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terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A MAIS ATUAL HERANÇA DE GANDHI




Por Marcelo Barros

A cada ano, no dia 30 de janeiro, a Índia e o mundo inteiro recordam o martírio do Mahatma Gandhi e sua vida consagrada à paz e  à justiça. É mais urgente valorizar a herança que Gandhi nos deixou nesses tempos nos quais governos e setores da sociedade internacional refazem campos de concentração para aprisionar migrantes. A herança de Gandhi precisa ser recordada quando a sociedade dominante convive com um presidente norte-americano que acha normal perseguir e prender crianças menores de seis anos de idade, afastando-os dos seus pais. No Brasil militarizado e no qual se abre a temporada de caça aos índios, aos lavradores e aos movimentos de direitos humanos, é imprescindível  valorizar a inestimável herança que Gandhi deixou para a humanidade.

Infelizmente, mais de 70 anos depois do martírio de Gandhi, o mundo atual não está mais tolerante. Menos ainda do que no passado, a nossa sociedade se dispõe a ser um espaço de convivência nas diferenças. Ao contrário, tem se revelado mais intransigente e violenta.

Na América do Sul, tornou-se mais feroz e cruel a intensa e permanente perseguição do Império e das elites a ele submetidas a quaisquer governos que ousem contestar a hegemonia do Capitalismo internacional e do governo dos Estados Unidos no continente. Depois de 60 anos, o bloqueio econômico e social a Cuba se revelou fracassado e contraproducente mesmo para os interesses do Império. Mesmo assim, ele foi refeito para a Venezuela, esmagada por uma guerra de publicidade desonesta e violenta. O governo, eleito pela maioria dos cidadãos, em eleições que os organismos internacionais sempre consideraram democrática e válida, é chamado de ditatorial. Todos os dias, a imprensa chama o bolivarianismo de comunismo violento e atrasado.  

Todos sabem que Simon Bolívar foi um jovem venezuelano que no inicio do século XIX formou um exército de índios e negros para libertar os países latino-americanos do domínio espanhol e das injustiças internas como a escravidão e a miséria de tanta gente. Bolívar propunha fazer de toda a América do Sul uma única “pátria grande”, livre e solidária. Para isso, propunha uma revolução baseada na educação para todos e no reconhecimento dos direitos civis e igualdade de todos os cidadãos, índios, negros e lavradores. Foi esse processo que, na Venezuela, o presidente Hugo Chávez chamou de “revolução bolivariana”. Durante o governo de Rafael Correa, no Equador, se considerava a “revolução cidadã”. Até hoje, na Bolívia, inspira a “revolução indígena”. Nesses países e em outros, esse caminho tem se dado através dos instrumentos democráticos das eleições e da discussão de novas constituições que garantam os direitos de todas as pessoas e grupos até aqui marginalizados. É um processo baseado nas culturas ancestrais dos povos indígenas e com a participação de muitas comunidades cristãs de base. Na América Latina, esse caminho tem assumido como método a não violência de Gandhi e o exemplo de muitos homens e mulheres que consagram a sua vida pela justiça e pela libertação dos povos no caminho da paz. Na Argentina, Adolfo Perez Esquivel, escultor e ativista cristão pelos Direitos Humanos, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Também, em 1992, Rigoberta Menchu, índia Maya da Guatemala foi agraciada com o mesmo prêmio por sua luta pacífica pela libertação do seu povo e sua mensagem de esperança para todo o continente.

É nesse contexto que precisamos lembrar a luta pacífica do Mahatma Gandhi através da Satyagraha, o caminho da verdade e ahimsa, a não violência. Além de trazer para a Índia a independência política, Gandhi inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela na África do Sul. Também motivou o pastor Martin-Luther King na luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos. No Brasil dos anos 60 e 70, todo o trabalho de Dom Hélder Câmara por uma insurreição evangélica a partir da justiça e da paz, se apoiava na espiritualidade da não violência.

Assim, a herança de Gandhi ainda mobiliza milhares de pessoas e comunidades em todo o mundo. Seus pensamentos ainda nos iluminam de esperança e propõem um novo modo de agir: “Comece por você mesmo a mudança que propõe ao mundo”. “Você pode se considerar feliz somente quando o que pensa, diz e o modo como age estiverem em completa harmonia”. Aí está uma profunda indicação de caminho.

Quem é cristão se recorda de que a busca de uma vida que seja verdadeira e plenamente vivida e para todos e todas é o objetivo pelo qual Jesus de Nazaré define a sua missão: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10). Essa certeza de que conta com a inspiração do Espírito Divino é o que fortalece os movimentos sociais e a sociedade civil mais consciente, organizada em fóruns e ágoras sociais. É isso que nos faz perseverar no caminho. As intuições e o caminho das comunidades e dos movimentos sociais partem das necessidades do mundo deste início do século XXI. Respondem à urgência de construir um novo mundo necessário e possível na comunhão com todos os seres vivos. Em sua luta, índios, lavradores e movimentos sociais podem se considerar, sem dúvida, herdeiros fieis do Mahatma Gandhi e profetas da humanidade atual. 


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

A TERRA É PLANA!




 Por Frei Betto
      Homem de fé que sou, e ainda mais mineiro, sempre desconfiei dessa ciência influenciada pelo marxismo. Se a Terra fosse redonda e girasse em torno do próprio eixo, no mínimo deveríamos sentir tonturas. Esse preconceito contra o geocentrismo de Ptolomeu decorre dos malévolos conceitos paulofreirianos assumidos por Copérnico e Galileu. Eles adotaram o princípio marxista de que o lugar social determina o lugar epistêmico, e ao retirar os pés da Terra para fixá-los no Sol, inventaram a teoria do heliocentrismo. Ora, basta erguer os olhos ao céu e constatar que o Sol gira em torno da Terra, caso contrário não haveria dia e noite.

      Não há nada de anacronismo quando acuso Copérnico e Galileu de influência marxista. Nosso chanceler, Ernesto Araújo, já demonstrou que as teorias de Marx, tão perniciosas, precedem o próprio Marx, pois, segundo ele, o “marxismo cultural globalista”  teve como marco inicial a Revolução Francesa.

      Outro absurdo pretensamente científico, que espero seja corrigido pela Escola sem Partidos, é a teoria de que nós, seres humanos, descendemos dos símios. Somos descendentes diretos de Adão e Eva! Está na Bíblia! Decorremos da Criação divina, e não desses macacos que se dependuram com o rabo nos galhos, enquanto descascam bananas com as mãos.

      Sim, sei que Adão e Eva tiveram dois filhos homens, Caim e Abel. O fato de estarmos aqui se explica porque ao menos um deles transou com a mãe. Contudo, na época o incesto ainda não era pecado. No máximo, um mal necessário, como hoje a liberação de armas de fogo para a defesa da vida.

      O marxismo é como essas partículas de poeira que flutuam no ar e são vistas apenas quando forte incidência de raio solar atravessa à nossa frente. Toda a nossa cultura, em especial a história e a arte, está contaminada pelo marxismo. Afirmar que Moisés libertou os escravos do Egito é pura ideologia. Não havia escravos às margens do Nilo, havia servos. E o grande feito de Moisés não foi libertar escravos, e sim abrir caminho para os hebreus, em terra seca, entre as águas do Mar Vermelho (que, de fato, era ocre, mas a influência comunista...).

      Não existe Estado laico. Há que se definir, ou é de Deus ou é do diabo. É pura ideologia colocar a ciência acima da fé e afirmar que o Estado é laico em uma nação cristã.

      Já que o superministério da Economia já sabe como reduzir o desemprego, e os problemas de saúde podem encontrar cura na igreja da esquina, faz bem o governo em liberar, como primeiro grande gesto da nova gestão, a posse de armas! O Estado precisa conter gastos e a segurança pública é onerosa. Melhor que cada cidadão se defenda como pode!

      E se uma criança acessar a arma do pai?, indagam mães preocupadas. Ora, esclarece o ministro, arma é menos perigosa que liquidificador. No entanto, não se cogita descartar esse eletrodoméstico. O que faltou ao ministro explicar é que, como o nome do aparelho alerta, liquidificador, além de triturar tenras mãozinhas, é uma arma indelével, fica a dor...

       Ora, chegou a hora de dar um basta nessas ideologias nefastas que confundem a cabeça do povo. O politicamente correto é científica e teologicamente incorreto.

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.  
 Copyright 2019 FREI BETTO Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A GRAÇA DA DIVERSIDADE



Por Marcelo Barros

No Brasil, a cada ano, apesar do que poderá pensar sobre isso o novo governo federal, o 21 de janeiro é comemorado como “o dia nacional de combate à intolerância religiosa”. Essa data foi criada pelo presidente Lula, através da lei federal n. 11.635 de 27 de dezembro de 2007. Ao escolher esse dia, se quis homenagear a Mãe Gilda, Ialorixá do Axé Abassá de Ogum, em Salvador. Ela faleceu no dia 21 de janeiro de 2000, vítima de perseguição e ataque de um grupo neopentecostal fundamentalista que invadiu o templo do Candomblé, desrespeitou os símbolos sagrados ali representados e ofendeu gravemente a mãe de santo.

Mesmo com a criação dessa data significativa e sua celebração a cada ano, infelizmente, nos nossos dias, a intolerância religiosa tem aumentado. Pior ainda, atualmente ela é menos combatida do que antes. Mesmo em ambientes oficiais, autoridades fazem declarações que denotam intolerância e discriminação contra grupos culturais e religiosos diferentes da cultura dominante. Em vários países, há preconceitos contra muçulmanos, como se todos fossem terroristas. E a sociedade dominante cria barreiras de marginalização social e preconceitos. Os governos respondem aos fundamentalismos de grupos extremistas com um terrorismo de Estado, ainda mais nocivo e destruidor. No Brasil, a cada dia, se registram casos de discriminações e perseguições a alguns grupos religiosos, principalmente, comunidades das religiões afrodescendentes. Apesar da Constituição Brasileira defender a liberdade de culto para todas as religiões, programas de rádio e televisão pregam a intolerância e combatem os cultos afro.

O mais grave é que os ataques e atos de violência religiosa não são praticados por ateus dogmáticos, contrários à religião. São cometidos por grupos que se dizem cristãos e agem em nome de Deus. Apoiam-se em uma leitura literal e fanática de alguns textos bíblicos para justificar a imagem de um Deus cruel, violento e intolerante. Ainda bem que, até aqui, esses grupos neopentecostais e católicos de linha carismática não descobriram ainda que os mesmos livros da Bíblia que manda perseguir e destruir cultos de outros grupos manda também apedrejar mulheres adúlteras ou simplesmente pessoas que não respeitem o sábado. Será que, ao descobrirem que as mesmas leis bíblicas que condenam outros cultos permitem a escravidão de estrangeiros e mandam vender pessoas como escravas para saldar dívidas não pagas, eles passarão a praticar isso? Parecem não perceber que, em pleno século XXI, essas leis culturais da Ásia antiga não podem ser consideradas como vindas de Deus.

Em outras épocas, quase todas as Igrejas históricas condenavam hereges à morte. Também queimavam na fogueira mulheres consideradas feiticeiras ou bruxas e pessoas que praticassem formas de sexo não aprovadas pela Igreja. Durante séculos, a Igreja Católica se proclamou como a única religião verdadeira e sistematicamente combatia as outras. Somente há 50 anos, em 1965, ao concluir o Concílio Vaticano II que, em Roma, reuniu todos os bispos do mundo, a Igreja Católica publicou a declaração Nostra Aetate que reconhece o valor das outras religiões e incentiva os fieis a valorizar o diferente e praticar o diálogo. Da parte das Igrejas evangélicas históricas, em 1961, o Conselho Mundial de Igrejas, que reúne 349 confissões evangélicas e ortodoxas, em sua assembleia geral em Nova Dehli, pediu às Igrejas-membros respeito e diálogo com todas as culturas e colaboração com outras tradições religiosas.

De fato, todas as religiões pregam amor, compaixão e misericórdia. Entretanto, quando se tornam dogmáticas e autoritárias, se transformam em instrumentos de fanatismo e canais de intolerância. Confundem a verdade com uma forma cultural de expressar a verdade. Assim, absolutizam dogmas e acabam justificando conflitos e guerras em nome de Deus.

Atualmente, no mundo, a diversidade cultural e religiosa é, não somente um fato que, queiramos ou não, se impõe à humanidade. É principalmente uma graça divina e bênção para as tradições religiosas. Para que entre as religiões, o diálogo possa ser profundo, cada grupo tem de reconhecer que Deus lhe revela o seu amor e o seu projeto para a humanidade, não só através da sua própria tradição, mas também do caminho religioso do outro. No tempo do nazismo, de uma prisão alemã, escrevia o pastor Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano: “Deus está em mim, mas para me abrir ao outro. Em mim, é uma presença fraca para mim mesmo e é forte para o outro. Ele está no diferente, mas a sua presença é para mim. Assim, Deus é amor e se encontra quando encontramos o outro, o diferente”.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

LIBERAÇÃO DAS ARMAS: UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA



 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Em 2005, chorei e lamentei o resultado do plebiscito.  Depois de lutar em várias frentes pelo fim da liberação do posse de armas e de sua comercialização, tive que amargar, junto com outros tantos, a derrota por larga margem.  Os que defendiam a comercialização de armas e sua posse venceram.
Agora, o presidente assina o decreto que legitima não só a posse de arma, chegando a facultar a uma mesma pessoa possuir até quatro armas de fogo.  O choro e o lamento recrudescem com mais força.  Parece que o Brasil caminha cada vez mais célere em direção a converter-se em um país bélico e violento.
São de impressionar os argumentos para o decreto que legitima posse de armas. Embora os defensores desta medida digam ser uma iniciativa que mitigará  a violência, isso é conhecido e largamente desmentido por todas as estatísticas.  Mais armas geram mais violência e também mais mortes.  Que o digam as mulheres, cujos assassinatos proliferam exponencialmente no país e que agora terão que conviver com companheiros não apenas violentos e agressivos, mas armados.  As mortes de mulheres certamente vão aumentar no Brasil com essa medida. 
Mas há mais: armas de fogo, letais e mortíferas, são comparadas a carros, que podem ter acidentes, e a liquidificadores, que podem machucar dedos de crianças.  Creio que há uma profunda diferença entre os objetos comparados aqui. Um carro tem a finalidade de transportar.  Se mal dirigido ou se abalroado por outro veículo ou qualquer outra causa, pode sofrer um acidente e eventualmente provocar ferimentos e morte.  Um liquidificador é um eletrodoméstico que tem a finalidade de fazer sucos ou vitaminas com vários legumes ou sopas etc. Eventualmente, se uma criança escapa do controle da mãe ou do responsável e coloca o dedo em seu motor, pode machucar-se. 
Já arma de fogo tem como finalidade ferir e matar.  Este é o seu objetivo e para isso será usada.  Quando portada por um adulto, pode atirar em legítima defesa ou por vingança, ou outro qualquer motivo.  Mas quando manipulada por uma criança, pode transformar o que era uma inocente brincadeira em uma tragédia sem tamanho.
Não pretendo aqui repetir as inúmeras análises já feitas brilhantemente por tantos jornalistas e comentaristas das mais diversas áreas. Restrinjo-me à minha área de conhecimento que é a teologia cristã.  E pergunto: como pode um governo que tanto valoriza o Evangelho, que reivindica em várias situações e várias instâncias o respaldo de Deus para suas decisões e ações, tomar medidas que vão em direção contrária a tudo que a Palavra de Deus proclama com força e insistência? A liberação da posse de armas contraria as propostas mais centrais do Evangelho de Jesus e, portanto, da Bíblia cristã.
O uso de armas, quaisquer que sejam elas, sempre foi questionado pelo Deus da Revelação cristã e radicalmente condenado por Jesus de Nazaré em quem os cristãos reconhecem o Filho de Deus e Deus mesmo. 
Em momento algum de sua pregação e ministério, Jesus solicitou ou permitiu aos que o seguiam como discípulos que apelassem para a violência. No Jardim das Oliveiras, já bem próximo à sua prisão, o Mestre repreendeu a atitude dos discípulos que faziam uso da espada.  E esse texto se encontra em mais de um evangelho: “embainha a tua espada”, diz João 18,10; “pois todos os que tomam a espada morrerão pela espada”, dirá Mateus 26,52.  A mensagem é clara:  não pode ser instrumento de salvação o que traz a morte. 
Muito significativa ainda é a atitude de Jesus relatada apenas em Lucas 22,49-51: diante da pergunta dos seus “Senhor, devemos ferir com a espada? ” E à ação de usá-la decepando a orelha do soldado romano, Jesus respondeu curando o que foi ferido, mesmo sendo um “inimigo”. Trata-se de reação não apenas de repreensão. Mais ainda: de reparação que o Mestre, às portas da morte, assumiu diante da tentativa de violência praticada por um dos discípulos. Com isso vemos o Evangelho dizendo: não basta não concordar com a violência e não portar instrumentos que a provoquem e efetuem; é necessário reparar seus danos, curar suas feridas. Jesus diz “Basta”. Trata-se aqui de um “basta” a toda e qualquer tentativa de violência, mesmo que seja na melhor das intenções, que no caso dos discípulos, era de salvar o Mestre dos soldados que vinham prendê-lo.
A mim, particularmente, em todos os episódios que antecederam a assinatura do decreto, chocou-me a atitude de padres que defendem o porte de armas e que entram em escolas de tiro para aprender a usá-las. Argumentam que atirar em legítima defesa é moral, porque mata não um inocente, mas um agressor.  E exortam os fiéis a liberar-se do complexo de culpa e da ideologia pacifista.
Com todo respeito, creio que sobre isso o evangelho é bem claro.  Para um cristão, a violência não se justifica nunca. E se queremos – como é fato – que a segurança e a paz reinem em nosso país, o caminho certamente não é o de facilitar venda e posse de armas.  Mas sim trabalhar para que haja mais justiça, a fim de que haja menos violência. Como já dizia São Paulo VI: “o desenvolvimento é o novo nome da paz. ” Justiça e paz andam de mãos dadas e não se pode construir uma sem a outra.” 

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de  de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.
 Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

O DIABO NA CORTE




por Frei Betto

      Conta um velho manuscrito carolíngio que, certa feita, decidiu o diabo instalar-se em plena corte de um rei que se julgava verdadeiro messias. Dos súditos se exigia não apenas obediência, mas sobremaneira devoção.

      Como sabem todos, etimologicamente diabo é antônimo de símbolo. Se este une e agrega, aquele divide e confunde. E era exatamente este o intuito do diabo, semear na corte a mais intensa confusão.

      O rei se tomou de perplexidade e ódio ao ver seus propósitos reduzidos à galhofa. O que ele dizia pela manhã era desmentido à tarde por seus ministros. Se prometia aumentar impostos, logo seus acólitos se apressavam a esclarecer que ele se equivocara. Se um ministro demonstrava a intenção de vender aos barões parte do patrimônio do reino, logo Sua Majestade tratava de contradizê-lo e reafirmar que certos bens estratégicos do reino não poderiam ser alienados.

      O diabo, em sua esperteza maléfica, tratou de semear uma das mais eficazes pragas: a confusão semântica. As palavras viram seus significados se esvaziar ou ser trocados, a ponto de uma princesa ousar confessar em público ser uma pessoa “terrivelmente religiosa”. Consultasse ela um dos vernaculistas do reino, saberia que o advérbio deriva de “terrível, que causa ou infunde terror”, conforme aclarou o sábio Michaelis. E o monge carolíngio copista do importante manuscrito fez esta glosa que tanto agradou o diabo: “Uma religiosidade terrível nada tem a ver com o bom Deus”.

      A mesma nobre autoridade ousou decretar que, no reino, meninas deveriam trajar rosa e, meninos, azul. O diabo esfregou as mãos de satisfação. Os daltônicos, por temerem incorrer em erro, preferiram sair nus à rua, o que suscitou uma onda de escândalos. Os que haviam nascido menina e, no entanto, se sabiam menino, vestiram-se de rosa, e os meninos que se sabiam meninas trajaram o azul, o que os tornou alvo de severos castigos.

      Por injunção do diabo, toda e qualquer pluralidade foi banida do reino, impondo-se a mais estrita dualidade. Quem não era amigo, era inimigo. E para que tal dualidade não sofresse a menor ameaça de ser contaminada pela dialética, baniu-se do reino o Ministério da Cultura. Pensar, antes considerado um estorvo, passou à categoria de crime. Foi extinto ainda, entre outros, o Ministério do Trabalho, já que o diabo incutiu na nobreza ser muito mais lucrativo o trabalho escravo que o assalariado, tão oneroso para as burras de marqueses e condes.

      Não satisfeito em provocar tamanha confusão no reino, o diabo decidiu agir na educação dos súditos. Para o rei, todos os monarcas que o precederam haviam envenenado a educação com a famosa peste do ismo, contaminando de tal modo a visão dos educandos que enxergavam vermelho onde havia verde. Assim, Sua Majestade buscou, entre os 90 mil professores de ensino superior do reino, um capaz de extirpar tão ameaçadora doença. Não encontrou um sequer. Viu-se obrigado a importar do reino vizinho um professor tido como suficientemente capaz para velar por uma educação desprovida de qualquer senso crítico e protagonismo social. A higienização das mentes muito agradou os propósitos do diabo.

      Na alfabetização, baniram-se todos os métodos que associavam palavras e ideias, e adotou-se o método fônico, que recorta letras para formar palavras. O jogo de Palavras Cruzadas foi terminantemente proibido por favorecer a semântica em detrimento da sonoridade vocabular.

      O ministro encarregado das relações com os reinos vizinhos falava javanês. Ninguém nada entendia, o que não tinha a menor importância, já que o seu interesse era se sentir cercado de admiradores e, de preferência, bajuladores. Sua diplomacia consistia no mais estrito verticalismo, que prioriza a relação com os Céus, em detrimento de todo e qualquer horizontalismo de boa vizinhança com os demais reinos.

      Muitos séculos depois de encontrado este manuscrito, descobriu-se outro em um reino do Sul, saído da lavra de um descendente de escravos. Intitulava-se “A igreja do diabo”. O autor se chamava Joaquim Maria Machado de Assis. Mas isso é outra história.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O ELEFANTE DE WITTGENSTEIN. A QUESTÃO DO CONHECIMENTO NOS DIAS DE HOJE




Por Eduardo Hoornaert

Certa vez, ao discutir questões filosóficas com um colega num gabinete da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Ludwig Wittgenstein, com sua conhecida impetuosidade, gritou: ‘Há um elefante na sala’. Com isso, ele quis indicar que seu interlocutor, ao que lhe parecia, não enxergava o óbvio.

A imagem desse elefante me parece apropriada para passar um olhar crítico pelos vastos campos da cognição na civilização ocidental. Desde os primeiros esboços na Mesopotâmia, a impressão que se tem é que o próprio processo civilizador impede de enxergar elefantes de Wittgenstein, principalmente o elefante da escravidão. Na Grécia clássica, que nos lega a filosofia, a escravidão é onipresente, mas invisível. Dizem os historiadores que, na cidade de Atenas em tempo de Péricles (séc. V aC), cinco mil cidadãos vivem sustentados por cem mil escravos, um número aproximativo, pois acerca de escravos não existe registro escrito. No Liceu de Atenas (fundado por Aristóteles no século IV aC) não é difícil se imaginar um vai-e-vem incessante de ‘pedagogos’, escravos que trazem e levam crianças e jovens de famílias boas para participar de exercícios educativos. Pelo pátio do referido Liceu, homens e mulheres se cruzam, a preparar as mesas, servir comidas e bebidas, limpar o chão e as latrinas. Os estudantes não lhes dão atenção.

 Nem o próprio Mestre Aristóteles, que lhes dedica apenas umas linhas de sua ‘Política’ (não cito textualmente): ‘esses nossos servidores fazem o que lhes compete fazer para o bom andamento do Liceu e isso lhes dá satisfação. A natureza cria uns para mandar e outros para obedecer. Os ‘servi ex natura’ (servos por natureza) nos são úteis, e mais não digo, já que temos que nos conformar com as leis da natureza, que dispensam reflexões filosóficas’. Em outras palavras: Aristóteles deixa o colossal elefante de Wittgenstein perambular tranquilamente por seu território.

Séculos depois, o teólogo cristão Agostinho (séc. V dC) não pensa diferente. Ele se mostra triste com os destinos da humanidade pecadora, essa ‘massa damnada’ herdeira do ‘pecado original’ de Adão e Eva. Mas não parece afetado pelo fato que, na guarnição militar costeira romana, sediada em Hipona, onde ele é bispo, se despacham rotineiramente grupos de africanos algemados, com destino aos mercados de escravos existentes na Itália. O teólogo lamenta o ‘inferno’ dos pecadores, mas não parece ouvir os lamentos e sussurros de africanos a serem embarcados para o inferno da escravidão romana. O mestre cristão repete basicamente a argumentação de Aristóteles, só que atribui a escravidão ao pecado, o pecado de Cam. Comentando os versículos 21 a 25 do livro 9 de Gênesis, Agostinho explica que Cam, o filho ‘etíope’ (leia: negro) de Noé, não trata seu pai, desnudo e embriagado em baixo da lona, com o devido respeito. Este, ao acordar e ouvir o relato, condena peremptoriamente Cam e todos os seus descendentes:

Maldito seja Canaã (filho de Cam)
Seja ele escravo de seus irmãos.

Assim a carruagem dos tempos vai invariavelmente acompanhada pelo lento e pesado passo do elefante invisível de Wittgenstein, como nos lembra o escritor português José Saramago em seu ‘Ensaio de Cegueira’ (1995): as pessoas veem, mas não enxergam.

 De modo ainda mais premente, no conto ‘A roupa nova do Rei’, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1837) narra que o alfaiate do rei, ao confeccionar uma nova roupa, ‘nunca vista’, para o rei, adverte: ‘só os inteligentes conseguirão enxergar a nova roupa do Rei’. Assim, este pode passear pelado pelas ruas sem que ninguém diga nada. Só uma criança grita: ‘o rei está nu’.

A permanência do elefante de Wittgenstein na cultura ocidental levanta uma questão filosófica. Como se chega a não enxergar uma evidência? Uma pergunta que toca num dos pontos fundamentais da filosofia, a epistemologia. Enfim, de que modo chegamos a conhecer algo? Como se estrutura nosso conhecimento (nossa cognição)? A resposta secular, dada pela filosofia: conhecemos por meio da informação, seja direta, por meio dos cinco sentidos, seja indireta, por falas, escritas ou imagens. As informações diretas, físicas, geram diretamente a evidência. Ou seja, o melhor meio de adquirir conhecimento consiste na observação atenta das coisas, por meio dos cinco sentidos.

E as informações indiretas, por meio de falas, escritas ou imagens? Em que condições elas geram evidências? Aristóteles, em sua ‘Ética’, ao afirmar que a verdade consiste em considerar ‘aquilo que é’ (id quod est), não deixa de observar que essa consideração implica num imperativo ético: nem sempre ‘aquilo que é’ me agrada, está em conformidade com meus interesses. Daí a complicação.

Aqui estamos diante de uma questão em cima da qual os filósofos se debruçam desde séculos: nas informações costumam entrar imperativos não éticos, embora comumente revestidos de moralidade, como são, por exemplo: interesses pessoais, vantagens financeiras, luta pelo poder e exercício do poder, obediência a ordens dadas, compromissos de vida já assumidos, opção por modelos autoritários, ou simplesmente acomodação com situações injustas existentes. A dificuldade consiste no fato que, na maioria dos casos, esses discursos se apresentam como sendo designativos, ou seja, pretendem expressar as coisas como elas são efetivamente. Eis o engodo que poucos parecem perceber. Discursos aparentemente designativos podem ocultar o que se pretende efetivamente: emitir uma ordem, expressar um desejo, uma exortação, um sentimento, uma intuição, uma imaginação, um sonho, um projeto, um cálculo, etc. São discursos que não revelam, mas escondem, contêm intencionalidades não confessas, procuram exercer um domínio sobre as mentes humanas, com a finalidade de fazer passar determinados posicionamentos, formar consensos, enfim, enganar as pessoas.

Não é difícil constatar que a maioria dos discursos, hoje emitidos por poderes políticos e econômicos, serve para justificar imperativos não éticos. Isso cria uma situação dramática, que todos e todas podemos observar diariamente em contatos com nossos vizinhos. As pessoas acabam se metendo num labirinto de palavras tão intricado, que elas não encontram mais a saída. Elas se parecem com aquelas moscas que voam para cá e para lá dentro de uma garrafa aberta. A boca da garrafa está aberta, ou seja, há saída. Mas as pessoas não a encontram, de tão confusas e desorientadas, tão desacostumadas a refletir. Elas costumam, desde muito, entregar sua inteligência ao ‘Jornal Nacional’ da TV Globo ou às manchetes da revista Veja. Desse modo mal escapam ao bombardeio diário de Fake News, que hoje toma conta dos noticiários. Eis uma situação que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman qualifica de ‘líquida’. Não há mais verdade, só há notícias.

Fico pensando: como é que esse tema da complexidade cognitiva ficou por tanto tempo fora das cogitações de eminentes filósofos clássicos da tradição ocidental, como Aristóteles e Agostinho, que – como escrevi acima – nem conseguem enxergar o elefante de Wittgenstein a passear por seus territórios? Como é e que eles não alertam com o devido vigor diante dos perigos de uma cognição pervertida? Mesmo muitos filósofos modernos parecem omissos nesse ponto, ao dar a impressão de confiar demais em ‘informações’. Quem contempla o atual cenário do universo cognitivo, verifica com espanto quão facilmente as pessoas se deixam prender nas redes de discursos enganosos. Como já dizia Maquiavelli, as pessoas costumam ficar indefesas (ele fala até em ‘disponíveis’) diante de enunciados emanados de fontes que lhes parecem confiáveis. Voltaire ainda acrescentou: ‘mentez, mentez toujours: il en restera toujours quelque chose’ (mintam, mintam sempre: algo há de ficar). E Goebbels, ministro da informação do governo nazista, completou: ‘uma mentira repetida mil vezes se torna verdade’.

Afinal, tivemos de esperar a revolução linguística do século XX para ver aparecer uma geração de filósofos disposta a encarar de frente a questão cognitiva e se propor a premunir as pessoas contra palavras enganosas, esclarecer a perversidade de determinados usos da linguagem e precaver diante de palavras pretensamente designativas. Não é por acaso que um dos analistas políticos mais argutos de nossos dias seja Noam Chomsky, um linguista. Nem falo em Slavoj Zizek, Bakhtin, Ricoeur, Bourdieu e outros.
Esses filósofos linguistas nos propõem um exercício diário, o de limpar nossa cabeça. Ninguém se engane, a ‘Fake News’ veio para ficar e se desenvolver sempre mais, pois repousa sobre uma tecnologia em pleno desenvolvimento, que ainda não revelou todas as suas potencialidades. Vivemos em sociedades cada vez mais ‘informáticas’, onde não só enormes conglomerados informativos derramam sobre nós diariamente um fluxo ininterrupto de informações, mas onde o twitter permite que cada um(a) de nós emita, por sua vez, informações e afirmações, a seu bel prazer. Nossa única defesa reside em nosso cérebro, como nos lembra Mao Tse Tung:

Que os pássaros façam ninhos nas árvores
Você não pode impedir.
Mas que eles façam ninhos em seu cabelo
Isso você pode impedir.

Em outras palavras: somos convidados a praticar um exercício contínuo e diário de domínio inteligente sobre nosso próprio pensamento. E no Brasil 2019 não faltam oportunidades para tanto: elas são diárias!

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

BATISMO DA MÃE TERRA



Por Marcelo Barros

Nesse domingo 13 de janeiro, as Igrejas de tradição latina e também as orientais encerraram o ciclo litúrgico do Natal, festejando a memória do batismo de Jesus. Em muitas regiões do mundo, nos primeiros dias do ano, as pessoas buscam entrar no mar ou banhar-se em um rio como rito de purificação para o ano novo. Grupos espirituais e comunidades tradicionais realizam ritos de purificação pela água, pelo ar e pelo fogo, elementos comuns da mãe Terra, sem os quais a vida não existiria ou não seria a mesma.

O rito original do batismo (em grego, o termo significa mergulho), feito pelo profeta João Batista no rio Jordão, significava um compromisso de purificação e renovação de vida. O batismo era um desses ritos de renascimento, no qual somos convidados/as a sermos parte da Terra. Ao nos unirmos à água, primeiro elemento da vida, assumimos o compromisso de nunca nos distanciarmos da Terra a qual pertencemos. O próprio Jesus, ao assumir o batismo no Jordão, fez esse sinal de se unir à terra e à água para ser profeta do reino divino que vem ao mundo. Então, não podemos permitir que a ambição humana continue a contaminar a flora, a fauna e o mundo mineral.  A Terra, a água e a natureza não podem ser reduzidas a meras mercadorias.

Precisamos cuidar da vida com a mesma ternura que uma mãe vela por seu filho ou filha doente. Nosso planeta é mais do que apenas uma bola imensa que gira ao redor do sol. É um organismo vivo dentro do conjunto do sistema solar. Sua diversidade é comparável ao equilíbrio que há entre os órgãos de nosso corpo, diversidade e equilíbrio indispensáveis para que possamos viver. 

Todos nós desejamos um futuro melhor para a humanidade e para o planeta Terra, tão ameaçado pela crise ecológica. Entretanto, para que nossos votos possam ser eficazes, é importante que o nosso desejo se concretize em ações de solidariedade que levem a uma nova organização da sociedade. Nossos desejos de um futuro melhor devem se concretizar no apoio aos movimentos populares e fóruns que trabalham por um novo mundo possível.  Toda a humanidade se encontra envolvida em uma crise  que atinge as bases do sistema social e econômico dominante. Essa situação joga as novas gerações em uma situação deprimente de insegurança e desemprego estrutural e ameaça destruir até as próprias condições da vida no planeta Terra.

A partir dessa semana, muitas pessoas voltam ao seu ritmo habitual da vida e do trabalho. A Agenda latino-americana desse ano de 2019 é dedicada às “grandes causas no pequeno”. De fato, temos que redescobrir que as Grandes Causas estão também comprometidas nesse imenso âmbito do “pequeno” do nosso dia a dia, do pessoal-privado, da intimidade, do familiar, das amizades, da nossa casa, do entretenimento, do ócio... Em tudo o que vivemos, mergulhemos na comunhão com a Mãe Terra, nos sintamos unidos/as a toda a humanidade e todos os seres vivos. Assim, em nós, se atualizam o batismo de Jesus, o mergulho místico de todas as pessoas que são nossos mestres e mestras em todas as religiões e o batismo da Mãe-Terra.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br





quinta-feira, 10 de janeiro de 2019





Por Frei Betto

         Feliz Ano Novo a quem alarga o horizonte da utopia e espelha a diversidade de gênero nas cores do arco-íris. E aos que proclamam a soberania do amor como lei irrevogável. 

        Feliz Ano Novo a quem teme sombras de coturnos e aos que se atrevem a ressoar a voz de quem a exclusão silencia, para que também tenha vez.

      Feliz Ano Novo aos que livram a democracia de suas algemas liberais e insistem que ela também floresça lá onde a economia impõe a afronta de poucos terem muito e muitos sobreviverem com quase nada. 

      Feliz Ano Novo aos artistas que fazem da palavra eco de esperança e desnudam, com suas obras, os figurinos da hipocrisia que encobrem a realidade.

      Feliz Ano Novo a quem se recusa a beber a cicuta do ódio à espera de que outros morram. E aos que reverenciam a alteridade como ponte que separa a diferença da divergência.

      Feliz Ano Novo aos alpinistas da solidariedade, que escalam confiantes a montanha da indiferença para desfraldar, no topo, a bandeira da ontológica sacralidade de cada ser humano.

      Feliz Ano Novo a quem é capaz de enxergar os fenômenos sociais além dos efeitos, e reconhece que entender o capitalismo não requer estudos nem decifrar os índices do mercado. Basta sair à rua e ter cuidado de não pisar nos pedintes estendidos pelas calçadas.

      Feliz Ano Novo a quem não divorcia liberdade de justiça e não se refugia em sua ilha de conforto cercada de egoísmo mórbido. E a quem se irmana a todos que lutam para que o pão nosso não seja apenas um verso da oração ensinada por Jesus.

      Feliz Ano Novo aos que se despem de toda arrogância para desinvisibilizar aqueles que, na loteria biológica, não mereceram o prêmio de uma vida digna. E a quem desconsidera privilégio ter mais alimentos que apetite, e faz disso uma dívida social.

      Feliz Ano Novo a quem cultiva seu jardim de valores éticos e ousa abdicar de todo poder capaz de fomentar opressão, discriminação e sofrimento.

      Feliz Ano Novo a quem guarda a memória do passado sombrio e não permite que se apaguem as luzes do alvorecer democrático. E a todos que reforçam os laços das demandas populares e tornam ensurdecedor o grito parado no ar.

      Feliz Ano Novo a quem não renuncia ao riso nem se deixa abater pelas diatribes do terror. E a todos que impedem que a noite devore o dia, o sol seja engolido pelos buracos negros, e a liberdade trocada pela segurança.

      Feliz Ano Novo aos que ousam apontar que o rei está nu e se empenham em arrancar-lhe a coroa. E a quem anuncia aos quatro ventos que não há súditos, somos todos majestades.

      Feliz Ano Novo a quem guarda saudades do velho e se paralisa diante da pedra no caminho. E a todos que descobriram que o contrário do medo não é a coragem, é a fé.

      Feliz Ano Novo a todos que se sabem habitantes de um minúsculo planeta situado em uma pequena galáxia do Pluriverso e, por isso, aprenderam a recolher as asas da afetação. E a quem garimpa a própria subjetividade em busca de preciosidades inefáveis.

      Feliz Ano Novo a todos que desnaturalizam a desigualdade social e se sentem tocados pelo dor alheia. E a quem se desassossega perante os arautos da fatalidade e se soma aos iconoclastas do mercado.

      Feliz Ano Novo a todos que, conscientes de que o humano vem com defeito de fabricação e prazo de validade, se despem da empáfia e contabilizam seus erros como lições no rumo da transparência.

      Feliz Ano Novo a quem sabe que a fonte da felicidade é fazer os outros felizes. E que um dia abracem esta verdade todos que atropelam os semelhantes com a sua soberba, seus preconceitos e sua voracidade de prazeres. Empanturrados de si mesmos, ignoram que o melhor roteiro turístico é o que nos faz viajar para mergulhar nas aventuras do espírito. No avesso de si, então se encontra o dom do outro. O resto é silêncio.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.
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