Marcelo Barros
Pela primeira
vez na história, neste 2021 ainda tão excepcional, vivemos esta quarta-feira de
cinzas sem ter tido Carnaval. Ainda há católicos que pensam: a quarta-feira de
cinzas e a Quaresma existem para se pedir perdão pelos pecados cometidos no
Carnaval. Seria como as cinzas da
quarta-feira fossem as fantasias queimadas do Carnaval apenas concluído.
É verdade que,
em tempos medievais, os dias de folia surgiram como a última liberdade antes da
Quaresma. No entanto, no plano mais profundo, a Quaresma nada tem a ver com a
negação das alegrias da vida. Já na Idade Média, Santa Mectildes, monja
beneditina, afirmava que Deus é como uma criança que gosta de brincar e nos
quer como companheiros/as para criar alegria. Antes dela, no século IV, João
Crisóstomo, bispo e pai da Igreja, ensinava: “Mesmo em meio aos sofrimentos do dia a dia, o Cristo ressuscitado vem
fazer da nossa vida, uma festa contínua”.
Assim, na
antiguidade, a Quaresma surgiu, não para organizar a rotina de quem já peca
pensando em depois pedir perdão e sim como tempo no qual se curte a alegria de
preparar a celebração anual da Páscoa, sacramento da nossa libertação. Nesta
preparação da festa pascal, é fundamental responder ao chamado de Jesus à
conversão (metanoia). Ela significa mudança
dos critérios e padrões que regem nosso estilo de vida. Isso nada tem a ver com
a figura de um Deus mesquinho, recalcado sexualmente, como se fosse um
Coronavirus divino, que exige isolamento social e não permite abraços, beijos e
contatos corporais.
A conversão proposta
por Jesus pede transformação na nossa
forma de olhar o outro. Ensina a nos relacionar com as pessoas e comunidades,
de qualquer raça, cultura e religião. Faz-nos assumir o cuidado com todos os
seres vivos e com o universo, sacramento da presença divina.
Neste ano, no
Brasil, temos a possibilidade de responder juntos a este apelo pascal do
Espírito, através da 5a Campanha da Fraternidade Ecumênica, como sempre,
proposta e coordenada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC). Ela
tem como lema: Fraternidade e Diálogo:
Compromisso de Amor. O tema “Cristo é
nossa Paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2, 14).
Se as Igrejas
cristãs obedecessem à palavra da carta do apóstolo aos efésios e compreendessem
a missão de Jesus de forma universal, em relação ao mundo e não apenas à
religião, nem precisariam dessa Campanha da Fraternidade. Elas mesmas seriam
permanentemente e de modo profundo isso que essa campanha nos traz como tema e
como lema. No entanto, alguns grupos eclesiais continuam se comportando como
seitas. O primeiro sinal disso é chamar de seitas a outras Igrejas. Por isso, a
CFE 2021 se faz necessária e mesmo urgente. Ela faz com que esta celebração da
Páscoa nos confirme que a atual separação das Igrejas cristãs chega a ser uma
dor muito grande para o Cristo ressuscitado. A divisão entre Igrejas parece
tornar inútil tudo o que Jesus, viveu e realizou, já que “ele morreu para reunir na unidade os filhos e filhas de Deus dispersos
pelo mundo” (Jo 11, 52).
Em seu tema, a
CFE 2021 repete: “Cristo é a nossa Paz:
do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2. 14). Poderia ter continuado:
“Como as Igrejas parecem ter desfeito o que Jesus fez e terem reconstruído o
muro de divisão que o próprio Cristo tinha derrubado (Ef 2, 13), esta Páscoa é
ocasião para recompor esta diversidade reconciliada que o Cristo tanto deseja.
Concretamente,
toda Campanha da Fraternidade propõe ações de solidariedade que expressem e
concretizem o apelo à conversão que acolhemos. Sem dúvida, todos nós somos
chamados, em nome da fé e como caminho pascal, a apoiar e fortalecer os grupos,
entidades e organismos que buscam politicamente uma frente ampla pela
democracia e em defesa dos direitos dos pobres. Precisamos nos posicionar mais
efetivamente do lado de profetas como Júlio Lancelotti e tantos outros/as, na
defesa das pessoas em situação de rua. Precisamos acolher e valorizar a
profecia da solidariedade manifestada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra (MST), durante este longo tempo de pandemia, ao partilhar toneladas de
alimento com famílias em situação de insegurança alimentar. Assim, poderíamos
elencar dezenas de outras ações, nas quais as Igrejas cristãs devem se mostrar
verdadeiramente o que o papa Francisco chama “Igreja em saída”.
No entanto, no
mais cotidiano da vida, o primeiro compromisso ao qual esta Campanha da
Fraternidade Ecumênica nos chama é passar da incomunicabilidade e da
indiferença social à espiritualidade do diálogo como mística pascal. No tempo
dos evangelhos, a incomunicabilidade era considerada sinal de que a pessoa era
dominada por uma energia negativa. O surdo-mudo era tido como endemoniado. E
Jesus expulsava esse espírito impuro, mesmo de alguém que se manifestasse com
esta energia, mesmo no lugar mais sagrado, como era a sinagoga. Hoje,
infelizmente, não são apenas pessoas. São grupos eclesiásticos e mesmo alguns
ligados ao clero.
Essa CFE 2021
pode ser excelente ritual de exorcismo laical e traduzido na cultura
contemporânea. Em seu idioma, Jesus dizia: Effata,
que quer dizer: Abre-te. E os ouvidos
dos surdos se abriam à escuta e a língua dos mudos se soltava. Hoje, há irmãos
e irmãs na fé que nos olham como traidores, porque nos posicionamos contra a
discriminação social, a marginalização da mulher, a homofobia e outras
expressões de uma sociedade injusta. A eles e elas, podemos dizer também em
nome de Jesus: Effata! Abre-te ao diálogo e testemunha que Deus é Amor
Incondicional.
Quanto a nós
que cremos no Amor, como propunha Gandhi, comecemos por nós mesmos isso que
propomos ao mundo.
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57
livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos
dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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