Frei Betto
É
no silêncio que posso descobrir um Outro que não sou eu e, no entanto, como
salientou Tomás de Aquino, funda a minha verdadeira identidade.
Uma riqueza inestimável que estamos perdendo é a
do silêncio. Nossa sociedade é ruidosa nos mínimos detalhes. Malgrado o avanço
da tecnologia, ainda não se inventaram liquidificadores e britadeiras
silenciosos. Há muitas “falas” ao nosso redor. A publicidade de rua esgarça o
nosso espírito. Daí ser um deleite para a alma caminhar por uma cidade
desprovida de outdoors, como Praga. Como os olhos ficam descansados quando
podem apreciar a natureza e a estética dos monumentos arquitetônicos! Como dá
prazer fitar o mar que, como dizia Hélio Pellegrino, é o pão do espírito!
Há quem tema o silêncio e, ao entrar em casa,
trata de ligar todos os aparelhos: telefone, TV, rádio etc. São pessoas
incapazes de escutar o silêncio interior. Sentem dificuldade em “amar o próximo
como a si mesmo”. Quem não se gosta tem resistência a gostar dos outros. E
desconta neles o mal-estar íntimo. É no silêncio que posso descobrir um Outro
que não sou eu e, no entanto, como salientou Tomás de Aquino, funda a minha
verdadeira identidade.
A noivos que se preparam para o casamento sempre
pergunto: “Vocês são capazes de ficar juntos, em silêncio, sem saudades de uma
tesoura de jardineiro?” Se o silêncio entre o casal pesa, suscita desconfianças
e indagações tipo “o que você está pensando?” ou “por que está tão calado?”, é
sinal de que a relação não vai bem. Meus pais, aos 60 anos de casados, passavam
horas, lado a lado, em silêncio. Ela bordando, ele lendo, na suavidade de quem
aprendeu que a profundidade do sentimento dispensa palavras. Como a oração que
agrada a Deus.
No litoral capixaba, saí de madrugada num barco
com três pescadores. O que mais me impressionou foi o silêncio entre eles, como
se temessem precipitar o despertar do dia. Mesmo na penumbra, um adivinhava a
vontade e o gesto do outro.
Conheço o silêncio dos monges, embora os
conventos atuais, encravados nas cidades, sejam em geral ruidosos. Nas exceções
à regra, os religiosos comem em silêncio, caminham pelo claustro sem que
ninguém os interrompa, ficam horas na capela deixando-se inebriar pelo Mistério.
Hoje, muitos praticam meditação em busca de silêncio. Querem mergulhar no
próprio poço e beber da fonte de água viva.
As novas gerações já não aprendem a fechar os
olhos para ver melhor. Sabem pouco das grandes tradições espirituais; curvam-se
sem reverência; ajoelham-se sem orar; meditam sem contemplar; ignoram que a
solidão é um exercício de solidariedade. Não escutam o Mistério, nem auscultam
o Invisível. São cada vez mais raros os jovens que fazem a experiência de
deixar Deus falar neles, assim como o amado desfruta da presença invisível e,
no entanto, envolvente, da amada.
O silêncio é a matéria-prima do amor, ensinava
José Carlos de Oliveira, um dos melhores cronistas da história deste país. Mas
quem haverá de se lembrar dele se nem somos capazes de cultivar a vida
interior?
Frei Betto é escritor e autor do romance ”Aldeia do silêncio” (Rocco), entre
outros livros.
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