FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Desde o início desta pandemia do coronavirus, tem sido fácil
distinguir duas posições claramente
polarizadas: a da cautela e a do confronto. A dos que se cuidam com os recursos
básicos (isolamento, máscara, etc.) e dos que se expõem ostensivamente (aglomeração, volta aos
antigos hábitos, etc).
À
primeira vista, parece uma mera divergência de pontos de vista e
estratégias. Pouco a pouco, no entanto, vai emergindo a verdade submersa, a de
que há dois mundos em guerra aberta. Não
lhes faltam comando central, legiões treinadas e arsenal de armas
letais. Da boca do Chefe da Nação se
escuta uma frase de efeito que define bem uma das posições: "é preciso abandonar o isolamento, voltar tudo à
normalidade e os que tiverem de morrer, que morram".
A massa da população também se polariza,
porém não é movida por uma
consciência ideológica, apenas se divide
entre os que se abrem para uma mudança radical de hábitos e os que só querem que tudo volte a ser como
era antes.
É
necessário ir a fundo na compreensão deste fenômeno. Ele esconde no seu
âmago cosmovisões universais sobre a
vida, o mundo e o destino humano. Esconde uma luta titânica entre utopias
revolucionárias e sistemas estabelecidos. Sempre que irrompem grandes crises na
sociedade global voltam a emergir grandes utopias. Nos primeiros tempos do
covid 19, falou-se muitas vezes "o mundo nunca mais será o mesmo".
Utopia não significa mera fantasia, mas sim novo dinamismo que se oferece aos
heróis, aos profetas, aos sonhadores,
aos revolucionários e apavoram os tradicionalistas e os Sistemas ditatoriais.
Palavra de origem grega, ela se traduz por "não lugar", "lugar
que não existe". Por isso mesmo desafia
os grandes aventureiros. Estes a perseguem com tamanha intensidade que a tornam
real; nunca, porém, por completo. Por isso desdobra-se em novas utopias, que
sempre habitarão a alma da humanidade.
Os que perseguem utopias foram
alimentados, através dos séculos, por grandes gênios do Pensamento humano, como
Thomas Morus ("Utopia"), Tommaso Campanela ("A Cidade do
Sol"), J.J.Rousseau ("O Contrato Social"), William Moris
("Notícias de Lugar Nenhum"), Aldous Huxley ("A Ilha").
A Utopia vem acompanhada de sonhos.
Sonhar, nesse contexto, não é abdicar da realidade, não é descartar o sentido prático nem a dimensão
política da existência. É antes buscar
um espaço de orientação para as grandes escolhas da vida, buscar um
arsenal de energias a fim de encarar a realidade, em vista de
indispensáveis mudanças. Por vezes o
sonho torna-se um refúgio onde podemos habitar, cansados de um mundo vazio de
autênticas emoções. Enfim, o direito de sonhar é pai e mãe de todos os outros
direitos, pois seu papel é nutrir
continuamente a esperança.
Há
pessoas que vivem de tal maneira dependentes de segurança, que
qualquer mudança da realidade lhes
provoca um colapso mental, como se lhes
fosse faltar o chão debaixo dos pés. Estas pessoas não sonham porque estão
atreladas às leis e tradição e preferem o comando dos poderes totalitários e
fechados a mudanças. O que não percebem é
que isso pode acontecer, a qualquer momento pode faltar-lhes o chão debaixo dos pés. Com certeza, muitos moradores
de Manaus experimentaram esta sensação diante do inominável espetáculo de pessoas
próximas morrendo em série, asfixiadas
por falta de oxigênio.
Em momentos como este, mais importante do
que a nossa auto-estima como nacionalidade é
nossa coesão como humanidade. Um
exemplo disso testemunhamos nestes dias: enquanto, há menos de um ano, o
Governo do Brasil se dispunha a contribuir com soldados, caso Trump invadisse a
Venezuela, hoje a Venezuela envia
oxigênio para salvar vidas brasileiras.
Prova-se mais uma vez que a Verdade é
filha do tempo.
Temos provas abundantes de que sonhos e
utopias constituem energias vitalizadoras nos momentos decisivos da História.
Se lhes acrescentarmos o Poder
imensurável da Fé, então acontece
o que São Paulo aplica a si mesmo: "quando pareço fraco aí é que estou forte" 2Cor.12,10.
Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e
escritor.
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