Maria Clara Lucchetti Bingemer
Conheci o brilhante sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza quando ainda
era estudante de graduação em teologia. Em reuniões e eventos da Igreja
naqueles tempos de ouro da Teologia da Libertação, sua inteligência profunda se
destacava com análises lúcidas e simpatia irradiante. Presença encantadora e
amável, sempre conversava com os mais jovens, prestando-lhes toda a atenção
própria dos verdadeiros mestres. Assim foi no início de nossa amizade.
Depois que terminei o doutorado, nos anos 1990, tive oportunidade de
conviver mais com ele, já que fomos colegas de trabalho no Centro João XXIII –
IBRADES, situado na rua Bambina 115. Enquanto eu criava e organizava o
projeto diálogo fé e cultura, Luiz Alberto era o intelectual sênior da equipe
pluridisciplinar de pesquisadores, presença indispensável nos seminários de
peritos de gratíssima memória que o Centro promovia sob a batuta dos padres
Francisco Ivern SJ e João Mac Dowell SJ.
Ali conheci várias facetas (não todas) da riquíssima personalidade de
Luiz Alberto. Além da sólida formação e do brilho intelectual, sua figura
testemunhava uma riqueza rara tecida pelas muitas experiências internacionais
que vivera. Essas abrangiam a FAO, em Roma; Cuernavaca no México,
trabalhando com o brilhante e inovador Ivan Illitch; e toda, absolutamente toda
a América Latina, do México ao Uruguai e à Antártida argentina. Isso pôde ser
comprovado em todas as vezes que viajei a trabalho pelo continente.
Tempos mais tarde, meu marido, igualmente grande apreciador de Luiz Alberto, teve
a mesma experiência: não havia ninguém na Igreja da Pátria Grande que não
conhecesse e apreciasse profundamente o sociólogo gaúcho.
No Centro João XXIII, juntamente com os momentos de trabalho, tivemos
grandes conversas. Revelavam-se o indomável entusiasmo do homem de fé e o
largo horizonte de visão do intelectual que enxergava mais além do que se podia
ver simplesmente a olho nu. Quando mais tarde, participando do mesmo grupo de
reflexão que ele, o Grupo de Emaus, ouvi que o chamavam de Quixote, acreditei
não haver denominação mais adequada para esse filho de espanhola ardente e
apaixonado e para esse sonhador jamais esmorecido em seus desejos e esperanças.
Há pessoas que é bom não ouvir em tempos de desânimo e
depressão. Agravam nossa falta de vibração e nos fazem ver tudo ainda mais
sem perspectiva. Com Luiz Alberto era diferente. As crises lhe
espicaçavam a inteligência e o coração, fazendo-o sonhar alto e perseguir
ideais e desejos que quanto mais altos e impossíveis, mais o atraíam. E com
isso contagiava todos que com ele conviviam.
Quando o Centro João XXIII foi transferido para Brasília, Luiz Alberto
passou pelo CERIS como presidente; depois foi para a Universidade Cândido
Mendes, onde organizava seminários de alto nível sobre o diálogo da religião
com a secularidade e a diversidade do mundo de hoje. Recordo especialmente
quando trouxe ao Brasil o grande filósofo canadense Charles Taylor, que falou
para um auditório lotado de forma admirável. Ali na UCAM, além dos seminários,
Luiz Alberto patrocinava todo o processo de escolha e outorga do prêmio Alceu
de Amoroso Lima e outros, concedidos a indivíduos e entidades que defendem os
direitos humanos.
Há ainda um outro traço da personalidade multifacetada de Luiz Alberto
que acrescenta ao seu perfil de Quixote: seu amor fiel, apaixonado e constante
por Lúcia, sua mulher ao longo de 62 anos. Ao falar dela seu rosto
brilhava e seus olhos cresciam de espanto diante da beleza da amada.
Lembro de um aniversário de Lúcia em sua casa de Laranjeiras, quando ele se
aproximou de mim e elogiou a beleza da esposa. Disse: “Eu acho a coisa mais
linda do mundo ela andando com esse vestido branco com franjas que se
movem”. Não é comum ouvir isso de um homem em relação à mulher com quem
estava casado já há mais de cinquenta anos, e com a qual tinha filhos e netos.
Seu enamoramento me encantou o coração. Luiz Alberto não existia sem
Lúcia e a recíproca era verdadeira.
O Quixote também amou Dulcineia até o último suspiro e seu amor por ela
foi sempre revestido de enorme encantamento, admiração, devoção. Assim
Luiz Alberto amava Lúcia. E dizia com orgulho que ambos se haviam dado o
matrimônio quando ainda eram muito jovens. E mostrava as fotos com ambos
realmente jovens e apaixonados.
Assim era esse Quixote, inquebrantável em suas fidelidades
constitutivas: ao Deus defensor do pobre, da viúva, do órfão e do estrangeiro;
à Igreja, povo de Deus do qual se sentia membro crítico e amoroso; à sociedade
pela qual lutava a fim de ajudar que a paz e a justiça nela reinassem. E
atravessando essas fidelidades, em amorosa e iluminadora unção, a Lúcia e por
ela, e através dela a seus filhos e netos.
O dia 30 de dezembro do dificílimo ano de 2020 foi marcado pela partida
de Luiz Alberto de suas andanças por este mundo. Mas ele permanece
conosco, no legado que deixou e também dentro de todos nós, que um dia fomos
inspirados por sua pessoa e honrados com o dom de sua amizade e seu
afeto. Descanse em paz, amigo. E continue inspirando-nos lá de
cima, ensinando-nos sempre a importância de sermos Quixotes que não se
conformam com este mundo e lutam pelo Reino de Deus.
--
A
teóloga é autora de “Santidade: chamado à humanidade" (Editora
Paulinas), entre outros livros.
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