FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Há
certas figuras que o imaginário
infantil preserva para sempre. A cena da Primeira Missa do Brasil, celebrada em
terra firme, no dia 12 de maio de 1500, pintada por Victor Meireles e
reproduzida em livros de História, é uma
destas que se perpetuam na minha memória.
Meu olhar de criança contemplava aquela cruz com um sentimento
triunfalista, prenhe de orgulho. Hoje minha visão crítica observa a mesma cena
com irrecusável indignação.
Quarenta anos antes da invasão da América,
o Papa Nicolau V, na bula "Romanus Pontifex", concedera ao infante D.
Henrique "a faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater e
submeter" os pagãos e quaisquer
inimigos de Cristo e "o direito de conduzi-los à servidão perpétua, confiscar seus bens e
ocupar suas terras".
O poder papal legitimava com o selo do
cristianismo o que já fazia parte dos
planos dos conquistadores. A Cruz se associava à Espada num empreendimento único. Onde findava
a dominacão e tinha início a
evangelização?
A
Cruz da Primeira Missa tinha de aparecer como de fato ela aparece no quadro do
pintor paraibano, altaneira, dominando toda a paisagem, sobrepondo-se a
qualquer futura resistência. Era já um Te Deum de ação de graças pela posse das
novas terras. Mas como? Sem luta para conquistá-la? Sem razões ou acordos para
legitimá-la?
O pintor registra o momento em que Frei
Henrique de Coimbra levanta o cálice sagrado, depois de pronunciar a
consagração, "isto é meu corpo, isto é
meu sangue". O que era então o Corpo de Cristo? Era apenas a hóstia consagrada? A matéria
transubstanciada? Pão é uma espécie de
palavra-síntese, resume todo o universo, seja o mundo material (terra, água,
sol, trigo, etc.) ou humano (camponês, agricultor, trabalhadores em geral).
O Corpo de Cristo, naquele momento
histórico, era constituído de todas as pessoas presentes à celebração, os missionários, os índios, os
navegadores, cada grupo representativo
de seus povos de origem. Daí o significado simbólico da Primeira Missa supera o seu conteúdo de
ambivalência e contradições. Ele
converte-se em um ponto de partida para o resgate do nosso passado histórico.
Não é por acaso que o Papa João Paulo II
fez reiterados pedidos de perdão aos indígenas e afro-brasileiros massacrados nestes
mais de 500 anos. Cabe-nos catalisar a esperança dos cerca de 500 mil
descendentes atuais dos 5 milhões que aqui viviam nos primórdios da invasão.
Nestes tempos sombrios do coronavirus, vem
à tona a situação não menos sombria, não menos pandêmica dos povos
indígenas, sua força feita de teimosia e fidelidade às suas origens e sua
fraqueza exposta pela vulnerabilidade. Habitantes das florestas, só conheceram
vírus e pandemias depois da convivência
com as raças invasoras. E agora tem de enfrentar a política xenofóbica
do Governo Central e os preconceitos da maioria
da população.
No âmago
destes preconceitos oculta-se a mais cruel discriminação, a xenofobia, a denegação do diferente.
Chamamos de selvagens os que vivem na floresta, comem da floresta e nutrem suas
almas com o Espírito da floresta. E nos consideramos civilizados, a nós que
vivemos na metrópole, comemos da metrópole
e nutrimos nossas almas com o Espírito da metrópole. Em qual dos dois
espaços se encontram mais saúde, mais energias vitais? A mídia divulga e
nós achamos apenas folclórica a estória
daquela anciã indígena que costuma falar com as pedras, com as montanhas, com
os rios, com os pássaros, com as borboletas. E não nos damos conta de que, nos
grandes centros urbanos, falamos com as máquinas, e, dentro dos elevadores em
movimento, falamos com...ninguém. Onde há
mais sabedoria e poesia? (Continua na próxima semana).
Frei Aloísio
Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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