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domingo, 28 de fevereiro de 2021

POLÍTICA E FÉ EM TEMPOS DE CORONAVIRUS

 FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(27/02/2021)

 

    Esta semana me chamou a atenção uma entrevista da cantora Teresa Cristina, no programa Roda Viva, da TV Cultura. Um dos entrevistadores perguntou "você consegue separar arte de política?". Ela respondeu com um retumbante "Impossível!" E acrescentou "Quando pronuncio o nome Francisco Buarque de Holanda, isso já é política."

     Puxa! que poder de síntese!

      Logo me vieram à mente outros questionamentos similares: "detesto política", "política e religião não se misturam", "não confio em nenhum político", "prefiro anular meu voto"  e por aí afora.  E quando pronunciamos palavras santas: Deus, Jesus de Nazaré? E outras derivadas destas: Igreja, Família? E quando apenas respiramos, comemos, bebemos, cantamos ou, enfim, silenciamos? Em algum destes momentos estamos imunes de qualquer conteúdo político? Haverá algum item da "Declaração Universal dos Direitos Humanos" que legitime a total alienação política?

     Não dá para responder a estas questões sem antes purificar o nosso entendimento. A palavra "política" acumulou a lama de todos os vícios e delitos humanos, ao longo de milênios. Agora não é nada fácil enxergar, através dessa crosta, a  sua pureza original.

     Estamos fartos de saber que ela se origina do idioma grego, que "polis" quer dizer cidade, que política, enquanto ação, constitui o exercício da cidadania. O mais genial dos pensadores gregos, Aristóteles, tratou de dar-lhe um significado existencial: "política é a ciência que tem como objetivo a felicidade humana". "Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade. E toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas visando o que lhes parece um bem", escreve o filósofo.

 

     À luz desta compreensão, somos convidados a responder às perguntas acima expostas, com o acréscimo de uma nova,  mais atrevida:  Deus age de outra maneira que não seja politicamente?

     Ninguém melhor para dar uma resposta do que o seu Filho Jesus. "Tudo bem, dirão alguns, mas Jesus nunca fez política". Na verdade, Ele não conseguiu pregar sua doutrina publicamente senão no curto tempo de três anos. E foi condenado com uma sentença de natureza claramente política ("é preciso que Ele morra para que não pereça toda a nação" Jo.11,5) Quanto tempo o deixariam viver, caso Ele tivesse afrontado de peito aberto os poderes dominantes?

    O equívoco de muita gente é imaginar que fazer política exige necessariamente fazer discursos partidários ou ideológicos, ou em oposição direta aos governos opressores. Há um critério de fácil compreensão para quem tem dúvidas a este respeito. É o critério dos resultados. O que resultou, politicamente, para o Império Romano, da pregação do Evangelho, nos séculos que se seguiram? O que tem fortalecido, desde então e ainda hoje, o espírito dos que precisam de um poder transcendental sobre sua consciência política? Que ideologia pode comparar-se à fé inabalável de quem crê que possui o aval de Deus e realiza a sua vontade quando combate toda forma de opressão?

     O Brasil já foi destaque internacional pelo seu pioneirismo na pesquisa e prática de vacinação contra doenças endêmicas. Hoje é um dos últimos l da fila no combate eficaz contra a covid 19. Alguém pensa que haja outro motivo para isso que não seja única e exclusivamente a falta de vontade política?

     Políticos profissionais posam de fiéis devotos e do nome de Deus fazem bandeira para suas campanhas. Eles sabem que a maioria de seus eleitores, vendo-os "tementes a Deus", terão menos medo deles, e menos disposição para destroná-los, porque crêem que Deus protege seu povo.

 

     Quando vemos algumas denominações religiosas fazer aliança e fechar acordos com o o poder dominante, temos razão de desconfiar de suas intenções:  são ditadas pela Fé ou por um Projeto de Poder temporal?

     Não há como negar, a política penetra em todos os segmentos da sociedade.

     A penitência deste tempo quaresmal não pode nem deve fugir de suas consequências, uma vez que os acontecimentos da História são também matéria prima para se construir o Reino de Deus. A morte de Jesus foi uma resolução política daquela época. Sua resurreição, uma decisão do  Pai do Céu, para todos os tempos.

É aí que temos de escolher nossas prioridades, atentos à exortação de Jesus: "vocês são o sal da terra, vocês são a luz do mundo. Se o sal não salgar, se a luz não acender, para mais nada servirão" Mt.5, 13-16. Amém.

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

O MEDO EM TEMPOS DE CORONAVIRUS"(2)

 


FREI ALOÍSIO FRAGOSO


(24/02/2021)

 

     A julgar pela reação de alguns dos que  leram nossa última Reflexão, o assunto do medo gerou outro medo: o de tornar medrosas outras pessoas. "Cuidado, tem muita gente com muito medo e uma palavra sua pode ter efeito positivo ou negativo em seu espírito", alertou uma leitora.

     Eu fora provocado por um sonho noturno, sonho fantasmagórico, que repercutiu na realidade do dia seguinte e ainda dos dias seguintes, e se projetou para os dias futuros.

     Não sei o que diria Freud, mas sei bem o que eu lhe perguntaria: "Mestre, o medo é uma deficiência ou um poder da natureza?". Não será ele um estado de alerta, em favor da sobrevivência humana? Se eu tivesse de escolher, numa situação de grande perigo, entre a companhia de alguém que tem medo ou de outro alguém que o desconhece por completo, optaria pelo primeiro; penso que este último me exporia a riscos extremos de vida, sem medir consequências. Admiro as  pessoas corajosas, porém não as vejo na figura de quem despreza o medo e sim de quem o enfrenta com destemor e lucidez.

     Por isso, gostaria de fazer alguns acréscimos  à primeira narrativa sobre aquele susto da noite. A sensação que produziu em mim não foi patológica, não me causou fobia, não acelerou meus batimentos cardíacos, muito menos cancelou meus planos de luta, adiados por conta do coronavirus.

     Agradeço ao cérebro, meu mentor, a liberação de adrenalinas, e a estas, o grito de alerta frente aos perigos reais. Só não admito que queiram antecipar o canto de cisne das minhas esperanças e utopias.

     Os dados da ciência são úteis e necessários enquanto marcam nossos passos no caminho. Daí em diante, temos de recorrer a outras Forças Superiores.

     Voltemos, pois, a enfocar os acontecimentos que estamos revivendo neste tempo da Quaresma. Na Reflexão anterior, os deixamos em suspense, no alto do Calvário, com uma pergunta espantosa: por que o Pai do Céu não deteve a mão criminosa que abateu seu Filho na cruz? Por que o Justo foi abandonado nas mãos dos pecadores, até o último momento?

      A Fé reconhece no sangue de Cristo a nossa Redenção. Contudo, seria um sacrilégio imaginar esta Redenção como uma tragédia sado-masoquista: um Deus que, para nos redimir, só se satisfaz com o sangue do Filho, e um Filho que se entrega passivamente à morte, como se houvesse uma troca de perdão por sangue, sangue por perdão. Não. Deus não mandou Jesus ao mundo para morrer, mandou-o para anunciar seu Plano de Salvação. Jesus abraça a vontade do Pai em todas as suas  consequências, e a última delas foi a morte, por razões trágicas e práticas: sua pregação conflitava com os interesses dos poderes dominantes ("se este homem continuar falando, em breve todo  povo o seguirá; é preciso que ele morra" cfr.Jo.11,45-54)

O Sacrifício da Cruz foi, pois,  a prova suprema da fidelidade do Filho ao Pai (e a nós).

     O que nos diz a doutrina, desde então? - S. Paulo responde: "Jesus ofereceu um um Sacrifício único por nossos pecados, de uma vez por todas. Desde então, não há mais necessidade de sacrifícios cruentos, porque o sangue Dele adquiriu uma redenção eterna" Heb.9,12. Em outras palavras, a Vitória já foi selada com o aval de Deus. O que não está  estabelecido é o tempo de espera até completarmos esta Obra de Deus com a nossa parte.

     O Filho de Deus teve imitadores ao longo da História, irmãs e irmãos nossos que também levaram sua fidelidade até as últimas consequências e acabaram na forca, na fogueira, na guilhotina, no pilotão de fuzilamento.  Nesta pandemia não foram poucos os profissionais de saúde que pagaram com a própria vida os cuidados com a vida dos outros.

     Todos estes mártires provam que haverá sempre derramamento de sangue na conquista da verdadeira Paz. Seu testemunho virou semente geradora de novos combatentes. Isso não significa que devamos todos ter, forçosamente, o mesmo destino. Eles nos estimulam a perseverar, administrando nossos medos com base não em simples cálculos humanos, mas sim nas energias da Fé acumuladas em séculos de História, segundo estas palavras de S. Paulo: "Até na tribulação devemos nos gloriar, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança produz a fidelidade, a fidelidade, comprovada, produz a esperança. E a esperança não nos engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito que nos foi dado" Rom. 5,3-5. Amém.

 

Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

LIÇÃO DA COVID-19: ADOECEMOS A TERRA E A TERRA NOS ADOECE


  Leonardo Boff


 

 A intrusão do coronavírus em 2019 revelou a íntima conexão existente entre Terra e Humanidade. Consoante a nova cosmologia (visão científica do universo) nós humanos formamos uma entidade única com a Terra. Participamos de sua saúde e  também de sua doença.

Isaac Asimov, cientista russo, famoso por seus livros de divulgação científica, a pedido da revista New York Times, (do dia 9 de outubro de 1982) por ocasião da celebração dos 25 anos do lançamento do Sputinik que inaugurou a era espacial, escreveu um artigo sobre o legado deste quarto de século espacial.

 O primeiro legado, disse ele, é a percepção de que, na perspectiva das naves espaciais, a Terra e a humanidade formam uma única entidade, vale dizer, um único ser, complexo, diverso, contraditório e dotado de grande dinamismo.

 O segundo legado é a irrupção da consciência planetária: construir a  Terra e não simplesmente as nações é o grande projeto e desafio humano.. Terra e Humanidade possuem um destino comum. O que se passa num, se passa também no outro.  Adoece a Terra, adoece juntamente o ser humano; adoece o ser humano, adoece também a Terra. Estamos unidos pelo bem e pelo mal.

 No atual momento, a Terra inteira e cada pessoa estamos sendo atacados pelo Covid-19, especialmente o Brasil, vítima de um chefe de estado insano que não se preocupa com a vida de seu povo. Todos, de uma forma ou de outra, nos sentimos doentes física, psíquica e espiritualmente.

 Por    que chegamos a isso? A razão reside no Covid-19. É errôneo vê-lo isoladamente sem seu contexto. O contexto está na forma como organizamos já há três séculos nossa sociedade: na pilhagem ilimitada dos bens e serviços da Terra para proveito e enriquecimento humano. Este propósito levou a ocupar 83% do planeta, desflorestando, poluindo o ar, a água e os solos. Nas palavras do pensador francês Michel Serres, movemos uma guerra total contra Gaia,  atacando-a em todas as frentes sem nenhuma chance de vencê-la. A consequência foi a destruição dos habitas das milhares de espécies de vírus. Para sobreviver saltaram para outros animais e destes para nós.

 O Covid-19 representa um contra-ataque da Terra contra a sistemática agressão montada contra ela. A Terra adoeceu e repassou sua doença a nós mediante uma gama de vírus como o zika, a chicungunya, o ebola, a gripe aviária e outros. Como formamos uma complexa unidade com a Terra,  adoecemos junto com ela.E nós doentes, acabamos também por adoecê-la O coronavírus representa esta simbiose sinistra e letal.

 De modo geral devemos entender que a reação da Terra à nossa violência se  mostra pela febre (aquecimento global), que não é uma doença, mas aponta para uma doença: o alto nível de contaminação de gases de efeito estufa que ela não consegue digerir e sua incapacidade de continuar nos oferecer seus bens e serviços naturais. A partir de 22 de setembro de 2019 ocorreu a Sobrecarga da Terra, vale dizer, as reservas de bens e serviços naturais, necessários ao sistema-vida, chegaram ao fundo do poço. Entramos no vermelho e no xeque especial.

Para termos o necessário e, pior, para mantermos o consumo suntuário e o desperdício  dos países ricos, devemos arrancar à força seus “recursos” para atender as demanda dos consumistas. Até quando a Terra aguentará?

 Sabemos que há nove fronteiras planetárias que não podem ser rompidas sem ameaçar a vida e nosso projeto civilizatório. Quatro delas já foram rompidas A consequência é termos  menos água, menos nutrientes, menos safras, mais desertificação, maior erosão da biodiversidade  e os demais itens indispensáveis para a vida. Portanto, nosso tipo de relação é antivida e é a causa principal da doença da Terra que,por sua vez, nos torna também doentes. Por esta razão, quase todos nós,especialmente por causa do isolamento social e das medidas higiênicas, nos sentimos prostrados, desvitalizados, irritadiços,numa palavra,tomados por um pesadelo que não sabemos quando vai acabar.Os milhares de mortos de entes queridos, sem poder acompanhá-los e prestar-lhes a última despedida por um luto imprescindível nos acabrunham e põem em cheque o sentido da vida e o futuro de nossa convivência nesse planeta.

Por outro lado, a muito custo estamos aprendendo que o que nos está salvando  não são os mantras do capitalismo e do neoliberalismo: o lucro, a concorrência, o individualismo, a ilimitada exploração da natureza, a exigência de um Estado mínimo e a centralidade do mercado. Se  tivéssemos seguido estes “valores” seríamos quase todos vitimados. O que nos está salvando é o valor central da vida, a solidariedade, a inter-pendência de todos com todos, o cuidado da natureza, um Estado bem apetrechado para atender as demandas sociais, especialmente dos mais carentes, a coesão da sociedade acima do mercado.

Damo-nos conta de que cuidando melhor de tudo, recuperando a vitalidade dos ecossistemas, melhorando nossos alimentos, orgânicos, despoluindo o ar, preservando as águas e as florestas nos sentimos mais saudáveis e com isso fazemos a Terra também mais saudável e revitalizada.

 O que o Covid-19 nos veio mostrar de uma forma brutal que esse equilíbrio Terra e Humanidade foi rompido. Tornamo-nos demasiadamente vorazes, arrancando da Terra  o que ela já não nos pode mais dar. Não respeitamos os limites de um planeta pequeno e com bens e serviços limitados. Antes, nossa cultura criou um projeto  irracional de crescimento ilimitado como se os bens e serviços da Terra também fossem ilimitados. Essa é a ilusão que perdura em quase todas as mentes dos empresários e chefes de Estado. Ai do país que anualmente não apresente um PIB maior.

  O Covid-19   nos faz recuperar nossa verdadeira humanidade, embora por natureza ambigua. Ela é feita de amor, de solidariedade, de empatia, de colaboração e da dimensão humano-espiritual que dá o devido valor aos bens materiais sem absolutizá-los, mas dá muito mais mais valor aos bens intangíveis como os acima citados. Os materiais os deixamos para trás, os humano-espirituais os levamos para além da morte,pois constituem nossa identidade definitiva.

 Quanto mais nossas relações para com a natureza forem amigáveis e entre nós  cooperativas, mais a Terra se vitaliza. A Terra revitalizada nos faz também saudáveis. Curamo-nos juntos e juntos celebramos a nossa convivência terrenal.

Leonardo Boff ecoteólogo, filoósofo e escrevu Opção Terra: a solução da Terra não cai do céu, Vozes 2009.

 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

QUEM MANDA NO BRASIL



 

Frei Betto

 

       Desde fevereiro de 2020, você governa o Brasil. Decide quem pode ir às ruas consumir, quais comércios devem abrir ou fechar, o ritmo da produção industrial, a política das exportações do agronegócio. 

       Você determina como e quando escolas e universidades devem voltar às aulas presenciais ou prolongar as virtuais. Calibra o sobe e desce da Bolsa de Valores e, sobretudo, comanda todo o sistema público e privado de saúde em nosso país.

       Você fez o PIB decrescer em 2020 e obrigou o governo federal a gastar bilhões de reais na importação de vacinas e insumos. Demitiu dois ministros da Saúde, ambos médicos, e nomeou um general de plantão que não conhecia o SUS e nada entende de medicina e logística. 

       Você é o nosso principal governante! Como adota uma política deliberadamente necrófila, conta com todo o apoio do capitão Bolsonaro. Este sabe que a Constituição e a atual conjuntura o impedem de fazer o que tanto gostaria: fuzilar 30 mil ou 300 mil opositores. O único recurso dele, no momento, é promover isso a conta-gotas ao liberar a importação e o comércio de armas e munições, e relaxar o controle de posse e porte. Você, no entanto, a cada dia suprime mais de mil vidas e já infectou mais de 10 milhões de brasileiros com a sua deletéria presença.

       Há, porém, uma contradição entre você e seu principal aliado. Todos nós que repelimos os dois gostaríamos de ver o Brasil livre de suas presenças. No seu caso, o único recurso é ficar em casa, decretar o lockdown, suspender todas as atividades por certo período. No caso de seu aliado, a solução é exatamente o inverso: ocupar as ruas e repetir os protestos massivos de junho de 2013. Ele insiste em criticar a vacinação em massa, o uso de máscara, o veto às aglomerações e as medidas restritivas.

     A verdade, Covid, é que quanto mais o seu poder de contaminar a população se multiplicar, mais as pessoas sensatas evitarão manifestações de rua. Por isso, seu maior aliado sugere placebos e evita qualquer iniciativa para cercear sua capacidade de infectar e matar. 

       Ele dá todo apoio ao seu poder de desmobilizar as pessoas, induzir milhões à depressão, separar famílias, estressar médicos e enfermeiros, produzir mais vítimas que leitos de hospitais e, assim, prosseguir na mortandade precedida pela terrível tortura do isolamento e da asfixia.

 

Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

   

Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org  Ali os encontrará  a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio. 

 

 

 

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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

OS PRIMEIROS ESCRITOS DE JOSÉ COMBLIN

 


Eduardo Hoornaert


Proponho-me a comentar aqui escritos menos conhecidos de José Comblin, principalmente os que ele elaborou ainda na Bélgica antes de viajar ao Brasil (1950-1958) ou nos primeiros anos do Brasil, quando ele ainda escreveu em francês (1958-1965). Penso em juntar também um comentário aos dois volumes de sua Teologia da Revolução, igualmente escritos em francês e publicados no início dos anos 1970. A intenção é de realçar a figura intelectual de Comblin, um aspecto talvez menos conhecido de sua personalidade.

Vamos aos seus primeiros escritos, elaborados em torno de sua Tese de Doutorado em Teologia na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, no início da década de 1950.

Bem jovem, Joseph Comblin (1923-2011, ainda não José) entra no seminário católico de Malinas, na Bélgica, e, se revelando bom nos estudos, é enviado à Universidade de Lovaina para estudar teologia.

Por que o estudante escolhe, para a difícil prova do Doutoramento em Teologia, trabalhar sobre o Apocalipse de São João? Curvado sobre o texto, no silêncio de seu quarto de estudos, lendo as primeiras palavras do Apocalipse: Desvelamento de Jesus Cristo, ele se sente atraído pela poderosa mística que emana do texto. Assim imagino. A mística que fez com que Mateus, em seu Evangelho, escevesse: nada que é velado deixará de ser desvelado, nada que é escondido ficará desconhecido. O que lhes digo na escuridão, repitam à luz do meio dia, o que se lhes sussurra na orelha, gritem em cima dos telhados (10, 26-27). Urge revelar Jesus Cristo o mais depressa possível, pois Jesus fica escondido por demasiado tempo. Há de se gritar em cima dos telhados o que se sussurra na orelha. Urge mostrar o que se deve mostrar, o mais depressa possível (Apoc. 1, 1). Nos textos do Novo Testamento se encontram nada menos de cem exortações acerca do que ‘deve’ acontecer, do que ‘deve’ ser anunciado: O Filho do Homem deve sofrer e morrer (Mt 8, 31), eu devo ocupar-me das coisas de meu Pai (Lc 2, 49), O Filho do Homem deve ser elevado da terra (Jo 3, 14). Tudo isso urgentemente, o mais depressa possível. Para João, o místico judeu que escreve setenta anos após a morte de Jesus, não há mais tempo a perder. Jesus Cristo tem de ser revelado logo:

Feliz quem lê e os que escutam

As palavras da profecia

E que guardam as coisas nelas expressas

Pois o momento, sim, urge (Apoc. 1, 3).

Como ressoam essas palavras na alma de um estudante, que cursa numa Universidade conhecida e estimada por procurar alcançar ‘ideias claras e precisas’ sobre o que vai escrito? Onde textos considerados obscuros e enigmáticos, permeados de imagens de difícil interpretação, costumam ser deixados de lado?

Aqui já temos uma primeira imagem do intelectual Joseph Comblin. Em meio a um ambiente intelectual impregnado de ‘cartesianismo’, ele se abre a um texto místico, cuja leitura postula, antes de tudo, o exercício de uma inteligência intuitiva, aquela inteligência que consiste em ver Deus nas coisas, como escreve Spinoza em sua ‘Ética’. Joseph não tropeça sobre imagens como a da luta entre a ‘Besta’ e os seguidores do ‘Cordeiro imolado’, do ‘Cavaleiro montado num cavalo branco’, do ‘Filho do homem’ a segurar sete estrelas na mão direita e uma espada afiada (que corta de dois lados) saindo da boca, etc. Ele não fica assustado com o turbilhão de imagens do Apocalipse, pois capta a inspiração geradora dessas imagens, dos símbolos, sugestões e evocações fortes e impactantes.

Penso que a opção do estudante Joseph Comblin, no sentido de escolher trabalhar em cima do Apocalipse, diz muito, não só sobre seu perfil intelectual, mas também sobre seu temperamento.  Ao longo de sua vida posterior, ele vai demonstrar que vem para ‘desvelar’, ‘revelar’, provocar, desafiar a inteligência de seus ouvintes, leitores e interlocutores.  

O estudante Joseph se sente atraído pelo visionário judeu João, que ‘descobre’ Jesus Cristo, retira o véu da incompreensão, por meio de uma compreensão intuitiva de sua figura. Sua poderosa prosa, ‘obra de furor e paz, sangue e luz’, não amedronta o estudante, que resolve fazer sua Tese de Doutoramento em Teologia em cima de uma leitura do penúltimo capítulo do Apocalipse, o capítulo 21, acrescido dos primeiros 5 versículos do capítulo 22, à qual  dá o título La Liturgie de la Nouvelle Jérusalem (Apoc 21,1-22,5). No referido capítulo surge a esplendorosa visão da Nova Jerusalém, finalmente vencedora da Babilônia, onde reina a ‘Besta’ com seus lacaios. A Nova Jerusalém desce do céu num fulgor de luz e de paz. O jovem teólogo capta por que João opõe Jerusalém a Babilônia. E, logo após a conclusão de seu Doutorado, ele resolve retrabalhar o texto, alargar o tema e abarcar uma leitura do Apocalipse inteiro. Assim sai à luz seu primeiro livro: Le Christ dans l’ Apocalypse (Bruxelles, Desclée, 1965).

O livro, editado 56 anos atrás, ainda hoje merece ser lido. Consta do acervo de livros que Comblin, alguns anos antes da morte, doou para a Biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Como sou feliz possuidor de um exemplar, dou aqui um breve comentário.

Não é à toa que Joseph retoma pacientemente a longa lista de comentários do texto, que cobrem dois mil anos (como você pode conferir por meio do verbete ‘Apocalipse’ no ‘Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs’, editado pela Vozes em 2002, pp. 126-127). Mas, enquanto muitos desses comentários, ao longo dos tempos, se atêm a estranhezas (o número 616; as sete trombetas e as sete taças, os quatro cavaleiros, a espada que corta de dois lados, os candelabros etc.), Comblin focaliza logo o cerne da questão: Babilônia e Jerusalém. A Babilônia, ‘a grande prostituta’ (19, 2), a ‘moradia dos demônios’ (18, 2), hospeda a Besta ‘que só abre a boca para proferir blasfêmias contra Deus’ (13, 6).Ela simboliza sucessivas dolorosas histórias, vividas pelo povo judeu, como o exílio babilônico do século IV aC, por exemplo. A história mais dolorosa se refere à corrupção própria Jerusalém, que decide, por meio de seu Sinédrio, crucificar Jesus. Eis o ponto fundamental, em torno do qual tudo gira. No momento em que Jerusalém condena Jesus, ela se torna cúmplice de Roma, a Babilônia. Mais: ao ‘matar o profeta de Deus’ (11, 8), Jerusalém vira uma nova Babilônia, domínio do Satã (11, 7-8) e executora dos profetas. Ao se alinhar com Roma, ela não é mais o ponto de convergência dos povos. Nasce uma Nova Jerusalém entre os cristãos, seguidores do mártir Jesus. Relacionando o drama de Jerusalém ao drama de Jesus, o Apocalipse projeta esse último num cenário mundial. Roma significa a mundialização da profecia de Jesus. Aqui vale a pena ler (para os que estão em condição!) a longa nota 2 das páginas 88-89 do livro que estou comentando, e que não cito aqui por falta de espaço.

A derrota política de Jerusalém no ano 70 dC (movimento dos zelotes) confirma a visão de João. A cidade histórica deixe de ser referência. Os cristãos fogem da cidade para Pella e aí se tornam o ‘resto espiritual de Sião’. Carregam consigo a Jerusalém espiritual. Como Jesus foi condenado em Jerusalém por Roma, os cristãos fogem de Jerusalém de Roma. A Nova Jerusalém é irredutível a Roma. No momento em que Roma reivindica a supremacia sobre o mundo, ela entra em conflito com Jesus (veja pp. 190-191). 

Embora seu primeiro livro seja um primor, Joseph não se dá por satisfeito, pois sabe que esse livro nunca será lido por um público não versado em teologia. Então resolve retrabalhar o tema de modo menos acadêmico, em forma de ensaio, deixando de lado o pesado aparelho bibliográfico e mesmo a referência ao Apocalipse. Assim aparece em 1959 um novo livro, intitulado La réssurrection de Jésus Christ. Essai (Paris, Éditions Universitaires, 1959) e logo traduzido em neerlandês Hij is verrezen. Essay (‘Ele ressuscitou. Ensaio’; s’ Gravenhage, Pax, 1963). O livro é bem acolhido, ganha um elogio do professor holandês Grossouw, na época uma referência no mundo teológico e pastoral de língua neerlandesa: ‘Comblin é legível por um leigo não especializado, mas não é superficial. Não procura sensação por teses ousadas. Ele é um verdadeiro ensaísta. Paira um ar de liberdade. O leitor se sente bem, pois o autor não se exibe conhecimentos e conduz o leitor pela mão, como um guia. Ele é um autor ‘profano’, ou seja, dialoga com o mundo profano. Critica a teologia medieval que não entende a ressurreição, pois vive encapsulada na cristandade e não tem perspectiva de futuro diferente, democrático e secular. Mostra-se a favor da secularização e da democracia’ (edição neerlandesa, pp. 9-11).

Esses elogios fazem pensar em algo que permeia toda obra teológica de Comblin: ele não está empenhado em provar que ‘entende do assunto’, mas quer dialogar com seu leitor, sua leitora. Escreve em tom ‘ensaístico’, não ‘dogmático’, e nisso acompanha diversos bons teólogos da época, como Michel de Certeau, que não se refugiam numa ‘especialidade’, mas transitam livre e competentemente por diversos campos de conhecimento. Teólogos que não têm medo de enfrentar os grandes temas do cristianismo, acima das controvérsias, não se perdem em minúcias, não apresentam erudição, não entram em discussões e controvérsias, não discutem pormenores, mas só tratam de dados primários e fundamentais. Comblin não se exibe, vai direto ao assunto e pressupõe, por exemplo, que seu leitor seja bastante inteligente para captar que, em seu livro ‘A ressurreição de Jesus Cristo’, por exemplo, ele se move em campo místico, não definidor nem doutrinador. O autor nada mais pretende que apresentar uma síntese, provocar uma conversa com o leitor e, ao mesmo tempo, instigar a reflexão.

Desde esses primeiros livros, ao comentar o Apocalipse e o Evangelho de João, escritos considerados difíceis pelos exegetas, ele revela a humildade e sinceridade de um grande intelectual. Não pretende dizer a última palavra, não se refugia atrás de seu título de ‘Doutor em Teologia’, não se exibe como exegeta, conversa com seu leitor, sua leitora, está interessado em fazer com que se reflita. Enquanto os exegetas têm medo de comentar o Apocalipse, dizendo que não dominam a complexa literatura apocalíptica judaica da época, Joseph avança e depura o que está ‘por trás das palavras’ desse texto em muitos pontos enigmático. Permanece ‘provisório’, ‘incompleto’, consciente da provisoriedade de qualquer interpretação de textos tão complexos como são os textos atribuídos a João Evangelista.

Acrescento aqui um dado importante. Joseph vê no Apocalipse a chave de compreensão do quarto Evangelho. Uma fértil intuição, embora não aceita por todos os especialistas. Comblin enxerga no Evangelho a mesma poderosa prosa que ele encontrou no Apocalipse. João é alguém que parece dizer, a cada momento: como foi possível aparecer no mundo uma figura humana como Jesus!  Ele eleva a figura de Jesus ao mais alto dos céus, ao mundo sublime de Deus, à própria convivência divina. O que atrai no texto de João é a mais viva emoção que transparece a cada momento: a Verdade, a Luz e a Glória alcançam nosso mundo na pessoa de Jesus de Nazaré! Uma obra de excepcional inteligência intuitiva. Embora provavelmente poucos episódios narrados por João tenham a ver com acontecimentos reais, ocorridos na vida de Jesus, eles (as conversas com Nicodemos e com a mulher samaritana, a ressurreição de Lázaro, etc.) captam maravilhosamente o espírito de Jesus e do primeiro cristianismo.

Hoje temos o ‘best seller’ ‘The fourth Gospel’ (O quarto Evangelho, Harper One, 2013), do exegeta e bispo norte-americano (da igreja episcopal) John Shelby Spong. Mas quando lemos esse livro, verificamos - não sem surpresa - que, no fundo, o Comblin de 1959 combina com o Spong de 2013. Claro, o primeiro não dispõe do instrumental de análise linguística do segundo (escreve numa antecedência de mais de 50 anos), mas é interessante verificar que ambos concordam no essencial: a obra de João Evangelista e a obra de um místico judeu do final do século I dC, dotado de grandes habilidades literárias, de uma inteligência intuitiva excepcional.

Gostaria, para terminar, de comentar a impressão que o teólogo francês Yves Congar teve dos primeiros trabalhos de Comblin, especificamente dos dois volumes da sua Théologie de la Paix (Principes, editado em Bruxelles, Éditions Universitaires, em 1960, e Applications, pela mesma editora, em 1963), que Joseph - por sinal - redigiu a pedido do Cardeal Léon Suenens, da Bélgica. Congar escreve que esses livros são um peu touffus (‘um pouco espessos’, ou seja, sobrecarregados de detalhes).

É verdade. Mas há como argumentar que esses detalhes e essas frequentes anotações ao pé das páginas revelam algo que, com os anos, desaparecerá dos livros de Comblin: a preocupação em fundamentar a teologia na história concreta dos homens. Ao longo de toda a sua produção intelectual, José aborda sempre seus temas teológicos por meio de considerações históricas, e isso exige entrar em pormenores, escrever longas páginas para apresentar temas que, para muitos, pertencem a um passado morto. Acontece que o passado não está morto, mas vive no presente. ‘Quem desconhece o passado está condenado a repeti-lo’, diz o ditado. Ao longo de sua vida de intelectual, Comblin se distingue de muitos de seus colegas teólogos por nunca omitir a dimensão histórica do estudo teológico de não ‘pular’ em cima da história e evocar simplesmente a vida dos primeiros cristãos para apresentar experiências de hoje (na apresentação das Comunidades Eclesiais de Base [CEBs], por exemplo). José nunca passa diretamente da Bíblia ou dos primeiros tempos cristãos para a situação atual. Sempre considera a ‘tradição’, ou seja, a mediação dos dois mil anos de cristianismo. Assim ele não fala em CEBs sem falar da paróquia. Convencido que ‘o passado vive em nós’, não é nunca página virada. Negligenciado, pode se vingar, de modo inesperado.

Concluindo. Nos primeiros livros de Joseph Comblin, ainda dos anos 1950, que acabei de comentar acima, encontramos um estudante em teologia que consegue ver claro num turbilhão de imagens e símbolos, muitos deles enigmáticos para nós hoje. Um estudante capaz de superar a condição de ‘inteligência confusa’ e dizer as coisas com clareza meridiana. Uma clareza que - à primeira vista - se apresenta como ousadia, mas que na realidade é uma clarificação do pensamento (embora a muitos se apresente como provocação). Nesse sentido, o ‘Desvelamento (a apocalipse) de Jesus’ é o desvelamento da história do mundo, simbolizada pela transformação da Antiga Jerusalém, vergonhosamente humilhada pela Babilônia e que acabou se submetendo ao poder da ‘Besta’, em uma Nova Jerusalém, espiritual, que desce do céu e liberta os habitantes dos poderes imperiais deste mundo. Encontramos aqui outra poderosa imagem metafórica, a do Reino de Deus, que subjaz às falas de Jesus de Nazaré.

Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

 

 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

FRATERNIDADE E AMOR: ESPÍRITO E LEI

 


Marcelo Barros

 

Quem acompanha as redes sociais sabe que nas últimas semanas, tem se intensificado o clima de tensão e mesmo de conflitos na interpretação da fé e do modo de compreender a missão cristã. Mais concretamente, o alvo escolhido por católicos tradicionalistas para  a sua guerra sagrada passou a ser a 5ª Campanha da Fraternidade Ecumênica, aberta pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) na quarta-feira, 17 de fevereiro, início da Quaresma.

É surpreendente o fato desta ser a quinta campanha da fraternidade ecumênica e somente agora se manifestar todo este ódio e rejeição. Antes de mais nada, isso revela que, neste início de 2021, o ambiente social e eclesial no Brasil é mais duro, fechado e polarizado em posturas extremas do que aquele que vivíamos em 2000, quando fizemos a primeira campanha ecumênica e as outras que se seguiram em 2005, 2010 e 2016.

É claro que, desde o começo deste caminho, havia tensões e divisões nas Igrejas. Sempre houve. No entanto, em nossos dias, se exacerbou o espírito de cruzada em defesa da Cristandade. E, mais do que antes, as redes virtuais oferecem excelente palco para o destempero de quem busca vítimas a queimar na fogueira do seu dogmatismo e moralismo.

Os acusadores da Campanha da Fraternidade Ecumênica não são tão sinceros a ponto de afirmar que não se interessam por Fraternidade aberta a todos e que, para eles, o diálogo nada tem a ver com a fé e a espiritualidade. Também pensam que o combate à heresia que veem sempre nos outros é mais importante do que a unidade dos cristãos, pela qual Jesus orou na véspera de sua paixão. Defendem valores tradicionalistas e usam como arma de guerra a fé interpretada como dogma contra os inimigos. Então, tinham de encontrar no texto da CFE 2021 algum pretexto para a sua luta. E focaram o seu combate em um número do texto-base da CFE 2021 (o 68). Neste parágrafo, eles acham que o texto-base defende o que chamam de “ideologia de gêneros”. Faz menção a gays, travestis e transexuais como vítimas da violência nossa de cada dia.

  A primeira impressão a qualquer observador é que a polêmica veio um pouco tarde demais. O texto já está distribuído por todo o país e a Campanha está em pleno andamento. Por isso, a própria CNBB, alguns bispos e um cardeal vieram a público tentando apagar o fogo. Infelizmente, quase todas essas intervenções se revelaram ambíguas e pouco felizes. De algum modo, todas essas mensagens parecem dizer aos oponentes: “de fato, o que vocês estão reclamando é justo e o texto não corresponde ao pensamento católico, mas como tínhamos nos comprometido em fazer mais uma campanha ecumênica, não conseguimos evitar isso. Desculpem...”.

 Em nenhuma delas aparece a mínima postura de solidariedade ao CONIC. Ao contrário, todas dão a impressão de que os bispos pedem desculpas ao Centro Dom Bosco pela obrigação de serem ecumênicos e terem sido pouco cuidadosos ao não censurar previamente o texto-base da CFE. Explicam que o texto é ecumênico, como se isso fosse sua limitação ou defeito. Se algum/a leitor/a pensar que, pelo fato de ser ecumênico o texto é, no plano mais profundo católico, isso é universal, os bispos vêm e corrigem: Não. E fazem questão de dizer que, ao menos no que diz respeito ao ensinamento moral, o pensamento católico não é ecumênico. Lamentável.

Para quem lê o evangelho, sabe que Jesus teve de enfrentar muitas polêmicas como essa. Basta ler o evangelho de Marcos ou algumas páginas do 4º evangelho para acompanhar os dolorosos debates de Jesus com doutores da lei, fariseus e religiosos do templo. O ataque lançado contra Jesus era sempre o de que ele parecia não estar de acordo com a lei e ser um risco para a religião hegemônica. E Jesus que, conforme Mateus, fazia questão de dizer “não ter vindo abolir a lei e sim levá-la à sua plenitude”(Mt 5, 17), insistia que a lei, o sábado e as instituições religiosas deveriam servir à vida e ser em função do ser humano e não o contrário. Em seu tempo, Paulo conclui que a letra mata e só o Espírito faz viver (2 Cor 3, 6).

Para quem dedica a sua vida ao que o saudoso irmão Roger Schutz, fundador e primeiro prior de Taizé, denominava “a paixão pela unidade do Corpo de Cristo”, isso tudo é extremamente doloroso. Ensina-nos muitas coisas. Talvez a primeira é que documentos, textos e estudos são importantes, mas não transformam o coração sectário de ninguém. Só a convivência e o amor são capazes dessa conversão pascal.

O tema desta CFE 2021 é tirada da carta aos efésios. Ali no capítulo 2, a carta alude ao antigo muro que, no templo de Jerusalém dividia o átrio dos gentios (pagãos) do átrio dos judeus. E o texto diz que, pela sua morte na cruz, Jesus aboliu este muro de inimizade que separava as pessoas em religiões diferentes. “De dois povos, ele fez um só povo, abolindo a Lei, com seus mandamentos e exigências  (Ef 2, 15). Infelizmente, 21 séculos depois, uma Campanha da Fraternidade Ecumênica que nem é inter-religiosa; é proposta a cristãos, todos batizados no mesmo Cristo, receba tanta incompreensão. Religiosos católicos, com cumplicidade até de alguns pastores, parecem decididos a reedificar de novo o muro de separação. É preciso que os pastores, preocupados em salvar o seu poder e sua legitimidade, não valorizem mais a lei do que o amor pelo qual Jesus deu a vida.  E a todos e todas, chamados/as a testemunhar que Deus é amor e Jesus morreu “para reunir na unidade os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo” (Jo 11, 52), não desanimemos e retomemos à construção da unidade a partir de baixo e não das cúpulas. A partir do amor e não apenas das leis. Ouvir o outro e conviver com o diferente gera conhecimento que exorciza preconceito e gera admiração, respeito e amor.

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

FRATERNIDADE: A DIFÍCIL CONSTRUÇÃO ECUMÊNICA

 



     Maria Clara Lucchetti Bingemer

 

            A palavra ecumenismo encontra suas raízes na cultura grega e significa: mundo habitado. O conceito não pretendia avançar em questões demográficas ou estatísticas, mas carregava o belo sentido de povo civilizado, de cultura aberta em termos não apenas geográficos como também civilizacionais. O Cristianismo nascente adotou a ideia e o conceito, fazendo dos mesmos um ideal e uma missão: fazer habitável a obra de Deus, que é toda a criação, promovendo a unidade e a concórdia. 

            Desde muito cedo, a Igreja percebeu não apenas a necessidade dessa unidade como também o enorme desafio que significava construí-la a partir e por meio da diversidade. Os Concílios da Antiguidade procuraram superar propostas e doutrinas que dividiam a Igreja, e chegar a consensos que pudessem uni-la em termos de conteúdos da fé, para que fossem aceitos e praticados por todos os cristãos. 

            A história avançou e houve esforços de unidade, mas também ataques.  Houve guerras de religião em que se matava em nome de Deus e empreendimento ideológicos e políticos unilaterais, nos quais tristemente cristãos chegaram a considerar prestar um serviço a Deus eliminando os que professavam religiões diferentes. E houve um momento em que os próprios cristãos se dividiram, permanecendo em campos opostos e considerando hereges e apóstatas os que entendiam e viviam a fé cristã em outros termos. 

            A partir dessa divisão entre cristãos surgiu o movimento ecumênico moderno, que fomentou o diálogo e a cooperação entre os cristãos, para fazer frente à evangelização em um mundo sempre mais secularizado e mais plural. O ecumenismo tornou-se uma iniciativa entre diversas denominações cristãs, na busca do diálogo e da unidade, de superar divergências e divisões históricas, culturais e mesmo doutrinais.  Para isso, houve muito trabalho para aceitação da diversidade entre as igrejas já que todas buscam encontrar em Cristo seu ponto de unidade.  Professam um só Credo, recebem um só Batismo, e veem cada vez com maior clareza que estar divididos é um escândalo e um contratestemunho. 

            Por parte da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II é um marco por assumir para dentro do magistério oficial da Igreja Católica Romana o desejo e o compromisso de aproximar-se sempre mais dos irmãos que adoram o mesmo Deus e reconhecem como Senhor o mesmo Cristo.  Porém, mais longe ainda foi o Concílio, acompanhando  um movimento que já se fazia sentir no campo religioso como um todo e na sociedade.  Compreendeu que a caminhada ecumênica implica passar mesmo as fronteiras do cristianismo como tal e abraçar as outras religiões, que nomeiam Deus de forma diferente e organizam sua fé de outro modo. 

            O ecumenismo, portanto, nestas quase seis décadas que nos separam do Concílio Vaticano II, se alarga sempre mais, convertendo-se progressivamente em um macro ecumenismo.  Com isso nada mais faz do que seguir fielmente o que o texto do documento mais importante do evento conciliar, a Constituição Gaudium et Spes diz: a Igreja quer ser perita em humanidade e não deseja que nada de humano lhe seja estranho.  Portanto, para fazer um mundo habitado pelos filhos de Deus é preciso ampliar o horizonte além mesmo das fronteiras institucionais e religiosas e ir ao ser humano. 

            A Campanha da Fraternidade, lançada todos os anos pela CNBB durante o período da Quaresma, traz este ano uma bela novidade.  Não apenas seu tema é o ecumenismo pensado amplamente, em termos de uma inclusão universal que conduza toda a humanidade à paz verdadeira cuja fonte é Cristo.  Mas ela é ecumênica desde as origens.  Seu texto base foi pensado e preparado por uma equipe ecumênica, sob a responsabilidade do Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs).         

            O sopro ecumênico, que busca a unidade, o diálogo e o amor, se fazem sentir ao longo de todo o texto e de suas propostas que soam como convite amoroso aos fiéis cristãos que desejam deixar para trás a divisão e construir a unidade.  Uma unidade plena, universal, que só pode dar-se através da integração das diferenças, enriquecendo-se do que todos e cada um podem trazer. 

            A isso aspira a Campanha da Fraternidade.  Só pode haver fraternidade se for universal.  E não à toa a palavra “católico” significa universal.  A CNBB testemunha luminosamente seu desejo de ser plenamente universal - ou seja, católica – abrindo sua campanha, que acontece no momento de mais densa convergência de fé e testemunho, a todos os irmãos que comungam da fé em Jesus Cristo. 

            A CF 2021 em tempos de tanta divisão dá uma decisiva contribuição ao diálogo e uma real chance à paz.  O lema da Campanha, tomado da epístola aos Efésios, diz: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade”. Superar as divisões e buscar a unidade com coragem e alegria, eis a conversão pedida a todo discípulo e discípula de Jesus Cristo nesta Quaresma. 

  A   teóloga é autora de “Santidade:chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre outros livros.

 

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