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domingo, 29 de abril de 2012

FELICIDADE NÃO SE COMPRA



por Marcelo Barros






No Brasil, é o título de um bom filme de Frank Capra, produzido em 1946, com James Stewart e um elenco de famosos da Hollywood daquela época. De fato, felicidade não se compra e não pode ser medida por qualquer instrumento de precisão científica. Apesar disso, no Butão, país da Ásia que fica entre a China, a Índia e o Nepal, o rei instituiu um “índice de felicidade interna” para saber se os seus súditos eram felizes.

A notícia se espalhou. Desde os anos 90, a ONU tem consciência de que não basta o índice do produto interno bruto (PIB) para detectar que tudo está bem. Até aqui usa o chamado Índice do Desenvolvimento Humano (IDH), mais amplo do que um cálculo apenas da situação econômica. Agora, há indícios de que passe a olhar e buscar esses sinais pelos quais se vê que uma sociedade é mais ou menos feliz.

No Brasil, a Fundação Getúlio Vargas decidiu que passará a calcular o índice de Felicidade Interna Bruta, algo bem mais amplo e profundo do que os elementos econômicos. Esses continuarão importantes, mas ao lado dos fatores ambientais, socioculturais e artísticos (Cf. O Estado de S. Paulo, 13/04/2012). Ainda não é claro o que significa “felicidade interna bruta de um povo”, nem como se fará esse cálculo.  O que até aqui os analistas perceberam é que o fator econômico é importante, no sentido de assegurar a satisfação de necessidades básicas de cada pessoa e do povo, mas não é o elemento mais importante. É fundamental ver se a renda é distribuída de forma mais igualitária ou se se mantém altamente concentrada. Países de melhor distribuição de renda, onde ninguém é riquíssimo e uma maioria vive na miséria (esses países existem, inclusive no nosso continente, por exemplo, Costa Rica e Cuba apresentam índices de maior igualdade, enquanto Haiti e Brasil são famosos em todo o mundo pelos piores índices de desigualdade). Povos que têm garantido o direito universal à alimentação, saúde e habitação também apresentam menos violência interna e melhores sinais de respeito aos direitos individuais. A democratização do acesso à educação, em todos os níveis, é fator importante no convívio social. As pesquisas também revelam que os povos que se deixam mais contaminar pelo individualismo (cada um por si) tendem a ser menos felizes e as sociedades mais comunitárias e gregárias expressam mais alegria e parecem ter mais resistência aos sofrimentos da vida.

Uma política participativa e libertada da corrupção e da desonestidade é elemento de satisfação para o povo. Constituições cidadãs como as que foram em anos recentes aprovadas na Bolívia, no Equador e Venezuela, aprimoram essa participação de todos os cidadãos nas mais diversas instâncias da política e garantem o direito pessoal e coletivo das parcelas mais frágeis da população. As Constituições do Equador e da Bolívia chegam a dizer que o objetivo maior do Estado é garantir para todos o bom viver (sumak kwasay na língua quétchua ou sumak kamana em aymara). Esse é o espírito do bolivarianismo, emergente em todo o continente.

Um elemento imponderável, mas sem dúvida essencial nesse caminho da felicidade, é a abertura da sociedade ao mistério que nos ultrapassa. Para evoluir, o ser humano precisa desenvolver a sua consciência, elemento que o aproxima da verdade sobre si mesmo e sobre a vida. Mas, todos nós sabemos que essa consciência é aproximativa e nos dá a percepção de nossos limites. Quando essa percepção nos abre à vida em todas as suas dimensões e principalmente ao amor e à solidariedade, sentimos que esse aperfeiçoamento pessoal e comunitário nos leva a um sentido de elevação. Alguns chamam esse patamar de espiritualidade, visão amorosa do universo, dos outros e de nós mesmos. Essa espiritualidade pode ser alimentada em algum dos caminhos religiosos ou mesmo fora deles. O importante é que, como diz Caetano Veloso em uma canção: “Podemos ver o mundo juntos, sermos dois e sermos muitos, nos sabermos sós sem estarmos sós. Abrirmos a cabeça, para que afinal, floresça o mais que humano em nós”. (Canção “Tá combinado”).

QUEM CUIDA DO CUIDADOR?



por Leonardo Boff




As primeiras e mais ancestrais cuidadoras são nossas mães e avós que desde o início da humanidade cuidaram de sua prole. Caso contrário, não estaríamos  aqui escrevendo  sobre o cuidado.


Neste contexto queremos mencionar duas figuras, verdadeiros arquétipos do cuidado: o médico suiço Albert Schweitzer (1875-1965) e a enfermeira inglesa Forence Nightingale (1820-1910).


Albert Schweitzer era exímio exegeta bíblico e um dos maiores concertistas de Bach de seu tempo.  Aos trinta anos já com fama em toda a Europa, largou tudo, estudou medicina para, no espírito das benaventuranças de Jesus, cuidar dos mais pobres dos pobres (os hansenianos) em Lambarene no Gabão. Numa de suas cartas  confessa explicitamente: ”o que precisamos não é de missionários que queiram converter os africanos, mas de pessoas dispostas a fazer aos pobres o que deve ser feito, se é que o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuem algum valor. Minha vida não está nem na arte nem na ciência mas em ser um simples ser humano que no espírito de Jesus faz algo por insignificante que seja”. Foi dos primeiros a ganhar o Prêmio Nobel da Paz.


 Por cerca de quarenta anos viveu e trabalhou num hospital por ele construido com o dinheiro de tournés de concertos de Bach. Nas poucas horas vagas, teve tempo para escrever vasta obra centrada na ética do cuidado e do respeito pela vida. Formulou assim seu lema: “a ética é a responsabilidade ilimitada por tudo o que existe e vive”. Numa outra obra  assevera:”a idéia chave do bem consiste em conservar a vida, desenvolvê-la e elevá-la ao mais alto valor; o mal consiste em destruir a vida, prejudicá-la e impedir que se desenvolva plenamente; este é o princípio necessário, universal e absoluto da ética”.                       

Outro arquétipo do cuidado foi a enfermeira inglesa Florence Nightingale. Humanista e profundamente religiosa, decidiu melhorar os padrões da enfermagem em seu país.

Em 1854 com outras 28 companheiras Florence se deslocou para  campo de guerra na Criméia da Turquia, onde se empregavam bombas de fragmentação que produziam muitos feridos. Aplicando no hospital militar,  a prática do rigoroso cuidado, em seis meses reduziu de 42% para 2% o número de mortos. Esse sucesso granjeou-lhe notoriedade universal.

De volta a seu pais e depois nos EUA, criou uma rede hospitalar que aplicava o cuidado como eixo  norteador da enfermagem e como sua ética natural. Florence Nightingale continua  a ser  uma referência inspiradora.

O operador da saúde é por essência um curador. Cuida dos outros como missão e como opção de vida. Mas quem cuida do cuidador, título de um belo livro do médico Dr. Eugênio Paes Campos (Vozes 2005)?

Partimos do fato de que o ser humano é, por sua natureza e essência, um ser de cuidado. Sente a predisposição de cuidar e a necessidade de ser ele também cuidado. Cuidar e ser cuidado são existenciais (estruturas permanentes) e indissociáveis.
É notório que o cuidar é muito exigente e pode levar o cuidador ao estresse. Especialmente se o cuidado constitui, como deve ser, não um ato esporádico mas uma atitude permanente e consciente. Somos limitados, sujeitos ao cansaço e à vivência de pequenos fracasos e decepções. Sentimo-nos sós. Precisamos ser cuidados, caso contrário, nossa vontade de cuidar se enfraquece. Que fazer então?

Logicamente, cada pessoa precisa enfrentar com sentido de resiliência (saber dar a volta por cima) esta situação dolorosa. Mas esse esforço não substitui o desejo de ser cuidado. É então que a comunidade  do cuidado, os demais operadores de saúde, médicos e o corpo de enfermagem devem entrar em ação.
  O enfermeiro ou a enfermeira, o médico e a médica sentem necessidade de serem também cuidados. Precisam se sentir acolhidos e revitalizados, exatamente, como as mães fazem com seus filhos e filhas. Outras vezes sentem necessidade do cuidado como suporte, sustentação e proteção, coisa que o pai proporciona a seus filhos e filhas.

Cria-se então o que o  pediatra  R. Winnicott chamava de “holding”, quer dizer, aquele conjunto de cuidados e fatores de animação que reforçam  o estímulo para continuarem no cuidado para com pacientes.

Quando este espírito de cuidado reina, surgem relações horizontais de confiança e de mútua cooperação, se superam os constrangimentos,  nascidos da necessidade de ser cuidado..

Feliz é o hospital  e mais felizes  são ainda aqueles pacientes que podem contar com um grupo de cuidadores. Já não haverá “prescrevedores” de receitas e aplicadores de fórmulas mas “cuidadores” de vidas enfermas que buscam saúde. A boa energia que se irradia do cuidado corrobora na cura.

VENDE-SE A NATUREZA




por Frei Betto


Às vésperas da Rio+20 é imprescindível denunciar a nova ofensiva do capitalismo neoliberal: a mercantilização da natureza. Já existe o mercado de carbono, estabelecido pelo Protocolo de Kyoto (1997). Ele determina que países desenvolvidos, principais poluidores, reduzam as emissões de gases de efeito estufa em 5,2%. 



Reduzir o volume de veneno vomitado por aqueles países na atmosfera implica subtrair lucros. Assim, inventou-se o crédito de carbono. Uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivale a um crédito de carbono. O país rico ou suas empresas, ao ultrapassar o limite de poluição permitida, compra o crédito do país pobre ou de suas empresas que ainda não atingiram seus respectivos limites de emissão de CO2 e, assim, fica autorizado a emitir gases de efeito estufa. O valor dessa permissão deve ser inferior à multa que o país ricos pagaria, caso ultrapassasse seu limite de emissão de CO2.

Surge agora nova proposta: a venda de serviços ambientais. Leia-se: apropriação e mercantilização das florestas tropicais, florestas plantadas (semeadas pelo ser humano) e ecossistemas. Devido à crise financeira que afeta os países desenvolvidos, o capital busca novas fontes de lucro. Ao capital industrial (produção) e ao capital financeiro (especulação), soma-se agora o capital natural (apropriação da natureza), também conhecido por economia verde.

A diferença dos serviços ambientais é que não são prestados por uma pessoa ou empresa; são ofertados, gratuitamente, pela natureza: água, alimentos, plantas medicinais, carbono (sua absorção e armazenamento), minérios, madeira etc. A proposta é dar um basta a essa gratuidade. Na lógica capitalista, o valor de troca de um bem está acima de seu valor de uso. Portanto, tais bens naturais devem ter preços.

Os consumidores dos bens da natureza passariam a pagar, não apenas pela administração da “manufatura” do produto (como pagamos pela água que sai da torneira em casa), mas pelo próprio bem. Ocorre que a natureza não tem conta bancária para receber o dinheiro pago pelos serviços que presta. Os defensores dessa proposta afirmam que, portanto, alguém ou alguma instituição deve receber o pagamento - o dono da floresta ou do ecossistema.

A proposta não leva em conta as comunidades que vivem nas florestas. Uma moradora da comunidade de Katobo, floresta da República Democrática do Congo, relata:

“Na floresta, coletamos lenha, cultivamos alimentos e comemos. A floresta fornece tudo, legumes, todo tipo de animal, e isso nos permite viver bem. Por isso que somos muito felizes com nossa floresta, porque nos permite conseguir tudo que precisamos. Quando ouvimos que a floresta poderia estar em perigo, isso nos preocupa, porque nunca poderíamos viver fora da floresta. E se alguém nos dissesse para abandonar a floresta, ficaríamos com muita raiva, porque não podemos imaginar uma vida que não seja dentro ou perto da floresta. Quando plantamos alimentos, temos comida, temos agricultura e também caça, e as mulheres pegam siri e peixe nos rios. Temos diferentes tipos de legumes, e também plantas comestíveis da floresta, e frutas, e todo de tipo de coisa que comemos, que nos dá força e energia, proteínas, e tudo mais que precisamos.”

O comércio de serviços ambientais ignora essa visão dos povos da floresta. Trata-se de um novo mecanismo de mercado, pelo qual a natureza é quantificada em unidades comercializáveis.

Essa ideia, que soa como absurda, surgiu nos países industrializados do hemisfério Norte na década de 1970, quando houve a crise ambiental. Europa e EUA tomaram consciência de que os recursos naturais são limitados. A Terra não tem como ser ampliada. E está doente, contaminada e degradada.

Frente a isso, os ideólogos do capitalismo propuseram valorizar os recursos naturais para salvá-los. Calcularam o valor dos serviços ambientais entre US$ 16 e 54 trilhões (o PIB mundial, a soma de bens e serviços, totaliza  atualmente US$ 62 trilhões). “Está na hora de reconhecer que a natureza é a maior empresa do mundo, trabalhando para beneficiar 100% da humanidade – e faz isso de graça”, afirmou Jean-Cristophe Vié, diretor do Programa de Espécies da IUCN, principal rede global pela conservação da natureza, financiada por governos, agências multilaterais e empresas multinacionais.

Em 1969, Garret Hardin publicou o artigo “A tragédia dos comuns” para justificar a necessidade de cercar a natureza, privatizá-la, e assim garantir sua preservação. Segundo o autor, o uso local e gratuito da natureza, como o faz uma tribo indígena, resulta em destruição (o que não corresponde à verdade). A única forma de preservá-la para o bem comum é torná-la administrável por quem possui competência – as grandes corporações empresariais. Eis a tese da economia verde.

Ora, sabemos como elas encaram a natureza: como mera produtora de ‘commodities’. Por isso, empresas estrangeiras compram, no Brasil, cada vez mais terras, o que significa uma desapropriação mercantil de nosso território.



Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de “O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org <http://www.freibetto.org>  Twitter:@freibetto.

Copyright 2012 – FREI BETTO –
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UMA REFERÊNCIA DO TEMPO


por  Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio 



Há 50 anos a Igreja Católica vivia um dos períodos mais importantes de seus mais de dois mil anos de história.  Convocado pelo Papa João XXIII na festa de Natal de 1961, o Concílio Vaticano II era inaugurado no dia 11 de outubro de 1962. Realizado em 4 sessões, foi encerrado em 8 de dezembro de 1965, já sob o pontificado de Paulo VI. 

 O que pretendia o adorável e bondoso Papa João ao convocar em tempo recorde um Concílio Ecumênico com mais de 2000 participantes?  Que necessidade pulsava nas entranhas da comunidade eclesial,  fazendo sentir como necessária esta convocação? Por que a tradicional e respeitada Igreja Católica  assumia o risco de abrir suas portas e situar-se sob os holofotes da opinião pública do mundo inteiro?
Desde Leão XIII,  que em 1891 confessara com dor o distanciamento do catolicismo para com a classe operária, tornava-se sempre mais claro para o governo da Igreja que esse distanciamento se dava em relação ao mundo como um todo. No pontificado do Papa Pio XII (1939-1958) já aconteciam dentro mesmo das fronteiras católicas movimentos de renovação fortes e influentes.  Os mais importantes diziam respeito ao estudo da Bíblia e à liturgia. Brilhante intelectual e agudo observador, Pio XII teve que viver um período conturbado em termos políticos, enfrentando a subida do Nazismo e uma Guerra mundial que esfacelou a Europa.
Ali se sentiu ainda mais claramente a necessidade imperiosa para a Igreja de reaprender a dialogar com um mundo passado pelo crivo da modernidade, que não se regia mais pelos ditames da religião, mas avançava a passos largos pelos caminhos da secularidade e da autonomia da ciência e da técnica.
 Eleito em 1958, João XXIII surpreendeu o mundo ao  recolher todos esses desejos e expectativas e torná-los realidade com a convocação do Concílio. Seu objetivo era repensar e renovar os costumes do povo cristão e adaptar a disciplina eclesiástica às condições do mundo moderno. A palavra italiana aggiornamento (atualização) foi cunhada para expressar o que o Concílio pretendia e os frutos que desejava e perseguia.
 Na visão profética de João XXIII, o Concílio seria como “um novo Pentecostes”, ou seja, uma profunda e ampla experiência espiritual que reconstituiria a Igreja Católica não somente como instituição, mas como movimento evangélico dinâmico, feito de abertura e renovação.  Assim começou o processo que resultou no Concílio Vaticano II e que foi como um divisor de águas para a Igreja. “Sopro de inesperada primavera”, em palavras do próprio Papa, foi marcado pela abertura e pelo olhar reconciliado para o mundo e sua complexa realidade.
Enquanto Concílios anteriores na Igreja tinham como preocupação principal condenar heresias, definir verdades de fé e costumes e corrigir erros que nublavam a clareza da plena verdade, o Vaticano II teve desde o princípio como orientação fundamental a procura de um papel mais positivo e participativo para a fé católica na sociedade, discutindo não apenas definições dogmáticas e teológicas, mas voltando sua atenção igualmente para problemas sociais e econômicos, vendo-os não como ameaças, mas como autênticos desafios pastorais que pediam uma resposta por parte da Igreja.
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Ao definir a especificidade do Concílio que convocava, João XXIII declarou enfaticamente, com força e audácia pastoral, não pretender uma vez mais fazer listas de erros e condenações, como tantas vezes havia acontecido no passado.  Desejava que a Igreja abrisse diante do mundo a beleza e o valor de sua doutrina, usando mais de misericórdia e menos de severidade.  Isto, no seu entender, ia mais ao encontro das necessidades dos tempos atuais e dava à mesma Igreja um rosto mais maternal e acolhedor.
João XXIII não pretendia revogar nada do depósito da fé que lhe cabia guardar com zelo de pastor.  Mas tampouco desejava corrigir formulações ou proclamar novos dogmas. Sua intenção, ao convocar o Concílio, era que Igreja e Mundo pudessem finalmente dialogar abertamente, para que a mensagem cristã pudesse ser vivida em toda a sua profundidade e vigor.
 Hoje, o Vaticano II continua sendo uma referência não apenas para os católicos,  mas para todos aqueles e aquelas que desejam entender melhor o tempo em que vivem. Celebrar este aniversário é, portanto, de fundamental relevância hoje mais que nunca.

 
Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.         

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sábado, 14 de abril de 2012

A CRISE DA ÁGUA E A SEDE DE VIDA


por Marcelo Barros

Na próxima semana, dia 22, a ONU celebra mais um dia internacional da água. Em vários países, devido à urgência do problema, as reflexões e eventos sobre esse dia tomarão toda a semana. De fato, estamos em situação de risco. O sistema de vida no planeta Terra está ameaçado e a água se torna o bem mais precioso. Hoje, 1,1 bilhão de pessoas já não têm acesso à água potável, e 2,4 bilhão de pessoas não têm saneamento básico. Cada ano, seis milhões de pobres, dos quais quatro milhões de crianças, morrem de enfermidades ligadas a águas contaminadas. Até o ano 2025, conforme um estudo da ONU, este problema afetará metade da humanidade.

Há diversos motivos para esta crise. O planeta Terra tem 75% de sua superfície ocupada por oceanos, mas a água doce representa apenas 2,5% deste total. No último século, a população mundial aumentou muito e na maioria dos países a urbanização se fez de modo descontrolado. É ao redor das 217 bacias fluviais internacionais que se concentra 40% da população da humanidade. Por causa do crescimento demográfico e da poluição, nos últimos 30 anos, os recursos hídricos foram reduzidos em 40%. Da água disponível que tínhamos, a humanidade acabou com 5000 Km2. E muitos, ainda se comportam como se a água fosse um bem inesgotável. Usam os recursos hídricos de modo irresponsável e injusto.

A água é um recurso natural limitado e pode acabar. Tem valor econômico e competitivo no mercado. Não pode ser desperdiçada (cada vez que se toma um banho com chuveiro aberto todo o tempo desperdiça-se mais água do que se usa). Quase todos os países atualizam legislações sobre a água. Em vários lugares, há conflitos entre povos por causa da água. Há quem diga que as guerras do futuro serão por causa de água. Organizações não Governamentais e movimentos populares defendem que a água não deve ser mercantilizada – ela é mais do que uma mercadoria – e menos ainda privatizada. A Pastoral da Terra declara: “Sendo a água constitutiva do ser humano, da vida como um todo e do meio ambiente, ela é um direito natural, patrimônio da humanidade, dádiva divina e não obra humana. Por isso, ela não pode ser reduzida a uma mercadoria e a um bem particular. E nenhum ser humano pode arrogar a si o poder de negar a qualquer semelhante ou ser vivo este bem essencial à vida”.

O cuidado com a água tem, então, motivos sociais e econômicos. Mas, a nossa relação com a água só mudará se aprendermos com as culturas religiosas antigas a nos relacionarmos com a terra e com a água de forma amorosa e espiritual. A Bíblia fala da água como símbolo do Espírito de Deus que derrama sobre o universo uma vida nova. Cuidar bem da água e defender os rios e fontes é uma forma de reconhecer a presença divina no universo, defender a vida e participar da Páscoa pela qual Deus “renova todas as coisas” (Ap 21, 5).

PANTEÍSMO VERSOS PANENTEÍSMO



por Leonardo Boff

Uma visão cosmológica radical e coerente afirma que o sujeito último de tudo o que ocorre é o próprio universo. É ele que faz emergir os seres, as complexidades, a biodiversidade, a consciência e os conteúdos desta consciência pois somos parte dele. Assim, antes de estar em nossa cabeça como idéia, a realidade de Deus estava no próprio universo. Porque estava lá, pôde irromper em nós. A partir desta compreensão, se entende a imanência de Deus no universo. Deus vem misturado com todos os processos, sem perder-se dentro deles.

Antes, orienta a seta do tempo para a emergência de ordens cada vez mais complexas, dinâmicas (portanto, que se distanciam do equilíbrio para buscar novas adaptações) e carregadas de propósito. Deus comparece, na linguagem das tradições transculturais, como o Espírito criador e ordenador de tudo o que existe. Ela vem misturado com as coisas. Participa de seus desdobramentos, sofre com as extinções em massa, sente-se crucificado nos empobrecidos, rejubila-se com os avanços rumo a diversidades mais convergentes e interrelacionadas, apontando para um ponto Omega terminal.

Deus está presente no cosmos e o cosmos está presente em Deus. A teologia antiga expressava esta mútua interpenetração pelo conceito "pericórese", aplicada às relações entre Deus e a criação e depois entre as divinas Pessoas da Trindade. A teologia moderna cunhou outra expressão, o "panenteísmo" ( em grego: pan=tudo; en= em; theos=Deus). Quer dizer: Deus está em tudo e tudo está em Deus. Esta palavra foi proposta evangélico Frederick Krause (l781-1832), fascinado pelo fulgor divino do universo.

O panenteísmo deve ser distinguido claramente do panteísmo. O panteísmo (em grego: pan-tudo; theos=Deus) afirma que tudo é Deus e Deus é tudo. Sustenta que Deus e mundo são idênticos; que o mundo não é criatura de Deus mas o modo necessário de existir de Deus. O panteísmo não aceita nenhuma diferença: o céu é Deus, a Terra é Deus, a pedra é Deus e o ser humano é Deus. Esta falta de diferença leva facilmente à indiferença. Se tudo é Deus e Deus é tudo, então é indiferente se me ocupo com uma menina estuprada num ônibus no Rio ou com o carnaval, ou com indígenas em extinção ou com uma lei contra a homofobia. O que é manifestamente um erro, pois diferenças existem e persistem.

Tudo não é Deus. As coisas são o que são: coisas. No entanto, Deus está nas coisas e as coisas estão em Deus, por causa de seu ato criador. A criatura sempre depende de Deus e sem Ele voltaria ao nada de onde foi tirada. Deus e mundo são diferentes. Mas não estão separados ou fechados. Estão abertos um ao outro. Se são diferentes, é para possibilitar o encontro e a mútua comunhão. Por causa dela superam-se as categorias de procedência grega que se contrapunham: transcendência e imanência. Imanência é este mundo aqui.

Transcendência é o mundo que está para além deste. O Cristianismo por causa da encarnação de Deus, criou uma categoria nova: a transparência. Ela é a presença da transcendência (Deus) dentro da imanência(mundo). Quando isso ocorre, Deus e mundo se fazem mutuamente transparentes. Como dizia Jesus: “quem vê a mim, vê o Pai”. Teilhard de Chardin viveu uma comovente espiritualidade da transparência. Dizia:"O grande mistério do Cristianismo não é a aparição, mas a transparência de Deus no universo. Não somente o raio que aflora, mas o raio que penetra. Não a Epi-fania mas a Dia-fania”(Le milieu divin, 162).

O universo em cosmogênese nos convida a vivenciarmos a experiência que subjaz ao panenteísmo: em cada mínima manifestação de ser, em cada movimento, em cada expressão de vida estamos às voltas com a presença e a ação de Deus. Abraçando o mundo, estamos abraçando Deus. As pessoas sensíveis ao Sagrado e ao Mistério tiram Deus de seu anonimato e dão-lhe um nome. Celebram-no com hinos, cânticos e ritos mediante os quais expressam sua experiência de Deus. Testemunham o que Paulo disse aos gregos de Atenas:”Em Deus vivemos, nos movemos e existimos”(17, 28).

RESSURREIÇÃO: MODO DE VIVER


por Maria Clara Bingemer




O tempo pascal – os 40 dias que se seguem até a festa da Ascensão, quando cessam o tempo das aparições do Ressuscitado às testemunhas da primeira hora do Cristianismo – é ocupado pela Igreja com constantes e profundas meditações sobre a Ressurreição. Contemplando as passagens evangélicas, os fiéis são introduzidos não apenas no sentido da morte cruel do Galileu de Nazaré sobre o lenho da cruz. Mas também e sobretudo em um radicalmente novo modo de viver.
A narrativa da Ressurreição sempre nos recorda a morte. Só ressuscita quem morreu. E o suplício ignóbil pelo qual passou aquele homem que só fazia o bem intrigava e escandalizava a todos que nele haviam acreditado. A experiência de ver vivo o que haviam visto Crucificado e morto desvela fulgurantemente a resposta de Deus sobre o destino da humanidade: a vida em plenitude.

Mais importante, porém, do que recordar a morte daquele que se foi é aprender de sua vida e dispor-se a entrar em um novo modo de viver. O mistério pascal – morte e ressurreição de Jesus Cristo – não apenas ilumina e ajuda a reler sua vida, mas também ensina poderosamente qual é a vida que Deus diz que é plena, perene e que não é engolida pela morte.
Por isso, mais importante do que crer na ressurreição após a morte, é viver desde já como ressuscitados. É aceitar que o mistério da Ressurreição de Jesus Cristo da cruz e do túmulo configure nossa vida e lhe dê uma nova forma. Não forma física, pois não se trata de reencarnação, mas forma nova no espírito que por sua vez transfigura a corporeidade e a totalidade do humano.

Viver como ressuscitados é viver fora de si. Ser sábio de uma loucura repudiada pelos sábios deste mundo que crêem conhecer e dominar a riqueza e o poder, mas na verdade por elas são dominados. É “saber” com uma força indestrutível que somos criados pelo Autor da vida a cada minuto para viver e dar vida. E quanto mais vida dada, tanto mais vida recebida. Trata-se de conhecer o jogo que aí ganha nova preponderância: perder é ganhar, entregar-se e perder-se no amor e no serviço é encontrar-se e possuir-se.
Viver como ressuscitados é ter o olhar transfigurado pelo Espírito que permite ver beleza e dignidade onde parece só existir lixo e miséria. É ter ouvidos abertos para, em meio aos ruídos dissonantes, escutar murmúrios e clamores dos que amam e dos que sofrem e sentir-se comovido por eles. É sentir na boca o beijo exigente da fome e da sede de justiça e dar-se em eucarístico alimento para saciá-las. É estender as mãos para servir e ajudar aqueles que buscam um rumo em suas vidas solitárias e perdidas, e transmitir-lhes a inefável experiência de sentir-se amados, acompanhados e curados em suas feridas profundas e doloridas.

Viver como ressuscitados é encontrar o segredo da alegria, esse mistério tão desejado e ansiado pelo coração humano. É ser capacitado a encontrá-lo longe das drogas, viagens sem volta; longe das adicções e no abismo fecundo da paixão; longe do artificial sossego feito de conforto e diversão impunes e atravessado por urgências compadecidas.
Viver como ressuscitados é experimentar que o centro da vida se encontra à margem do caminho, muitas vezes ferido e semimorto; é saber que a criação é feita não para a destruição e a morte, mas para o baile do amor fecundo que não termina e se desdobra em frutos de paz, diálogo e convivência.

Viver como ressuscitados é estar sempre em movimento, sempre em busca, nunca instalados. É saber que não temos aqui morada permanente, mas não somente esperamos a que há de vir como a construímos com o sopro do Espírito presenteado pelo Ressuscitado aos discípulos ainda atônitos e assustados.
Viver como ressuscitados é levar no próprio corpo as marcas de Jesus para que a vida por Ele dada se manifeste plenamente ao mundo. É estar no mundo sem ser do mundo, mas pertencer ao Senhor. É não ter domicílio em nenhum lugar, mas encontrar o próprio lar dentro de si mesmo, onde o Espírito do Pai e do Filho faz morada.
Viver como ressucitados é, em suma, viver urgidos pela caridade, iluminados pela esperança, suportados pela fé no que ainda não se vê, mas se “sabe” que será. É não guardar para si este segredo sussurrado ao ouvido na manhã do domingo, mas anunciá-lo sem medo em todos os dias da semana, convertendo o discipulado em ardente e constante apostolado.


Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.

Copyright 2012 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

O PAPA E A UTILIDADE DO MARXISMO




por Frei Betto


O papa Bento XVI tem razão: o marxismo não é mais útil. Sim, o marxismo conforme muitos na Igreja Católica o entendem: uma ideologia ateísta, que justificou os crimes de Stalin e as barbaridades da Revolução Cultural chinesa. Aceitar que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é o mesmo marxismo conforme a ótica de Marx seria como identificar catolicismo com Inquisição.

Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais útil. Porque já não se justifica enviar mulheres tidas como bruxas à fogueira nem torturar suspeitos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem com a pedofilia de padres e bispos.


Do mesmo modo, o marxismo não se confunde com os marxistas que o utilizaram para disseminar o medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber o que é marxismo; assim como há que retornar aos Evangelhos e a Jesus para saber o que é cristianismo, e a Francisco de Assis para saber o que é catolicismo.

Ao longo da história, em nome das mais belas palavras foram cometidos os mais horrendos crimes. Em nome da democracia, os EUA se apoderaram de Porto Rico e da base cubana de Guantánamo. Em nome do progresso, países da Europa Ocidental colonizaram povos africanos e deixaram ali um rastro de miséria. Em nome da liberdade, a rainha Vitória, do Reino Unido, promoveu na China a devastadora Guerra do Ópio. Em nome da paz, a Casa Branca cometeu o mais ousado e genocida ato terrorista de toda a história: as bombas atômicas sobre as populações de Hiroshima e Nagasaki. Em nome da liberdade, os EUA implantaram, em quase toda a América Latina, ditaduras sanguinárias ao longo de três décadas (1960-1980).

O marxismo é um método de análise da realidade. E mais do que nunca útil para se compreender a atual crise do capitalismo. O capitalismo, sim, já não é útil, pois promoveu a mais acentuada desigualdade social entre a população do mundo; apoderou-se de riquezas naturais de outros povos; desenvolveu sua face imperialista e monopolista; centrou o equilíbrio do mundo em arsenais nucleares; e disseminou a ideologia neoliberal, que reduz o ser humano a mero consumista submisso aos encantos da mercadoria.

Hoje, o capitalismo é hegemônico no mundo. E de 7 bilhões de pessoas que habitam o planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, e 1,2 bilhão padecem fome crônica. O capitalismo fracassou para 2∕3 da humanidade que não têm acesso a uma vida digna. Onde o cristianismo e o marxismo falam em solidariedade, o capitalismo introduziu a competição; onde falam em cooperação, ele introduziu a concorrência; onde falam em respeito à soberania dos povos, ele introduziu a globocolonização.

A religião não é um método de análise da realidade. O marxismo não é uma religião. A luz que a fé projeta sobre a realidade é, queira ou não o Vaticano, sempre mediatizada por uma ideologia. A ideologia neoliberal, que identifica capitalismo e democracia, hoje impera na consciência de muitos cristãos e os impede de perceber que o capitalismo é intrinsecamente perverso. A Igreja Católica, muitas vezes, é conivente com o capitalismo porque este a cobre de privilégios e lhe franqueia uma liberdade que é negada, pela pobreza, a milhões de seres humanos.

Ora, já está provado que o capitalismo não assegura um futuro digno para a humanidade. Bento XVI o admitiu ao afirmar que devemos buscar novos modelos. O marxismo, ao analisar as contradições e insuficiências do capitalismo, nos abre uma porta de esperança a uma sociedade que os católicos, na celebração eucarística, caracterizam como o mundo em que todos haverão de “partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”. A isso Marx chamou de socialismo.

O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx lançou, em 2011, um livro intitulado “O Capital – um legado a favor da humanidade”. A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de “O Capital”, de Karl Marx, publicada em Hamburgo, em 1867.

“Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério”, disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. “Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século XX”.

O autor do novo “O Capital”, nomeado cardeal por Bento XVI em novembro de 2010, qualifica de “sociais-éticos” os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de “selvagem” e “pecado”, e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política.

“As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo”, afirma o arcebispo.

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de “querido homônimo”, falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o autor do “Manifesto Comunista” se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.



Frei Betto é escritor, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org> Twitter:@freibetto.

Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O PAPA EM CUBA: RENOVAÇÃO E ESPERANÇA



por Maria Clara Bingemer






O mundo acompanha com curiosidade e atenção a visita do Papa Bento XVI a Cuba. Após a visita de seu antecessor, João Paulo II, que levou às ruas da ilha caribenha verdadeiras multidões, a visita de Bento XVI igualmente levanta interesse e resposta intensa da população cubana.



Já mesmo antes da visita de Bento XVI à Ilha, a movimentação feita pela Igreja Católica em torno da celebração dos 400 anos de devoção à Virgen de la Caridad del Cobre (Cachita, como a chamam carinhosamente os cubanos) se fazia sentir. Em cada cidade por onde passava a imagem da Virgem, as ruas se enchiam de peregrinos que a seguiam com orações, cânticos e alegria.



Assim também acontece com a visita papal. O povo cubano, que havia mostrado sua alma religiosa com a visita do Papa João Paulo II, faz o mesmo com este. Sai às ruas e acompanha os discursos, missas e gestos do Pontífice, com respeito e atenção carinhosa.


E todos que se puseram à escuta do homem de branco que se dirigiu ao santuário de Cachita - a virgem mambisa -, em Santiago de Cuba, ouviram o que ele narrava de sua oração à padroeira da ilha: “Fazei saber, a quantos se encontram perto ou longe, que confiei à Mãe de Deus o futuro da sua Pátria, pedindo-Lhe que avance por caminhos de renovação e de esperança para o maior bem de todos os cubanos.”


Como de costume, Bento XVI aplica sua inteligência e percepção na visita pastoral que realiza, evitando provocações, conflitos, e avançando com extrema prudência nas mensagens que deseja que finquem raízes no coração dos fiéis. As palavras acima deixam claro que o Papa entende que a ilha vive neste momento um processo novo.



Não apenas tem um novo governante, não mais aquele que a regeu por quase 50 anos e que, apesar de seguir a mesma linha do irmão e predecessor, imprime um estilo diferente a muitos aspectos da vida da Ilha, mas também abre novos caminhos para a vida de seus habitantes.


A Cuba de hoje é diferente em muitos pontos da que João Paulo II encontrou em 1998. O governo estuda seriamente uma reforma econômica, da qual alguns efeitos já se fazem sentir, sobretudo na permissão de adquirir bens duráveis de consumo, como automóveis; ou de usar telefones celulares. Igualmente a situação dos dissidentes e presos políticos tem conhecido alguns avanços, tendo sido postos em liberdade pessoas que se encontravam há bastante tempo no cárcere.


A Igreja, longe de estar afastada do diálogo com o governo cubano, hoje é interlocutora privilegiada do mesmo. O hábil Cardeal de Havana, Jaime Ortega, vive relação de estreita proximidade e mesmo amizade com o presidente Raúl Castro. Articulador de toda a visita papal, o cardeal tem atuado com extrema prudência e habilidade, empenhando-se em jamais romper o diálogo iniciado e mantendo uma atitude respeitosa e aberta diante do regime.



Isto, sem dúvida, tem contribuído para abrir brechas para a atuação da Igreja, que passa a ser olhada com abertura e mesmo simpatia pelos membros do governo, facilitando a atuação pastoral e a organização dos organismos eclesiais na Ilha. Bento XVI, sem dúvida, está informado e consciente disso. E em sua visita adota este mesmo tom respeitoso e prudente, conclamando os fiéis que o escutam a uma atitude positiva, de esperança e colaboração, para uma abertura que parece despontar no horizonte e pela qual todos anseiam.


Os cubanos são um povo digno e consciente de seu valor. Ao mesmo tempo, cientes das conquistas positivas que sua revolução e seu sistema político alcançaram, e das quais não desejam abrir mão. O fato de estarem dispostos a realizar reformas demonstra uma atitude madura de quem sabe não haver ainda atingido o que seria ideal em muitos aspectos. Mas ao mesmo tempo, não toleram que se lhes imponha coisas e atitudes desde fora e de forma arbitrária.


Bento XVI, homem inteligente e perspicaz, percebe esse ambiente, que é o pano de fundo de sua visita. E discursa sobre a excelência da liberdade que todos respeitam, até mesmo o próprio Deus. E em seu discurso de chegada deixa registrado que na Ilha, desde a visita de seu predecessor, inaugurou-se uma nova etapa nas relações entre a Igreja e o Estado cubano, em termos de maior colaboração e confiança. Porém, acrescenta que há ainda muitos aspectos nos quais é possível avançar, “especialmente no que diz respeito à contribuição imprescindível que a religião é chamada a prestar no âmbito público da sociedade. “



Certamente a visita pontifícia será um passo importante e positivo neste avanço. É o que esperamos todos que olhamos para a pérola do Caribe com confiança e esperança.



Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). Copyright 2012 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

VIVER A PÁSCOA HOJE



por Frei Betto






Hélio Pellegrino, psicanalista e escritor, dizia que não há nada mais radical do que crer na ressurreição da carne, conforme professa o dogma cristão. E registrou isso no texto “Aposta pascal”. O que significa acreditar, hoje, na ressurreição da carne? Carne significa, para a doutrina cristã, a consistência material do Universo. Segundo o apóstolo Paulo, não apenas os seres humanos ressuscitarão com Jesus, mas toda a Criação (Carta aos Romanos 8). .


Por mais fantasiosa que esta crença ressoe aos ouvidos de quem não tem fé, o fato é que ela é a única possibilidade de derrotar o nosso inimigo inelutável: a morte. Essa dama da foice que, à luz da razão, diz a última palavra, ainda que a ciência se empenhe em prolongar a nossa existência (haja cirurgias e malhação!), é subjugada pela esperança de que há luz no fim do túnel. A Páscoa, na sua origem hebraica, é um fato político: sob o reinado do faraó Ramsés II, em 1250 a.C., liderados por Moisés, os hebreus se libertaram da escravidão no Egito. Basta isso para que, hoje, ela seja comemorada como incentivo a combater toda forma de opressão, preconceito e discriminação.


Nascemos do mesmo modo, ao morrer teremos todos o mesmo destino e, no entanto, as desigualdades imperam em nosso modo de viver. Diferenças de condições sociais e culturais incutem em nós óticas deturpadas e, em geral, criminosas, em relação ao outro. É o caso do homem que se julga superior à mulher, do branco que discrimina o negro, do heterossexual com preconceito ao homo, do rico indiferente ao pobre. Exemplos atuais são a criminalização dos imigrantes pelos países ricos, a suspeita de que todo muçulmano é um terrorista em potencial, e os discursos eleitorais dos pré-candidatos republicanos às eleições presidenciais nos EUA.


A Páscoa, para os cristãos, além do ato político encabeçado por Moisés, é sobretudo a proclamação de que Jesus, assassinado em Jerusalém por volta do ano 30 de nossa era, condenado por dois poderes políticos, venceu a morte e manifestou a sua natureza também divina. Uma fé que comporta a crença na divindade de um pregador tido como subversivo pelas autoridades de seu tempo, deve ao menos se perguntar: por que o assassinaram? Não era um homem tão bom? Não fez apenas o bem? A fé esvazia o sentido da ressurreição de Jesus quando não se pergunta pelas razões de sua morte.


Ele não queria morrer, suplicou a Deus, a quem tratava com a intimidade relacional de filho para pai, que afastasse dele aquele cálice de sangue. Teve medo. Refugiou-se numa plantação de oliveiras. Preso, não negou o que fizera e pregara, e pagou com a vida a sua coerência. Assassinaram Jesus porque ele queria o óbvio. Este óbvio é tão óbvio que, ainda hoje, muitos fingem não enxergá-lo: vida em plenitude para todos (João 10, 10).


Ora, não é preciso saber economia, basta a elementar aritmética, para se dar conta de que há suficiente riqueza no mundo para assegurar vida digna a seus 7 bilhões de habitantes. A renda per capita mundial é, hoje, de US$ 9.390. Porém, basta olhar em volta para ver nossos semelhantes jogados nas calçadas, catando lixo para se alimentar, morando em favelas, submetidos ao trabalho escravo. Basta ligar a TV para se deparar com o rosto cadavérico dos africanos famintos.


Basta abrir o jornal para ler que 2∕3 da humanidade ainda vivem abaixo da linha da pobreza. E 20% da população mundial concentra em suas mãos 84% da riqueza global. Páscoa significa passagem, travessia. Domingo, nós cristãos iremos à igreja celebrar esta que é a mais importante festa litúrgica. E o que muda em nossas vidas? Vamos sair do nosso comodismo para ajudar a quebrar as amarras da opressão?


Vamos deslocar a nossa ótica do lugar do opressor para encarar a realidade pelos olhos do oprimido, como sugeria Paulo Freire? É fácil ter religião e professar a fé em Jesus. O difícil é ter espiritualidade e a fé de Jesus. Feliz Páscoa, queridos(as) leitores!


Frei Betto é escritor, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org <http://www.freibetto.org/> Twitter:@freibetto.


Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)

COMO DEUS EMERGE NO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO?



por Leonardo Boff







A nova cosmologia, derivada das ciências do universo, da Terra e da vida, vem formulada no arco da evoluçãoampliada. Esta evolução não é linear. Conhece paradas, recuos, avanços, destruições em massa e novas retomadas. Mas, olhando-se para trás, o processo mostra uma direção: para frente e para cima.



Somos conscientes de querenomados cientistas se recusam a aceitar uma direcionalidade do universo. Ele seria simplesmente sem sentido. Outros, cito apenas um, como o conhecido físico da Grã-Bretanha Freeman Dyson que afirma:”Quanto mais examino o universo e estudo os detalhes de sua arquitetura, tanto mais evidências encontro de que ele, de alguma maneira, devia ter sabido que estávamos a caminho”.



De fato, olhando retrospectivamente o processso evolucionário que já possui 13,7 bilhõs de anos, não podemos negar que houve uma escalada ascendente: a energia virou matéria, a matéria se carregou de informações, o caos destrutivo se fez generativo, o simples se complexificou, e de um ser complexo surgiu a vida e da vida a consciência. Há um propósito que não pode ser negado. Efetivamente, se as coisas em seus mínimos detalhes, não tivessem ocorrido, como ocorreram, nós humanos não estaríamos aqui para falar destas coisas.


Escreveu com razão o conhecido matemático e físico Stephen Hawking em seu livro Uma nova história do tempo (2005):”tudo no universo precisou de um ajuste muito fino para possibilitar o desenvolvimento da vida; por exemplo, se acarga elétrica do elétron tivesse sido apenas ligeiramente diferente, teriadestruído o equilíbrio da força eletromagnética e gravitacional nas estrelas e, ou elas teriam sido incapazes de queimar o hidrogênio e o hélio, ou então não teriam explodido. De uma maneira ou de outra, a vida não poderia existir".


Como emerge Deus no processo cosmogênico? A ideia de Deus surge quando colocamos a questão: o que havia antes do big-bang? Quem deu o impulso inicial? O nada? Mas do nada nunca vem nada. Se apesar disso apareceram seres é sinal de que Alguém ou Algo os chamou à existência e os sustenta no ser.


O que podemos sensatamente dizer, é: antes do big bang existia o Incognscível e vigorava o Mistério. Sobre o Mistério e o Incognoscível, por definição, não se pode dizer literalmente nada. Por sua natureza, eles são antes das palavras, das energia,da matéria, do espaço e do tempo.
Ora, o Mistério e o Incognoscível são precisamente os nomes que as religiões e também o Cristianismo usam para significar aquilo que chamamos Deus. Diantedele mais vale o silêncio que a palavra. Não obstante, Ele pode ser percebido pela razão reverente e sentido pelo coração como uma Presença que enche o universo e faz surgir em nós o sentimento de grandeza, de majestade, de respeito e de veneração.


Colocados entre o céu e a terra, vendo as miríades de estrelas, retemos a respiração e nos enchemos de reverência. Naturalmente nos surgem as perguntas: Quem fez tudo isso? Quem se esconde atrás da Via-Lactea? Como disse o grande rabino Abraham Heschel de Nova York: “Em nossos escritórios refrigerados ou entre quatro paredes brancas de uma sala de aula podemos dizer qualquer coisa e duvidar de tudo. Mas inseridos na complexidade da natureza e imbuidos de sua beleza, não podemos calar. É impossível desprezar o irromper da aurora, ficar indiferentes diante do desabrochar de uma flor ou não quedar-se pasmados ao contemplar uma criançarecém-nascida”. Quase que espontaneamente dizemos: foi Deus quem colocou tudo em marcha. É Ele aFonte originária e o Abismo alimentador de tudo.


Outra questão importante é esta: que Deus quer expressar com a criação? Responder a isso não é preocupação apenas da consciência religiosa, mas da própria ciência. Sirva de ilustração o já citada Stephen Hawking, em seu conhecido livro Breve história do tempo (1992): “Se encontrarmos a resposta de por que nós e o universo existimos, teremos o triunfo definitivo da razão humana; porque, então, teremos atingido o conhecimento da mente de Deus”(p. 238). Até hoje os cientistas estão ainda buscando o desígnio escondido de Deus.


A partir de uma perspectiva religiosa, suscintamente, podemos dizer: O sentido do universo e de nossa própria existência consciente parece residir no fato de podermos ser o espelho no qual Deus mesmo se vê a si mesmo. Cria o universo como desbordamento de sua plenitude de ser, de bondade e de inteligência. Cria para fazer outros participarem de sua suberabundância. Cria o ser humano com consciência para que ele possa ouvir as mensagens que o universo nos quer comunicar, para que possa captar as histórias dos seres da criação, dos céus, dos mares, das florestas, dos animais e da próprio processo humano e religar tudo à Fonte originária de onde procedem.



O universo está ainda nascendo. A tendência é acabar de nascer e mostrar as suas potencialidades escondidas. Por isso, a expansão significa também revelação. Quando tudo tiver se realizado, então se dará a completa revelação do desígnio do Criador.

UM MUNDO PASCAL





por Marcelo Barros



O rito é como ensaio ou treinamento. Expressa em sinais simbólicos o que realmente as pessoas querem realizar no mundo. Quando em um rito civil, saudamos a bandeira nacional, estamos, de fato, expressando o desejo de um país unido e livre. Do mesmo modo, as Igrejas cristãs antigas realizam nesses dias os ritos da celebração pascal para propor uma transformação da vida e do modo de organizar o mundo. Antigamente, antes mesmo dos tempos bíblicos, a Páscoa era a dança com a qual as tribos indicavam que começou a primavera e, assim, a natureza se revestia de uma vida nova. De acordo com a Bíblia, foi durante os festejos de uma Páscoa, que, inspirados e conduzidos por Deus, os hebreus se libertaram do Egito, onde viviam como escravos. Cada ano, até hoje, as comunidades judaicas celebram a Páscoa para atualizar essa vocação para ser livres e reconhecer a fonte dessa liberdade em Deus. Os escritos cristãos testemunham que, durante uma celebração anual da Páscoa judaica, os primeiros discípulos de Jesus que choravam sua morte, o descobriram vivo e vitorioso. Cada Páscoa, tanto judaica, como cristã, celebra a vitória da vida sobre a morte e da solidariedade sobre o desamor e isso não apenas para as Igrejas mas para o mundo todo.


Neste ano de 2012, a Igreja Católica lembra que, há 50 anos, o saudoso e querido papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II. Essa reunião dos bispos do mundo inteiro significou o começo de uma importante reforma na Igreja. Embora essa obra de renovação tenha ficado incompleta, ela foi para a Igreja e para o mundo uma nova Páscoa. Atualmente, alguns setores da hierarquia não querem recordar o Concílio Vaticano II e sonham com a volta a um modelo de Cristandade pré-conciliar. Embora tenham recebido a missão de respeitar a palavra de todos os bispos do mundo reunidos em nome de Deus, eles a diluem com medo de viver o hoje de Deus. Seja como for, como é obra do Espírito Santo, a memória do Concílio não morrerá e, até hoje, nos lembra que é possível apresentar a fé cristã de forma que a humanidade possa por ela se interessar como sendo algo atual e útil para os nossos tempos. O Concílio também mostrou que é possível uma Igreja na qual a hierarquia aceite e aprenda a verdadeiramente dialogar de forma humilde e amorosa com a humanidade sobre os grandes problemas e desafios dos tempos atuais como a justiça social e econômica, a paz entre os povos e o cuidado com a natureza. Durante anos, o mundo testemunhou que a boa notícia dada por Jesus nos Evangelhos levava pastores e fiéis a se consagrar não apenas a questões eclesiásticas internas, mas às grandes causas da humanidade.


Essas celebrações pascais vêm nos mostrar que esse fogo do Espírito não está apagado. Mesmo por baixo das cinzas, se mantém aceso e ninguém consegue abafá-lo. Mesmo se parecem ritos antigos, reduzidos a cerimônias religiosas, a Vigília Pascal na noite do sábado próximo ou madrugada do domingo, assim como as outras grandes celebrações do tríduo pascal contêm uma força capaz de transformar o mundo, até que cada pessoa que ama e tem fome de justiça e todo o universo sejam impregnados da energia amorosa dessa nova Páscoa.