Por Maria
Clara Bingemer
O filme é sublime e belo. Como há muito não via nas telas da sétima
arte. Direção, produção, fotografia, trilha sonora, tudo é de uma beleza
que enleva, impressiona, a ponto de quase tirar o fôlego. O ator principal, que
rouba a cena, transformando todo o resto do elenco em coadjuvantes, atua com
maestria e transmite emoção e admiração, com charme, na medida certa e domínio
perfeito da arte da representação e do estar em cena.
Em suma, se fosse apenas isso, já seria muito. Bastante. Mas não é só
isso. Há mais, muito mais! Talvez o trunfo maior de “A grande
beleza”, dirigida com grande talento por Paolo Sorrentino, é ter também uma
temática que vai direto ao nosso coração pós-moderno e perdido no vazio dos
dias que se escoam e nos quais muitas vezes não encontramos sentido.
O personagem é um escritor decadente, que faz inevitavelmente recordar o
jornalista Marcello Rubini de “La dolce vita”, vivido pelo inesquecível
Marcello Mastroianni. Jep Gambardella, representado pelo excelente Toni
Servillo, é o escritor de um só livro que nunca mais conseguiu encontrar
inspiração em meio ao vazio da mundanidade em que vive. Quando o filme começa,
expressa o desejo de poder que o tomava quando chegou a Roma: não apenas
tornar-se um mundano, mas o rei dos mundanos. Não apenas ser o sucesso
das festas, mas ter poder de fazê-las fracassar.
Em um intrigante jogo invertido de poderes, a mundanidade que o escritor “bon
vivant” queria controlar, dominar e metabolizar em sua pessoa, volta-se contra
ele e começa a devorar-lhe a inspiração para escrever, a paz interior, a
capacidade de amar e a alegria de viver. Incapaz de encontrar o tema e a
inspiração para escrever, Jep Gambardella vive de festa em festa, onde ninguém
se olha nem se ama e onde é praticamente impossível ter uma conversa sincera e
profunda com qualquer pessoa.
As situações de irrealidade fragmentada da pós-modernidade decadente na Roma de
Berlusconi carecem totalmente de sentido e geram em quem não perdeu ainda
totalmente a consciência nem a capacidade de desejar um vazio profundo, oco e
atemorizante, que pode terminar no suicídio, como o do jovem artista rico; na
overdose da stripper; no sucesso literário “fake” da senhora rica que pretende
escrever literatura engajada levando uma vida luxuosa; como o de quase todos
que cercam um Jep Gambardella perplexo e algo atemorizado.
O ambiente em que se desenrola sua vida, que não consegue chegar ao porto de um
novo livro que clama para ser escrito, é líquido, daquela liquefação com a qual
o sociólogo polonês Zygmunt Bauman descreve o mundo contemporâneo. Nenhum
terreno parece firme para os pés e toda beleza tem ar de irreal e enganosa,
gerando insegurança e carência de sentido.
Em meio a isso, uma frase dita pelo protagonista tilinta como um sinal de
alerta para ele e para o espectador: “Busco a grande beleza”. Todo o
filme, na verdade, é a narrativa dessa busca, que já dura mais de quarenta anos
e ainda está em curso. Jep Gambardella é um escritor que um dia
vislumbrou essa beleza, talvez no amor de sua juventude, que aparece mais de
uma vez em duas tomadas de cenas luminosas do cineasta Sorrentino. Ele hoje
vive ainda das “rendas” deste único livro de sucesso de quase meio século de
idade e sentindo-se solitário e perdido.
Não deixa de ser instigante o fato de o personagem se dizer em busca da grande
beleza quando parece dela cercado por todos os lados na deslumbrante Roma que a
câmera de Paolo Sorrentino faz aparecer ainda mais luminosamente esplendorosa.
Certamente Jep Gambardella não tem as lentes adequadas para ver essa beleza que
se desdobra luxuosamente à sua frente, anestesiado pela insossa opacidade da
vida que se passa de noite, entre uma festa e outra, onde o que conta é
aparecer, seja qual for o expediente que para isso se utiliza, e o único
resultado é o tédio infinito, a desesperada sensação da inutilidade do viver, a
falta de sentido e de objetivos suficientes para preencher os vazios
existenciais prenhes de nulidade.
Há alguns lampejos de encontro dessa grande beleza na retina de Gambardella: o
amor que sente pela stripper que acaba morrendo ao seu lado; o alumbramento da
sua juventude no rosto e no corpo da primeira amada de cuja morte toma
conhecimento no começo do filme; o encontro com Suor Maria, a freira velha e
desdentada que com um leve sopro provoca a revoada dos cisnes que pousaram no
terraço e sobe de joelhos, com suas fracas forças, a Scala Santa.
A meta da vida de Gambardella é também a nossa, a de todos: buscar a grande
beleza. Toda uma vida não alcança para encontrá-la. E uma vez
vislumbrada, há que seguir buscando-a, desenvolvendo a virtude da atenção, pois
certamente ela se revelará onde menos pensamos poder encontrá-la.
Maria Clara Bingemer,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A
teóloga é autora de “O mistério e o mundo – paixão por
Deus em tempo de descrença” (Editora Rocco).
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