Maria Clara Lucchetti Bingemer
E
qual será a razão de minhas lágrimas? Assistia à cerimônia de “inauguration” de
Joseph Biden como presidente dos Estados Unidos. Havia emoção, alegria
discreta, uma liturgia cívica belamente preparada. E a presença das 400 mil
vítimas da Covid-19 no país simbolizadas por bandeiras, que tremulavam na manhã
luminosamente ensolarada e ventosa.
Cultivo uma amizade crítica com o norte da América. Tenho bons amigos e
melhores colegas entre eles. Nas vezes em que lá residi em diferentes
universidades, fazendo semestres sabáticos e outras atividades acadêmicas,
sempre experimentei admiração diante do respeito à liberdade, à democracia, à
diferença. São solidários e praticam essa solidariedade. O mesmo
acontece com a fé e a religião. Vivi bonitas experiências por lá em
celebrações, sobretudo aquelas preparadas pelos latinos. E também nos espaços
ecumênicos e inter-religiosos.
A
realidade vivida por mim no passado não impede que me indignem certas
tendências históricas e políticas internas e externas do país. Critico
seu imperialismo linguístico, uma certa arrogância que crê poder se apossar de
tudo e de todos os ambientes como se seus fossem. No entanto, aprendi a
perceber que as feridas maiores da sociedade estadunidense são sentidas com dor
por parte dos próprios cidadãos. E quando se comprometem na luta contra
elas, o fazem de corpo inteiro. É assim com o racismo, a pena de morte, a
questão das migrações e outros problemas maiores.
Com a
eleição de Trump, o país se fraturou de maneira extremamente negativa. A
política agressiva e violenta do ex-presidente afetou a convivência interna do
país, mas também e talvez principalmente, sua imagem externa.
Respirava-se um ambiente conflitivo e hostil com relação ao que sempre fora o
perfil dos Estados Unidos como terra da acolhida e da liberdade. As crianças
migrantes, separadas dos pais, habitando jaulas foi uma imagem que marcou o
mundo inteiro.
Trump
foi eleito em 2016. E, em 2018, o Brasil deixou perplexos muitos que
vimos a ascensão à presidência de um líder que apresentava perfil semelhante. A
pandemia escancarou ainda mais a semelhança do estilo de governar. A
tragédia de milhares de vítimas repetiu-se lá e cá.
Diante desta realidade, a eleição presidencial nos Estados Unidos, em
outubro, era esperada com ansiedade também aqui, ao sul do Equador. Por
isso, a cerimônia de hoje tocou certamente a afetividade de muitos brasileiros,
que viram ali a esperança de algo semelhante para um futuro próximo.
A
palavra de ordem que vigorou ao longo da cerimônia foi “união”. Unir um
país fraturado, curar as feridas provocadas pelos radicalismos e ódios. O
novo presidente fez seu juramento sobre uma Bíblia antiga, pertencente a sua
família há 127 anos. Não era a primeira vez que servia de suporte e garantia ao
juramento de serviço à nação de Joseph Biden. Ele usou a mesma Bíblia nas duas
vezes em que jurou como vice-presidente de Barack Obama e nas sete vezes em que
foi eleito senador pelo estado de Delaware.
E,
então, de repente senti as lágrimas. Ali cabia emoção de gratidão e
esperança. Foi superado um momento difícil e doloroso para todo um povo.
A democracia e a liberdade, mesmo ameaçadas até o último minuto, com tentativas
de questionar a legitimidade da eleição e com a terrível invasão do Capitólio,
venceram. Ali estava o presidente legitimamente eleito iniciando seu
mandato.
Não
será fácil para a dupla Biden-Harris responder todos os imensos desafios que
tem pela frente. Há uma pandemia em curso, com um número exponencial de
vítimas. Há um país ferido e uma população que vive o luto de mais de 400 mil
de seus filhos. Há um tecido social a recompor.
Mas
há esperança e alegria. Há um futuro possível. Joe Biden teve que
superar várias vezes o luto de seres queridos em sua própria vida. Esse
aprendizado deverá servir-lhe. Kamala Harris, sendo mulher, negra e de
ascendência asiática, já nasceu devendo buscar a vida em cada passo de sua
vitoriosa trajetória. Certamente isso fará a diferença em seu trabalho.
As
lágrimas que correram pelo meu rosto trouxeram a esperança de que o Brasil
também possa em breve viver um momento assim. Nosso povo vergado pelas
muitas adversidades dos últimos tempos merece acreditar que é possível,
continuar lutando, e esperando, e construindo um futuro digno de seu
valor.
Maria Clara Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho
em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.
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