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domingo, 24 de janeiro de 2021

XENOFOBIA EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 

FREI ALOÍSIO  FRAGOSO

 

       certas figuras que  o imaginário infantil preserva para sempre. A cena da Primeira Missa do Brasil, celebrada em terra firme, no dia 12 de maio de 1500, pintada por Victor Meireles e reproduzida em livros de História, é  uma destas que se perpetuam na minha memória.

         Meu olhar de criança  contemplava aquela cruz com um sentimento triunfalista, prenhe de orgulho. Hoje minha visão crítica observa a mesma cena com irrecusável indignação.

     Quarenta anos antes da invasão da América, o Papa Nicolau V, na bula "Romanus Pontifex", concedera ao infante D. Henrique "a faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater e submeter" os pagãos  e quaisquer inimigos de Cristo e "o direito de conduzi-los à  servidão perpétua, confiscar seus bens e ocupar suas terras".

     O poder papal legitimava com o selo do cristianismo o que já  fazia parte dos planos dos conquistadores. A Cruz se associava à  Espada num empreendimento único. Onde findava a dominacão e tinha início   a evangelização?

     A Cruz da Primeira Missa tinha de aparecer como de fato ela aparece no quadro do pintor paraibano, altaneira, dominando toda a paisagem, sobrepondo-se a qualquer futura resistência. Era já um Te Deum de ação de graças pela posse das novas terras. Mas como? Sem luta para conquistá-la? Sem razões ou acordos para legitimá-la?

     O pintor registra o momento em que Frei Henrique de Coimbra levanta o cálice sagrado, depois de pronunciar a consagração, "isto é meu corpo, isto é  meu sangue". O que era então o Corpo de Cristo?  Era apenas a hóstia consagrada? A matéria transubstanciada? Pão  é uma espécie de palavra-síntese, resume todo o universo, seja o mundo material (terra, água, sol, trigo, etc.) ou humano (camponês, agricultor, trabalhadores em geral).

    O Corpo de Cristo, naquele momento histórico, era constituído de todas as pessoas presentes à  celebração, os missionários, os índios, os navegadores,  cada grupo representativo de seus povos de origem. Daí o significado simbólico  da Primeira Missa supera o seu conteúdo de ambivalência  e contradições. Ele converte-se em um ponto de partida para o resgate do nosso passado histórico. Não é por acaso que o Papa  João Paulo II fez reiterados pedidos de perdão aos indígenas e afro-brasileiros massacrados nestes mais de 500 anos. Cabe-nos catalisar a esperança dos cerca de 500 mil descendentes atuais dos 5 milhões que aqui viviam nos primórdios da invasão.

     Nestes tempos sombrios do coronavirus, vem à  tona a situação não  menos sombria, não menos pandêmica dos povos indígenas, sua força feita de teimosia e fidelidade às suas origens e sua fraqueza exposta pela vulnerabilidade. Habitantes das florestas, só conheceram vírus e pandemias depois da convivência  com as raças invasoras. E agora tem de enfrentar a política xenofóbica do Governo Central e os preconceitos da maioria  da população.

     No âmago  destes preconceitos oculta-se a mais cruel discriminação,  a xenofobia, a denegação do diferente. Chamamos de selvagens os que vivem na floresta, comem da floresta e nutrem suas almas com o Espírito da floresta. E nos consideramos civilizados, a nós que vivemos na metrópole, comemos da metrópole  e nutrimos nossas almas com o Espírito da metrópole. Em qual dos dois espaços se encontram mais saúde, mais energias vitais? A mídia divulga e nós  achamos apenas folclórica a estória daquela anciã indígena que costuma falar com as pedras, com as montanhas, com os rios, com os pássaros, com as borboletas. E não nos damos conta de que, nos grandes centros urbanos, falamos com as máquinas, e, dentro dos elevadores em movimento, falamos com...ninguém. Onde há  mais sabedoria e poesia? (Continua na próxima semana).

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

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