Marcelo Barros
Assim como
termômetro denuncia a febre, se houvesse um instrumento que mostrasse o grau de
intolerância e violência presente na sociedade, talvez tivéssemos inventar
números acima de cem. Parece que, a cada dia, as pessoas se tornam mais
incapazes de lidar com diferenças políticas, culturais e religiosas. Há quem se
pergunte porque e como chegamos a esse ponto. No Brasil, nenhuma rede de
televisão ou órgão de comunicação vai publicar tudo o que tem feito para
semear, ódio, racismo e para sustentar no poder não apenas um Bozo qualquer,
mas os/as representante daquilo que, com razão, Jessé de Souza chama de “elite
do atraso”. Por isso, é urgente buscar algum antídoto para a epidemia da raiva
e reencontrar motivos para teimar em termos fé na humanidade. Assim sendo,
nunca foi tão necessário e oportuno, nestes últimos dias de janeiro, nos unir
aos irmãos e irmãs da Índia, no aniversário do martírio do Mahatma Gandhi. Que
a memória da sua vida e da sua mensagem de paz e não violência possam nos
ajudar.
Em Dehli, no dia
30 de janeiro de 1948, um hindu fanático assassinou Gandhi pelo fato de que o
mestre, sendo hinduísta, decidiu morar em um bairro de muçulmanos para
vivenciar o diálogo entre as religiões. Até hoje, na Índia, um partido político
prega que ser hindu de nacionalidade significa pertencer à religião hinduísta.
E assim todos os hindus que são muçulmanos, judeus ou cristãos são considerados
traidores.
Infelizmente, mais
de 70 anos depois, o mundo de hoje ainda está menos tolerante e menos capaz de
convivência nas diferenças. Por isso, é urgente recordar a herança do Mahatma
Gandhi e atualizá-la para nós e para toda a humanidade. Alguns de seus
pensamentos percorrem o mundo inteiro e propõem um novo modo de agir: “Comece por você mesmo a mudança que propõe
ao mundo”. “Você pode se considerar
feliz somente quando o que pensa, diz e o modo como age estiverem em completa
harmonia”. Aí está uma profunda indicação de caminho.
A realidade do
mundo atual é muito diversa da época de Gandhi na qual a Índia era dominada
colonialmente pela Inglaterra. No entanto, apesar disso, as principais
intuições de Gandhi se mantêm necessárias.
Sua luta pacífica, através da Satyagraha,
o caminho da verdade e da Ahimsa, a
não violência podem ser para nós
instrumentos de nossa ação social e política para transformar o mundo.
No século XX, a
ação de Gandhi conduziu a Índia à sua independência política. Na África do Sul,
inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela. Nos Estados
Unidos, norteou o pastor Martin-Luther King em sua luta contra a discriminação
racial. No Brasil, foi a inspiração para
o trabalho de Dom Hélder Câmara contra a ditadura militar e por uma insurreição
evangélica, a partir da justiça e da paz.
Na América Latina,
muitos movimentos sociais têm se firmado no caminho da não violência ativa como
instrumento de luta pacífica pela justiça e pela libertação dos povos. Na
Argentina, Adolfo Perez Esquivel, escultor e ativista cristão pelos Direitos
Humanos, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Também, em 1992, Rigoberta Menchu,
índia Maya da Guatemala foi agraciada com o mesmo prêmio por sua luta pacífica
pela libertação do seu povo e sua mensagem de esperança para todo o continente.
Nas novas Constituições nacionais, aprovadas
no Equador e na Bolívia, um dos princípios fundamentais colocados como meta do
Estado é garantir o “bom viver” que cada povo indígena chama de uma forma
diferente (suma kawsay ou suma kamana ou ainda com outros nomes), mas significa
a opção por uma vida plenamente sadia, baseada no princípio da sustentabilidade
ecológica e social e na dignidade de todas as pessoas. O “bom viver” privilegia
o coletivo e não o individual e busca uma cultura da sobriedade e da partilha
solidária na relação com a Terra e na forma de desenvolver a educação e a
saúde. Quem é cristão, logo se recorda de que esta busca de uma vida que seja
verdadeira e plenamente vivida é o objetivo pelo qual Jesus de Nazaré define a
sua missão: “Eu vim para que todos tenham
vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).
Apesar de que estes
caminhos políticos são intuições latino-americanas e a partir das necessidades
do mundo deste século XXI, sem dúvida, podem se considerar uma digna e bela
realização da herança do Mahatma Gandhi na vida de nossos povos.
Marcelo Barros, monge beneditino e
escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da
Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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