra e na forma de desenvolver a educação e a saúde. Quem é cristão, logo se recorda de que esta busca de uma vida que seja verdadeira e plenamente vivida é o objetivo pelo qual Jesus de Nazaré define a sua missão: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).

Apesar de que estes caminhos políticos são intuições latino-americanas e a partir das necessidades do mundo deste século XXI, sem dúvida, podem se considerar uma digna e bela realização da herança do Mahatma Gandhi na vida de nossos povos. 

 


 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019
. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

 

 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

E, DE REPENTE, AS LÁGRIMAS...

 


 

               Maria Clara Lucchetti Bingemer


 

            E qual será a razão de minhas lágrimas? Assistia à cerimônia de “inauguration” de Joseph Biden como presidente dos Estados Unidos. Havia emoção, alegria discreta, uma liturgia cívica belamente preparada. E a presença das 400 mil vítimas da Covid-19 no país simbolizadas por bandeiras, que tremulavam na manhã luminosamente ensolarada e ventosa. 

            Cultivo uma amizade crítica com o norte da América.  Tenho bons amigos e melhores colegas entre eles.   Nas vezes em que lá residi em diferentes universidades, fazendo semestres sabáticos e outras atividades acadêmicas, sempre experimentei admiração diante do respeito à liberdade, à democracia, à diferença.  São solidários e praticam essa solidariedade.  O mesmo acontece com a fé e a religião. Vivi bonitas experiências por lá em celebrações, sobretudo aquelas preparadas pelos latinos. E também nos espaços ecumênicos e inter-religiosos. 

            A realidade vivida por mim no passado não impede que me indignem certas tendências históricas e políticas internas e externas do país.  Critico seu imperialismo linguístico, uma certa arrogância que crê poder se apossar de tudo e de todos os ambientes como se seus fossem.  No entanto, aprendi a perceber que as feridas maiores da sociedade estadunidense são sentidas com dor por parte dos próprios cidadãos.  E quando se comprometem na luta contra elas, o fazem de corpo inteiro.  É assim com o racismo, a pena de morte, a questão das migrações e outros problemas maiores. 

            Com a eleição de Trump, o país se fraturou de maneira extremamente negativa.  A política agressiva e violenta do ex-presidente afetou a convivência interna do país, mas também e talvez principalmente, sua imagem externa.  Respirava-se um ambiente conflitivo e hostil com relação ao que sempre fora o perfil dos Estados Unidos como terra da acolhida e da liberdade. As crianças migrantes, separadas dos pais, habitando jaulas foi uma imagem que marcou o mundo inteiro. 

            Trump foi eleito em 2016.  E, em 2018, o Brasil deixou perplexos muitos que vimos a ascensão à presidência de um líder que apresentava perfil semelhante. A pandemia escancarou ainda mais a semelhança do estilo de governar.  A tragédia de milhares de vítimas repetiu-se lá e cá.

Diante desta realidade, a eleição presidencial nos Estados Unidos, em outubro, era esperada com ansiedade também aqui, ao sul do Equador.  Por isso, a cerimônia de hoje tocou certamente a afetividade de muitos brasileiros, que viram ali a esperança de algo semelhante para um futuro próximo. 

            A palavra de ordem que vigorou ao longo da cerimônia foi “união”.  Unir um país fraturado, curar as feridas provocadas pelos radicalismos e ódios.  O novo presidente fez seu juramento sobre uma Bíblia antiga, pertencente a sua família há 127 anos. Não era a primeira vez que servia de suporte e garantia ao juramento de serviço à nação de Joseph Biden. Ele usou a mesma Bíblia nas duas vezes em que jurou como vice-presidente de Barack Obama e nas sete vezes em que foi eleito senador pelo estado de Delaware. 

            E, então, de repente senti as lágrimas. Ali cabia emoção de gratidão e esperança.  Foi superado um momento difícil e doloroso para todo um povo. A democracia e a liberdade, mesmo ameaçadas até o último minuto, com tentativas de questionar a legitimidade da eleição e com a terrível invasão do Capitólio, venceram. Ali estava o presidente legitimamente eleito iniciando seu mandato. 

            Não será fácil para a dupla Biden-Harris responder todos os imensos desafios que tem pela frente.  Há uma pandemia em curso, com um número exponencial de vítimas. Há um país ferido e uma população que vive o luto de mais de 400 mil de seus filhos. Há um tecido social a recompor. 

            Mas há esperança e alegria.  Há um futuro possível.  Joe Biden teve que superar várias vezes o luto de seres queridos em sua própria vida.  Esse aprendizado deverá servir-lhe. Kamala Harris, sendo mulher, negra e de ascendência asiática, já nasceu devendo buscar a vida em cada passo de sua vitoriosa trajetória. Certamente isso fará a diferença em seu trabalho. 

            As lágrimas que correram pelo meu rosto trouxeram a esperança de que o Brasil também possa em breve viver um momento assim.  Nosso povo vergado pelas muitas adversidades dos últimos tempos merece acreditar que é possível,  continuar lutando, e esperando, e construindo um futuro digno de seu valor. 

 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

 

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domingo, 24 de janeiro de 2021

XENOFOBIA EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 

FREI ALOÍSIO  FRAGOSO

 

       certas figuras que  o imaginário infantil preserva para sempre. A cena da Primeira Missa do Brasil, celebrada em terra firme, no dia 12 de maio de 1500, pintada por Victor Meireles e reproduzida em livros de História, é  uma destas que se perpetuam na minha memória.

         Meu olhar de criança  contemplava aquela cruz com um sentimento triunfalista, prenhe de orgulho. Hoje minha visão crítica observa a mesma cena com irrecusável indignação.

     Quarenta anos antes da invasão da América, o Papa Nicolau V, na bula "Romanus Pontifex", concedera ao infante D. Henrique "a faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater e submeter" os pagãos  e quaisquer inimigos de Cristo e "o direito de conduzi-los à  servidão perpétua, confiscar seus bens e ocupar suas terras".

     O poder papal legitimava com o selo do cristianismo o que já  fazia parte dos planos dos conquistadores. A Cruz se associava à  Espada num empreendimento único. Onde findava a dominacão e tinha início   a evangelização?

     A Cruz da Primeira Missa tinha de aparecer como de fato ela aparece no quadro do pintor paraibano, altaneira, dominando toda a paisagem, sobrepondo-se a qualquer futura resistência. Era já um Te Deum de ação de graças pela posse das novas terras. Mas como? Sem luta para conquistá-la? Sem razões ou acordos para legitimá-la?

     O pintor registra o momento em que Frei Henrique de Coimbra levanta o cálice sagrado, depois de pronunciar a consagração, "isto é meu corpo, isto é  meu sangue". O que era então o Corpo de Cristo?  Era apenas a hóstia consagrada? A matéria transubstanciada? Pão  é uma espécie de palavra-síntese, resume todo o universo, seja o mundo material (terra, água, sol, trigo, etc.) ou humano (camponês, agricultor, trabalhadores em geral).

    O Corpo de Cristo, naquele momento histórico, era constituído de todas as pessoas presentes à  celebração, os missionários, os índios, os navegadores,  cada grupo representativo de seus povos de origem. Daí o significado simbólico  da Primeira Missa supera o seu conteúdo de ambivalência  e contradições. Ele converte-se em um ponto de partida para o resgate do nosso passado histórico. Não é por acaso que o Papa  João Paulo II fez reiterados pedidos de perdão aos indígenas e afro-brasileiros massacrados nestes mais de 500 anos. Cabe-nos catalisar a esperança dos cerca de 500 mil descendentes atuais dos 5 milhões que aqui viviam nos primórdios da invasão.

     Nestes tempos sombrios do coronavirus, vem à  tona a situação não  menos sombria, não menos pandêmica dos povos indígenas, sua força feita de teimosia e fidelidade às suas origens e sua fraqueza exposta pela vulnerabilidade. Habitantes das florestas, só conheceram vírus e pandemias depois da convivência  com as raças invasoras. E agora tem de enfrentar a política xenofóbica do Governo Central e os preconceitos da maioria  da população.

     No âmago  destes preconceitos oculta-se a mais cruel discriminação,  a xenofobia, a denegação do diferente. Chamamos de selvagens os que vivem na floresta, comem da floresta e nutrem suas almas com o Espírito da floresta. E nos consideramos civilizados, a nós que vivemos na metrópole, comemos da metrópole  e nutrimos nossas almas com o Espírito da metrópole. Em qual dos dois espaços se encontram mais saúde, mais energias vitais? A mídia divulga e nós  achamos apenas folclórica a estória daquela anciã indígena que costuma falar com as pedras, com as montanhas, com os rios, com os pássaros, com as borboletas. E não nos damos conta de que, nos grandes centros urbanos, falamos com as máquinas, e, dentro dos elevadores em movimento, falamos com...ninguém. Onde há  mais sabedoria e poesia? (Continua na próxima semana).

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

sábado, 23 de janeiro de 2021

SONHOS E UTOPIAS EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 


 


FREI ALOÍSIO FRAGOSO

 

     Desde o início  desta pandemia do coronavirus, tem sido fácil distinguir duas posições  claramente polarizadas: a da cautela e a do confronto. A dos que se cuidam com os recursos básicos (isolamento, máscara, etc.) e dos que se expõem  ostensivamente (aglomeração, volta aos

 antigos hábitos, etc).

     À  primeira vista, parece uma mera divergência de pontos de vista e estratégias. Pouco a pouco, no entanto, vai emergindo a verdade submersa, a de que há dois mundos em guerra aberta. Não  lhes faltam comando central, legiões treinadas e arsenal de armas letais. Da boca do Chefe da Nação  se escuta uma frase de efeito que define bem uma das posições: "é  preciso abandonar o isolamento, voltar tudo à normalidade e os que tiverem de morrer, que morram".

     A massa da população também se polariza, porém não é  movida por uma consciência  ideológica, apenas se divide entre os que se abrem para uma mudança radical de hábitos  e os que só querem que tudo volte a ser como era antes.

     É  necessário ir a fundo na compreensão deste fenômeno. Ele esconde no seu âmago cosmovisões universais  sobre a vida, o mundo e o destino humano. Esconde uma luta titânica entre utopias revolucionárias e sistemas estabelecidos. Sempre que irrompem grandes crises na sociedade global voltam a emergir grandes utopias. Nos primeiros tempos do covid 19, falou-se muitas vezes "o mundo nunca mais será o mesmo". Utopia não significa mera fantasia, mas sim novo dinamismo que se oferece aos heróis,  aos profetas, aos sonhadores, aos revolucionários e apavoram os tradicionalistas e os Sistemas ditatoriais. Palavra de origem grega, ela se traduz por "não lugar", "lugar que não  existe". Por isso mesmo desafia os grandes aventureiros. Estes a perseguem com tamanha intensidade que a tornam real; nunca, porém, por completo. Por isso desdobra-se em novas utopias, que sempre habitarão a alma da humanidade.

 

     Os que perseguem utopias foram alimentados, através dos séculos, por grandes gênios do Pensamento humano, como Thomas Morus ("Utopia"), Tommaso Campanela ("A Cidade do Sol"), J.J.Rousseau ("O Contrato Social"), William Moris ("Notícias de Lugar Nenhum"), Aldous Huxley ("A Ilha").

     A Utopia vem acompanhada de sonhos. Sonhar, nesse contexto, não é abdicar da realidade, não é  descartar o sentido prático nem a dimensão política da existência. É  antes buscar um espaço  de orientação  para as grandes escolhas da vida, buscar um arsenal de energias a fim de encarar a realidade, em vista de indispensáveis  mudanças. Por vezes o sonho torna-se um refúgio onde podemos habitar, cansados de um mundo vazio de autênticas emoções. Enfim, o direito de sonhar é pai e mãe de todos os outros direitos, pois seu papel é  nutrir continuamente a esperança.

       pessoas que vivem de tal maneira dependentes de segurança, que qualquer  mudança da realidade lhes provoca um colapso  mental, como se lhes fosse faltar o chão debaixo dos pés. Estas pessoas não sonham porque estão atreladas às leis e tradição e preferem o comando dos poderes totalitários e fechados a mudanças. O que não percebem é  que isso pode acontecer, a qualquer momento pode faltar-lhes o chão  debaixo dos pés. Com certeza, muitos moradores de Manaus experimentaram esta sensação diante do inominável espetáculo de pessoas próximas  morrendo em série, asfixiadas por falta de oxigênio.

     Em momentos como este, mais importante do que a nossa auto-estima como nacionalidade é  nossa coesão  como humanidade. Um exemplo disso testemunhamos nestes dias: enquanto, há menos de um ano, o Governo do Brasil se dispunha a contribuir com soldados, caso Trump invadisse a Venezuela, hoje a Venezuela  envia oxigênio  para salvar vidas brasileiras. Prova-se mais uma vez que a Verdade é  filha do tempo.

     Temos provas abundantes de que sonhos e utopias constituem energias vitalizadoras nos momentos decisivos da História. Se lhes acrescentarmos o Poder  imensurável da Fé, então  acontece o que São Paulo aplica a si mesmo: "quando pareço   fraco aí é que estou forte" 2Cor.12,10.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.