Frei Betto
É
possível erradicar a pandemia de Covid-19 e preservar o capitalismo? A resposta
à pergunta foi dada em setembro de 2019, na prestigiosa revista científica “The
Lancet”, por Richard Horton, professor da Escola de Higiene e Medicina Tropical
de Londres e da Universidade de Oslo.
Em artigo
intitulado “Não é uma pandemia”, longe de se posicionar ao lado dos
negacionistas, Horton afirma que ocorre mais do que uma pandemia, há uma
sindemia, conceito forjado em 1990 pelo epidemiologista Merrill Singer.
Sindemia
significa que a doença infecciosa não pode ser encarada isoladamente. Ela se
entrelaça com fatores sociais, políticos e econômicos, como desigualdade
social, distribuição de riqueza, acesso a bens essenciais, como moradia e
saneamento.
O
problema, portanto, não é apenas a Covid-19. É o capitalismo sindêmico que, em
tudo, prioriza a perversa lógica da acumulação privada da riqueza. Temos visto
isso no Brasil, tanto nas propostas que com frequência aparecem na grande
mídia, de privatização do SUS disfarçada de parceria público-privada, quanto na
corrida empreendida pela iniciativa privada para importar vacinas que estariam
ao alcance somente de quem possui recursos para frequentar hospitais e clínicas
particulares.
Os ricos
podem pagar pela vacina e, assim, furar a fila dos que merecem prioridade, como
profissionais da saúde e idosos. Mas investirão também na imunização de seus
motoristas, faxineiras, cozinheiras e cuidadores de piscinas?
É sabido
que endemias, como a gripe aviária e a SARS (Síndrome respiratória aguda
grave), tiveram origem na criação intensiva de animais em cativeiro e
destinados ao consumo humano, e nos processamentos da indústria
alimentícia.
No livro
“Grandes granjas, grandes gripes”, Rob Wallace, epidemiologista especialista em
agroecologia, descreve como são processados os animais consumidos por humanos e
como isso facilita o surgimento de novas modalidades de vírus. O capitalismo
transformou a natureza em laboratório, onde são aplicados todos os tipos de
procedimentos para forçar o aumento da produção e do monopólio sobre os bens
naturais, como é o caso dos transgênicos e das sementes “suicidas”, aquelas que
o agricultor não consegue reproduzir e se vê obrigado a adquiri-las das
gigantes dos venenos agrícolas, como a Monsanto.
Santiago
Alba Rico, filósofo espanhol, no artigo “Capitalismo pandêmico” ressalta que,
hoje em dia, há mais mortes causadas por infecções hospitalares que gripes,
apesar de todos os protocolos higiênicos adotados. Se ocorre em hospitais, diz
ele, imagina nas granjas! O que esperar de animais submetidos a confinamento,
iluminação permanente, coquetéis de antibióticos e rações químicas? Wallace
afirma: “Ao tornar a natureza capitalista, o capitalismo passa a ser
considerado algo natural”.
À
debilidade de nossas defesas imunológicas frente às novas ondas virais,
acresce-se o apartheidproduzido pela desigualdade social. Os
“laboratórios naturais” de granjas, currais e frigoríficos geram vírus que
infectam sobretudo aqueles que, por razões sociais e etárias, possuem menos
defesas naturais: os pobres e idosos. Como diz Rico, “os vírus passam de
animais maltratados a humanos maltratados, numa sinergia potencialmente
apocalíptica”.
Desde que
a OMS declarou o caráter pandêmico da Covi-19, em março de 2020, diferentes
países adotaram diferentes maneiras de tentar deter o seu avanço. A China
investiu em controle social e tecnológico. A União Europeia adotou medidas
sanitárias combinadas com restrições que reduziram a mobilidade e o consumo.
EUA e Brasil decidiram priorizar a economia em detrimento de vidas humanas.
Eis um
falso dilema: salvar vidas ou a economia? A pergunta embute a odiosa discriminação
de classe social, já que só os privilegiados podem se dar ao luxo de ficar
confinados em casa e, ao mesmo tempo, trabalhar via online e consumir graças às
entregas em domicílio. A questão encobre a sentença de morte aos mais pobres,
já que o desconfinamento será inevitavelmente praticado por quem só sobrevive
se sair à rua e utilizar transporte coletivo.
A lógica
capitalista reforça a sindemia ao aplicar a moderna separação entre Estado e
religiões à suposta separação entre economia e política (daí a ênfase na
autonomia dos bancos centrais). Como se uma esfera pudesse se distanciar
minimamente da outra. E outro dualismo, introduzido pelos negacionistas, é
ignorar a palavra da ciência. Isso favorece a relativização das medidas
restritivas recomendadas pelos cientistas.
Mais uma
vez o capitalismo fala mais alto, já que ignorar a ciência permite não destinar
recursos públicos a auxílios emergenciais, hospitais de campanha, importação de
insumos sanitários e vacinas etc.
Somado à
descredibilidade da política, esse negacionismo favorece as aglomerações, em
especial a indiferença dos jovens frente à ameaça do vírus. Para eles, tudo se
explica por alguma teoria conspiratória, como o “comunavírus” denunciado pelo
chanceler brasileiro Ernesto Araújo.
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de
Quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco), entre outros livros.
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Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org Ali os encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio.
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