Kinno
Cerqueira [1]
O
título deste texto faz lembrar alguns tópicos presentes em declarações
doutrinárias e manuais de teologia que versam sobre “a comunicação da Palavra
de Deus” ou sua “Revelação”. As diversas abordagens desse tema, das mais
fundamentalistas às mais dialógicas, insistem num ponto comum que, em linhas
gerais, poderia ser sintetizado assim: a Bíblia é o testemunho privilegiado (e
canônico) da revelação histórica que Deus fez de si e de sua vontade para a humanidade.
E, a despeito de cada tradição teológica conferir um significado singular a
essa proposição, permanece o consenso segundo o qual a leitura da Bíblia revela
a salvífica vontade de Deus para humanidade e a missão que as igrejas devem
assumir como resposta de fé a essa Revelação – como textos-prova, costuma-se
citar 2 Tm 3,16-17 e 2 Pe 1,21.
Que
um dos eixos de tal concepção sobre a Bíblia seja o supremacismo ideológico das
igrejas cristãs, parece não haver dúvidas honestas. Todavia, a despeito da urgente
exigência ética por uma apresentação de aportes teóricos que ajudem a desconstruir
essa ideologia supremacista cristã, talvez convenha proceder a um recuo
reflexivo que permita levantar uma pergunta de primeira ordem: ainda que se
conceba a Bíblia como testemunho privilegiado (e canônico) da Revelação de
Deus, sua leitura equivaleria a uma escuta dessa Revelação?
Estudos
que se interrogam sobre o aparentemente simples ato de ler revelam as
inconsistências de ideias conforme as quais o sujeito que lê poderia escutar
limpidamente a intenção do autor do texto e/ou descobrir ad litteram (ao
pé da letra) o sentido supostamente contido no texto bíblico. Paulatinamente,
chega-se ao consenso de que toda leitura é uma interpretação e toda
interpretação, um processo de significação operado num complexo universo de
referências à semelhança de um jogo de significados que se interpenetram e
intersignificam-se mutuamente. Nesse jogo de significados, a intenção de quem
compôs o texto bíblico costuma ser inacessível – a rigor, a intenção do autor
morre com ele – e a evocação de um sentido do qual o texto bíblico seria fiel
portador soaria estranhamente ingênua. A quem ou a quais grupos competiria a
prerrogativa de averiguar e atestar a intenção de um texto bíblico?
A
Bíblia em si e as experiências de leitura bíblica comunitária dão fartos
exemplos da impossibilidade de ler o texto bíblico sob o parâmetro da intenção
do autor e da inexistência de um sentido textual fixo e imutável.
No
livro do profeta Amós, mencionam-se duas interpretações divergentes sobre o
tema da eleição/escolha de Israel por Deus e, no Evangelho segundo Marcos, duas
interpretações igualmente divergentes sobre o significado do mandamento do
descanso sabático aparecem lado a lado: no primeiro caso, enquanto a
interpretação hegemônica compreendia a eleição como garantia das bênçãos de Deus
sobre a vida nacional, Amós a interpretava como exigência divina a que Israel
assumisse uma postura ética assentada na justiça (Am 3,1-2); no segundo caso,
se os fariseus interpretavam o mandamento do sábado (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15) como
uma regra prescritiva de cunho ritualístico, Jesus o interpretava a partir da
vida concreta do ser humano e com vistas a libertá-lo da tirania do tempo
regido pela frenética lógica do acúmulo (Mc 2,23-28).
Nas
experiências de leitura bíblica comunitária, pode ocorrer algo parecido:
enquanto comunidades conservadoras veem a Bíblia como uma bola de cristal por
meio da qual buscam conhecer como o mundo veio a existir e como chegará a seu
fim e leem-na como um código de moral sexual, comunidades mais comprometidas
com a fraternidade e a transformação social concebem a Bíblia como escola de
liberdade e inspiração para recriar o mundo sobre as bases da justiça com
vistas a evitar a catástrofe global prenunciada em diversos comunicados da
comunidade científica.
Seriam
necessários mais exemplos para notar-se que a intenção do autor e o suposto
sentido presente no texto bíblico não determinam a interpretação enquanto
significação ou construção de sentido? Ora, se o ato de ler não equivale a
escutar a intenção do autor do texto nem a descobrir o sentido hipoteticamente
contido no texto – ambos, a intenção do autor e o sentido contido no texto, comumente
compreendidos como depositários-transmissores da Revelação –, o que se revela
quando se lê o texto bíblico?
O
ato de ler é um processo de “significação” ou de “construção de sentido”. Nesse
processo, o leitor, longe de qualquer passividade receptiva perante o texto,
está inelutavelmente implicado como sujeito-dirigente de significação e de
construção de sentido. E, como sujeito-dirigente, o leitor opera sob o impulso
de tudo quanto o constitui e o habita consciente e inconscientemente, ou seja,
sua visão de mundo e suas intenções previamente elaboradas, sua estrutura
psíquica e seus desejos mais sub-reptícios determinam o sentido que ele confere
às palavras, narrativas e discursos que compõem o texto bíblico.
Não
se pense, com isso, que o leitor seria a fonte única de sentido e que o texto,
de maneira inversa ao que se costuma propugnar, não determinaria em nada a
construção de sentido. De igual modo, não se intente lograr uma postura
conciliadora, como se se pudesse conceber texto e leitor pari passu (em
igual passo) na construção de sentido – isso seria uma negação do que se
observa em condições reais de leitura. O que se pode considerar é que o texto,
apesar de suas provocativas singularidades, nunca está em condições de competir
com o leitor, que preenche os silêncios do texto com a voz de seu desejo e
interdita as vozes do texto que lhe são inaceitáveis.
Com
isso, não se quer dizer que o ato de ler seja uma sabotagem ou manipulação
inescrupulosa de sentidos nem se pretende emitir um juízo sobre essa questão
nem apresentar uma saída daquilo de que não se precisa nem se pode sair. A
leitura é isso e há razões para dizer que o quanto antes se tomar
consciência da complexidade do ato de ler, melhor.
Uma
das principais implicações dessa tomada de consciência é a possibilidade de repropor
o que se denomina de “revelação bíblica”. Esta não pode mais ser considerada
como uma Palavra de Deus decalcada das intenções dos autores bíblicos ou
encontrada mediante uma meticulosa penetração nos textos bíblicos em busca de
sentidos supostamente ali escondidos. Diferentemente disso, a revelação bíblica
é revelação do leitor, quer dizer, no ato da construção de sentido, o leitor
revela, a um só tempo, um fragmento de texto bíblico e uma porção descomunal do
que o constitui e de sua própria postura existencial. Noutras palavras:
revelação bíblica é revelação do leitor.
[1]
Kinno
Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos
Bíblicos) na área de estudos bíblicos.
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