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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

SERMÃO DO CARNAVAL



Por Frei Betto

       Festejai! Dançai! Diverti ó nobres pecadores! Trazei às ruas vossas fantasias, as que se abrigam nos baús e as que fervilham em vossas mentes! Eis que chega o Carnaval! E, agora, toda carne se fará verbo.
       Não fujais à alegria de Momo. A vida é breve, os dias árduos, os sofrimentos frequentes e as dores, muitas. Sobrepairam  tempos sombrios de mentiras oficiais, de esperanças minguadas, de direitos castrados. Não percais o ânimo de escalar o apogeu. Entoai alvíssaras do alto dos morros e do cume dos prédios!
       Não vos omitais da euforia popular. Nuvens carregadas insistem em cegar o sol e coturnos pesados esmagam o asfalto. Tempestades brotam até do chão, em forma de lama. Portanto, não deixeis de se incorporar aos cordões que volteiam alegres às vossas portas. Lançai serpentinas e confetes por vossas cabeças e inebriai de êxtases os vossos corações.
       Integrai-vos todos - crianças, idosos, abastados e desdentados -, aos blocos que colorem de cantos e encantos todos os recantos da cidade. Não permitais que nos roubem o júbilo, a exaltação do espírito, a euforia que se apodera de razão e propaga emoção. Não deis espaço ao desalento, desacreditai a tristeza, impedi que as más notícias soneguem o júbilo do pierrô e da colombina.
       Evocai os deuses, os orixás e os espíritos benfazejos para que nos festejos reine a mais irrevogável democracia, na qual as antinomias se fundem, as contradições se volatilizam, o futuro se avizinha quando o ajudante de pedreiro exibe sua majestade encimada pela coroa dourada e a faxineira descida da favela se revela rainha no cortejo triunfal.
       Ide todos aos desfiles! Juntai-vos à multidão daqueles que tanto incomodam aos arautos ressentidos do moralismo exacerbado: homossexuais, travestis, indígenas, quilombolas, moradores de rua, comunistas e adeptos do papa Francisco. Proclamai o direito à diferença sem que prevaleça a divergência. Fazei vibrar os dedos das mãos sobre vossas cabeças, qual revoar de abelhas besuntadas de mel, antes que o indicador e o polegar se paralisem em simulacro bélico.
       Não ocultais sob a vergonha o que Deus não se envergonhou de ter criado. Reverenciai a sacralidade da nudez, a do corpo e a da alma, para que a transparência predomine sobre a obscuridade. Tende em conta que a indecência não reside no que se expõe à vossa frente, e sim em vossos olhos desviados da inocência. Ousai todos manifestar a soberania da arte, livre de todas as amarras da censura.
       Desfilai pelo sambódromo e exibi, na suntuosidade dos carros alegóricos, a pujança da Amazônia ameaçada pela voracidade do lucro; as alegorias dos casais que se unem por amor, alforriados da ditadura hétero; as utopias libertárias do século XX, que induziram tantos jovens a se viciarem em utopia, livres das sombras necrófilas de supostas filosofias eivadas de ódio; a bateria rítmica que celebra com seus tambores o direito à vida dos rejeitados pelo crivo assassino da desigualdade social.
       Vinde todos entoar o samba-enredo da magia carnavalesca nessa quarta-feira de cinzas iniciada desde o primeiro dia do ano. Na festa de Momo são exaltados os humilhados, celebrados os descartados, reverenciados os ofendidos. Limpai vossas gargantas, apurai vossas vozes, cantai a plenos pulmões para que o Carnaval se dissemine por corações e mentes e se prolongue por dias e anos vindouros.
       Abri alas para que a felicidade alcance o quanto antes a praça da apoteose. E que todos os olhos se voltem para os céus e contemplem, eufóricos, na passarela do tempo, o rodopiar das cabrochas fantasiadas de planetas em torno do mestre-sala sol em seu brilho esfuziante, a lua de porta-bandeira, e todo o Universo em incessante baile no espaço sideral.

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.
Copyright 2019 – FREI BETTO – Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 

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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“QUANDO O CARNAVAL CHEGAR”



Por Marcelo Barros

Parece atual esse título do filme de Carlos Diegues (1972), baseado em música do Chico Buarque que saiu em álbum da MPB com Chico, Nara Leão e Maria Bethânia. A letra irônica e provocativa dizia: “Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”.

Agora, o cineasta pernambucano Gabriel Mascaro está nos festivais de filmes na Europa com um documentário que se chama “Estou me guardando para quando o Carnaval chegar”. Conta como uma pequena cidade do interior do estado sobrevive da confecção de roupas para o Carnaval. Esse Brasil de 2019 vive um tempo no qual o Carnaval vem, como nunca antes, misturado com tragédias de barragens de lama e o clima de uma sociedade que parece imersa em uma lama de ódio que considera normal a injustiça da desigualdade e usa a bandeira da corrupção para destilar o ódio e a intolerância como formas de política. 

Apesar disso, é tempo de folia e o povo tem a sabedoria de não renunciar ao direito da festa e da brincadeira. No Rio de Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos já estão nas ruas. Através do frevo e do samba, as pessoas superam as dores do cotidiano e as frustrações da Política. Ainda há quem veja nisso mera alienação. Alguns grupos religiosos condenam o mundanismo. Julgam o Carnaval como produto do diabo. Não há dúvidas de que o Capitalismo faz de tudo mercadoria. No Carnaval, esse sistema explora um erotismo simplesmente comercial. Fomenta o uso exagerado de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso com a violência urbana que explode em alguns fenômenos de massa quando não bem canalizados. No entanto, apesar desses problemas reais e sérios, toda festa reúne pessoas em uma expressão de confraternização e alegria. Por isso, tem uma dimensão nobre e, podemos mesmo dizer: espiritual.

De um modo ou de outro, todas as culturas valorizam a festa como sinal e antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. Jesus afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual uma música deliciosa que convida todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música, não dançam. Ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam a vida, mesmo sofrida, festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Conforme o quarto evangelho, Jesus começou a anunciar o reinado divino no mundo, transformando água em vinho, para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2).

As pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das festas, como  aniversário, casamento e formatura. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito. 

Na Bíblia, se conta que, quando a arca da aliança foi transferida das montanhas para Jerusalém, “o rei Davi dançava alegremente”. Davi dançou para agradecer a bênção divina sobre o povo. Vários salmos aludem à dança e a alegria da festa como formas de oração. Apesar disso, a dança acabou não sendo valorizada nas liturgias. Nas sinagogas, o uso variou muito, de acordo com o tempo. Em épocas recentes, principalmente em festas como a da Simchá Torá, a festa da “alegria da Lei”, no nono dia depois da festa das Tendas (Sucot), a dança é o rito central. Em um artigo na internet, o rabino Nilton Bonder explica: “Nós dançamos com a Torá e não nos damos conta como dançamos com a vida e de que a dança revela muito”. A dança é mais do que um método. É caminho de meditação interior e comunitária. Indica abertura do ser humano a uma dimensão de transcendência. No Brasil, as danças são ancestralmente praticadas pelas religiões indígenas e afrodescendentes. Muitas vezes, além de ser uma forma de orar com o corpo, servem também como instrumentos de cura e equilíbrio para a vida.

As formas mais conhecidas de danças sagradas espalhadas pelo mundo vêm do Oriente e são a Hatha Yoga, T´ai Chi e as danças do Dervixe na tradição mística Sufi (muçulmana). Um dervixe disse ao escritor grego Nikos Kazantzakis: “Bendizemos ao Senhor, dançando. A dança mata o ego e uma vez que o ego é morto não há mais obstáculos que o impeçam de se unir a Deus”.

Lamentavelmente ao se falar de dança sagrada, corre-se o risco de separar o sagrado e o profano, como se houvesse uma dança santa e a outra mundana. É claro que, como toda atividade humana, a dança também pode ser instrumentalizada em espetáculos de mau gosto. Entretanto, se, em seu erotismo, ela é humana, repõe as energias do amor em um equilíbrio unificador da pessoa e da comunidade. Desse modo, toda dança é sinal da bênção divina e instrumento de cura do corpo e do espírito. Tanto no Carnaval, como no dia a dia, é importante valorizar os ritmos, músicas e danças de cada cultura.

Através da música “Quando o Carnaval chegar”, ainda nos anos 70, Chico Buarque tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Apesar de que superamos a ditadura militar da década de 1970, parece que o Brasil de hoje retoma o militarismo e a ordem unida como formas de política. Ainda falta muito para alcançarmos a igualdade social e uma justiça que signifique uma verdadeira libertação para todo nosso povo. Por isso, continua válida a esperança proposta nas imagens da música de Chico, cantada no filme. É bom que, mesmo brincando nos blocos e desfiles de agora, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval definitivo, mais profundo e transformador da vida.  


 MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A ATUAL CRISE POLÍTICO-SOCIAL DEMANDA PROFETAS


por leonardo boff
O profetismo é um fenômeno não somente bíblico. É atestado em outras religiões como no Egito, na Mesopotâmia, em Mari e em Canaã, em todos os tempos, também nos nossos. Há vários tipos de profetas (comunidades proféticas, visionários, profetas do culto, da corte etc) que não cabe aqui analisar.
Clássicos são os profetas do Primeiro Testamento (dizia-se antes Antigo Testamento) que se mostravam sensíveis às questões sociais como Oséias, Amós,Miquéias, Jeremias e Isaías.
Na verdade, em todas as fases do cristianismo esteve sempre presente o espírito profético, como entre nós inegavelmente com Dom Helder Câmara, com o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, com Dom Pedro Casadáliga e outros, para ficar somente no Brasil.
O profeta é um indignado. Sua luta é pelo direito e pela justiça especialmente dos pobres, dos fracos e das viúvas, contra os exploradores dos camponeses, contra os que falsificam pesos e medidas e contra o luxo dos palácios reais. Eles sentem um chamado dentro de si, interpretado no código bíblico, como uma missão divina.
Amós que era um simples vaqueiro, Miquéias um pequeno colono e Oséias, casado com um prostituta, largam seu afazeres e foram ao pátio do templo ou diante do palácio real para fazer suas denúncias. Mas não apenas denunciam. Anunciam catástrofes e após anunciam uma nova esperança de um recomeço melhor.
São atentos aos acontecimentos históricos também em nível internacional. Por exemplo, Miquéias increpa Nínive, capital do império assírio:”Ai da cidade sanguinária, tudo nela é mentira. De roubo está cheia e não para de saquear. Lançarei sobre ti imundícies”(3,1.6). Jeremias chama Babilônia de “a metrópole do terror”.
Devemos entender corretamente as previsões dos profetas. Não é que anteveem as catástrofes, como se tivessem acesso a um saber especial. O sentido é esse: a persisitir a atual situação e a se negar a mudá-la, de exploração, de práticas contra os indefesos e de abandono da reverente relação com Javé, terá como consequência  uma desgraça.
Logicamente desagradam aos poderosos, aos reis e até ao povo. São chamados de “perturbadores da ordem”, “conspiradores contra a corte ou o rei”. Por isso os profetas são perseguidos, como Jeremias que foi torturado e posto na prisão; outros foram assassinados. Poucos profetas morreram de velhos.Mas ninguém lhes fez calar a boca.
Evidentemente há falsos profetas, aqueles que vivem nas cortes e são amigos os ricos. Anunciam só coisas agradáveis e até são pagos para isso. Há um verdadeiro conflito entre os falsos e os verdadeiros profetas. Sinal de que um profeta é verdadeiro é a sua coragem de arriscar a vida pela causa dos humildes da terra e que sempre grita por justiça e por direito e que, incansavelmente, defende o certo e o justo.
Os profetas irrompem em tempos de crise, para denunciar projetos ilusórios e anunciar um caminho que faça justiça ao humilhado e que gere uma sociedade agradável a Deus porque atende aos ofendidos e aos feitos invisíveis. A justiça e o direito são as bases da paz duradoura: essa é a mensagem central dos profetas.
Hoje vivemos em nossa realidade nacional e mundial grave crise. Corpos de cientistas e analistas do estado da Terra nos advertem: a seguir a lógica da acumulação ilimitada estamos preparando grave catástrofe ecológico-social. Essa é a consequência. Não vamos ao encontro do aquecimento global. Já estamos dentro dele e os sinais são inegáveis.
Estas vozes, das mais abalizadas, não são ouvidas pelos “decision makers” e pelos homens do dinheiro. É anti-sistêmico e prejudica os negócios. Em nosso país, mergulhado numa crise sem precedentes, governado caoticamente por pessoas incompetentes e até ridículas, faltam-nos profetas que denunciem e apontem caminhos viáveis para sairmos deste atoleiro.
Na linha profética estão as palavras de Márcio Pochmann:“A se manter o caminho aberto pelo neoliberalismo de Temer e agora aprofundado pelo ultraliberalismo que domina o confuso governo Bolsonaro, o sentido do Brasil tende a ser o da Grécia com fechamento de empresas e quebra da administração pública. O pior rapidamente se aproxima”. Outros vão além: “a se imporem as reformas político-sociais, conformes à lógica do mercado, meramente competitivo e nada cooperativo, o Brasil poderá se transformar numa nação de párias”. Precisamos de profetas, religiosos, civis, homens e mulheres ou pelo menos que tenham atitudes proféticas, para denunciar que o caminho já decidido será catastrófico.
Dão-nos esperança as palavras de Isaías:”O povo que vive na escuridão, verá grande luz, habitantes em regiões áridas, a luz resplandecerá sobre eles”(6.1).
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.Escreveu “Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres,Vozes 2005.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

GOVERNO BOLSONARO E SÍNODO PAN-AMAZÔNICO





Frei Betto

      O noticiário desta semana informa que os cardeais brasileiros estão sendo espionados pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que relata ao governo recentes encontros deles com o papa Francisco, no Vaticano, para prepararem o Sínodo (do grego, ‘caminhar juntos’) sobre a Amazônia, a se reunir em outubro, em Roma.
      “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”, declarou o general Augusto Heleno. Isso faz recordar a famosa pergunta de Stálin na Segunda Grande Guerra: “Quantas divisões possui o Vaticano?”
      Segundo o Documento Preparatório do Sínodo, predomina na Amazônia a “cultura do descarte”, somada à mentalidade extrativista, que convertem o planeta em lixão. “A Amazônia, região com rica biodiversidade, é multiétnica, pluricultural e plurirreligiosa, um espelho de toda a humanidade que, em defesa da vida, exige mudanças estruturais e pessoais de todos os seres humanos, dos Estados e da Igreja”. (...) “É de vital importância escutar os povos indígenas e todas as comunidades que vivem na Amazônia, como os primeiros interlocutores deste Sínodo”.
      A Igreja denuncia situações de injustiça na região, como o neocolonialismo das indústrias extrativistas, projetos de infraestrutura que destroem a biodiversidade, e imposição de modelos culturais e econômicos estranhos à vida dos povos.
      Nos nove países que compõem a Pan-Amazônia (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela, incluindo Guiana Francesa como território ultramar), registra-se presença de três milhões de indígenas, no total de 390 povos. Vivem nesse território também entre 110 a 130 “Povos Indígenas em Situação de Isolamento Voluntário”.
      A bacia amazônica representa uma das maiores reservas de biodiversidade (30 a 50% da flora e fauna do mundo); de água doce (20% da água doce não congelada de todo o planeta); e possui mais de 1/3 das florestas primárias. 
      Segundo os bispos, “o crescimento desmedido das atividades agropecuárias, extrativistas e madeireiras da Amazônia, não só danificou a riqueza ecológica da região, de suas florestas e de suas águas, mas também empobreceu sua riqueza social e cultural, forçando um desenvolvimento urbano não integral nem inclusivo da bacia amazônica.”
      Lamentavelmente, “ainda hoje existem restos do projeto colonizador que criou manifestações de inferiorização e demonização das culturas indígenas. Tais resquícios debilitam as estruturas sociais indígenas e permitem o desprezo de seus saberes intelectuais e de seus meios de expressão.” 
      O papa Francisco afirmou em Puerto Maldonado, Peru, em janeiro de 2018: «Provavelmente, nunca os povos originários amazônicos estiveram tão ameaçados nos seus territórios com o estão agora». 
      O pontífice denunciou esse modelo de desenvolvimento asfixiante, com sua obsessão pelo consumo e seus ídolos de dinheiro e poder. Impõem-se novos colonialismos ideológicos disfarçados pelo mito do progresso que destroem as identidades culturais próprias. Francisco apela à defesa das culturas e à apropriação de sua herança, que é portadora de sabedoria ancestral. Essa herança propõe uma relação harmoniosa entre a natureza e o Criador, e expressa com clareza que «a defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida».
      Hoje, o grito da Amazônia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex3,7). É um grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade e escuta de Deus. Grito que pede a presença de Deus, especialmente quando os povos amazônicos, ao defenderem suas terras, têm seu protesto criminalizado, tanto por parte das autoridades como da opinião pública. 

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.     
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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

FAZER A DIFERENÇA



                                   Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Se alguém se destaca em determinada área e altera uma situação de fato em um sentido melhor ou mais justo, se diz que “faz a diferença”. Tudo aquilo que muda situações, circunstâncias, vidas, para melhor faz a diferença. Toda atitude, posicionamento, discurso, comportamento que conduz a história a girar em direção contrária àquela previamente estabelecida, é reconhecida como algo que faz a diferença.

            Fazer a diferença, portanto, é transformar, redimir, redirecionar a humanidade em outro sentido do que aquele que parece pré-determinado e banhado pela lama da fatalidade. É abrir caminhos novos e com ações às vezes muito humildes e pequenas fazer brotar grandes mudanças.  É dar identidade e dignidade aos vulneráveis e vencidos, a partir de uma solidariedade que lhes permite ser sujeitos e atores de seu próprio processo de libertação.

            À luz dessas afirmações, continuo estupefata com a entrevista do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no programa Roda Viva, da TV Cultura. Ao referir-se ao seringueiro e ambientalista Chico Mendes, comentou com um despectivo dar de ombros: “Que diferença faz quem é Chico Mendes?”  Suspeito que a resposta do ministro é fruto de seu profundo desconhecimento da figura do seringueiro, sindicalista, ativista político e ambientalista brasileiro, que lutou incansavelmente em favor dos povos da Bacia Amazônica, e defendeu com a própria vida a floresta que era a fonte de sua subsistência.  

             No dia seguinte ao programa, ainda sob o impacto da repercussão que sua fala tivera sobre a opinião pública que considera Chico Mendes um mártir da Amazônia, o ministro permaneceu firme em sua posição.  Em entrevista ao jornalista Bernardo de Mello Franco, afirmou: “O pessoal do agro, que conhece a região, diz que ele era grileiro.” Talvez tenha sido o mesmo pessoal que informou ao ministro que Chico Mendes usava os seringueiros para se beneficiar”.  É difícil imaginar que benefício extraiu o seringueiro de sua atuação em favor do meio ambiente, que o fez enfrentar os latifundiários poderosos da região e acabou causando sua morte violenta. Deixou, porém, um legado que até hoje inspira a luta pelo meio ambiente no Brasil e internacionalmente. Graças a Deus, em seguida à entrevista do ministro, o vice-presidente Hamilton Mourão reafirmou a importância de Chico Mendes, declarando que ele é parte da história do Brasil. 

Desconstruir a memória de um líder, de um mártir, é matá-lo pela segunda vez. Assim parece o pessoal do agro estar fazendo com a memória de Chico Mendes.  Assim outros fazem igualmente com a morte da irmã Dorothy Stang, religiosa católica assassinada enquanto ia a uma reunião com a Bíblia na mão. Seria a Irmã Dorothy, cuja morte completa agora 12 anos, alguém que se beneficiava dos seringueiros e do povo da floresta? 

À pergunta do ministro sobre que diferença faz quem é Chico Mendes nesse momento, portanto, a resposta parece ser: faz toda a diferença.  A história do Brasil seria outra se não houvesse Chico Mendes.  O panorama da Amazônia brasileira seria muito mais frágil sem sua atuação corajosa e o movimento que criou.

Assim também, enquanto a Igreja Católica prepara o sínodo da Amazônia a ser realizado no Vaticano no próximo mês de outubro, o testemunho de Dorothy Stang e Chico Mendes faz toda a diferença.  Por quê?  Porque dão a carne e o sangue às palavras da encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, que afirma ser a luta pela natureza e a criação inseparável da luta pela justiça e os direitos humanos. 

Quem entende isso faz a diferença.  Esperemos que o ministro, após sua primeira viagem à Amazônia, se sinta mais reconciliado com essas grandes figuras que, desde o seu lugar aparentemente pequeno e insignificante, vão virando a história em outra direção e deixando atrás de si o rastro luminoso da sacralidade de todas as formas de vida. 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc), entre outros livros.
Copyright 2019 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019



Por Marcelo Barros

O que adianta a ONU consagrar a cada ano o 20 de fevereiro como dia mundial da justiça social se aceita que a desigualdade social e econômica seja cada vez mais escandalosa e brutal? Não é possível se esperar justiça social em um mundo no qual 60 famílias possuem o equivalente à renda de mais de três bilhões de pessoas, isso é, a metade de toda a população mundial. Na América Latina, na primeira década desse século, alguns governos progressistas e mais ligados aos pobres conseguiram diminuir a pobreza e reduzir a desigualdade social. Na segunda metade dessa década, por eleições mais ou menos democráticas, ou através de golpes de Estado, o Império e seus aliados conseguiram retomar o poder no continente. A partir de então, todos os índices sociais se agravaram com o aumento da pobreza e da desigualdade social.   
Há nove anos, em Caracas, o presidente Hugo Chávez fundava a  CELAC, Comunidade de Estados da América Latina e Caribe. Era uma comunidade de 33 países independentes. A CELAC representa quase 600 milhões de pessoas, habitantes da América Latina e Caribe. Ali se discutiam os problemas que afetam o mundo e especificamente a América Latina e Caribe. Integrava-se com outros organismos como a ALBA (Aliança Bolivariana Latino-americana) para a integração econômica dos países e a UNASUL, União das Nações da América do Sul. A primeira providência dos novos governantes de direita, assim que assumiram o poder no Paraguai, no Brasil, na Argentina, no Equador e em outros países, foi esvaziar e destruir os organismos de integração continental para retomar a relação de dependência e subserviência ao patrão imperial.

A eles pouco importa que a pobreza extrema atinja atualmente quase 10% da população latino-americana e chegue a quase 20% no Caribe. O Haiti continua o país mais pobre do continente e é um dos dois mais empobrecidos e explorados do mundo. Além disso, apesar de que o continente tem uma das maiores quantidades de terras cultiváveis e férteis do planeta, atualmente serve como palco de imensa destruição da natureza, provocada pelas empresas de mineração. Afinal, 65% das reservas de todo o lítio do mundo estão na Bolívia e Peru, assim como as maiores reservas de estanho. O Brasil guarda uma das mais ricas reservas de ferro, o Chile é um imenso depósito de cobre. O México tem 42% das minas de prata do mundo. Mas, embora não sejamos de nenhum modo favoráveis à destruição dos territórios para fins de mineração, o pior ainda é que tudo isso está servindo apenas para enriquecer empresas multinacionais e uma pequena elite que delas se beneficiam. Não resultam de modo algum em melhoria de vida para a população do país, menos ainda para os trabalhadores explorados nessas minas. Acima de tudo, é catastrófica a destruição das florestas, terras férteis e rios que abastecem de água regiões inteiras do país. No dia 25 de janeiro, o rompimento da barragem de dejetos da Vale do Rio Doce em Brumadinho, MG,  nada teve de acidente. Era uma tragédia prevista e anunciada. Apesar de saber dos riscos, a empresa preferiu ganhar dinheiro sobre a destruição de toda a natureza em uma imensa região afetada e a perda de centenas de vidas humanas. 

Há décadas, Eduardo Galeano escreveu “As veias abertas da América Latina” para denunciar a situação de exploração da terra e dos povos do continente, assim como a dependência que mantínhamos em relação aos impérios do mundo. Atualmente, com a atual investida do Império, a dominação das empresas multinacionais que ditam as leis do mercado e governos que não representam as maiorias da população, as veias da América Latina continuam abertas e sangrando. Mais do que isso: estão sendo objeto de verdadeiro processo de vampirização, bem simbolizado nos antigos filmes de terror.

Nossa única esperança é que a própria sociedade civil e as suas organizações sociais se unam e articulem em uma ação cidadã para velar por estruturas mais justas. É urgente a consolidação de processos que fortaleçam a articulação das diversas categorias de trabalhadores/as, em vista de uma forma nova e alternativa de organização social e de democracia participativa.

Nas Igrejas cristãs, apesar dos setores que, em nome de Deus, se aliam à direita e aos que oprimem os pobres, a palavra de Jesus no evangelho continua ecoando e provocando mudanças: “O sopro divino veio sobre mim e me envia a anunciar a libertação de todas as pessoas oprimidas” (Lc 4, 14ss). A luta pela justiça social só se dará de verdade a partir da libertação que, como afirmaram os bispos católicos em Medellín (1968) é “libertação de cada pessoa humana em todas as suas dimensões pessoais e libertação de toda a humanidade (Med. 5, 15).


MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

PÓS-MODERNIDADE E COMUNICAÇÃO



Frei Betto


          Pós-modernidade é sinônimo de explosão comunicativa. Estamos cercados da parafernália eletrônica destrinchada pelas análises de Adorno, Hockeimer, MacLuhan, Walter Benjamin e outros. Ela reduz o mundo a uma aldeia que se intercomunica em tempo real. Porém, enquadrada em uma paisagem cultural hegemônica, que Boaventura de Sousa Santos qualifica de monocultura. A espetacularização da notícia procura naturalizar a imagem midiática, como se o mundo fosse o que vemos na TV ou na Internet. 
          Tudo isso molda-nos a identidade. Não há como configurá-la de outro modo. Somos vulneráveis à multimídia. E nunca a comunicação foi tão ágil, rápida e fácil, embora cara. Sem sair da cama, podemos saber o que ocorre na Ásia, falar ao telefone com um nepalês, entrar em um site de bate-papo e nos enturmar com um bando de jovens do Brooklin. À audição (rádio) somam-se a visão (foto, cine, TV) e a fala (telefone e Internet). Faltam apenas o cheiro e o contato epidérmico, o toque. 
          Diante de todo esse cipoal comunicativo levanta-se uma questão: e a intercomunicação pessoal, tão valorizada por Habermas? Quantos pais “acessam” os filhos? Como é a conversa olho no olho? Comunicação que se faz comunhão, interação, e que transmite, não apenas emoção de imagens e sons, mas algo mais profundo – afeto. 
          Reféns da tecnologia, sem aparatos eletrônicos temos dificuldade de dialogar com o próximo. Nossos avós punham a cadeira na varanda, e até mesmo na calçada, e ficavam horas jogando conversa fora. Hoje, a ansiedade dificulta o diálogo interpessoal. Preferimos a comunicação virtual, mental, mas não a corporal. O corpo se transforma em território do silêncio das palavras, embora se cubra de adornos que “falam”, como a roupa, a esbelteza malhada, os gestos...
          Nessa “fala” o corpo simula (faz de conta ser o que não é) e dissimula (esconde o que de fato é). Por isso, a comunicação interpessoal é arriscada, pois tende a desmascarar, trair, revelar contradições. O corpo sou eu e eu não sou tão bom quanto a imagem que projeto de mim mesmo. Como cavaleiro medieval, visto uma armadura que encobre a minha verdadeira identidade, a armadura pós-moderna da parafernália eletrônica. Ela me salva. Permite-me ser conhecido por uma imagem mediatizada pela multimídia ou, no contato pessoal, pelos adornos que me imprimem cheiro de grife. 
          Nu, sou um fracasso, uma decepção frente à minha baixa autoestima. Ainda mais se acrescento à nudez o que me desnuda por dentro, a fala. Não é por outra razão que os ícones projetados pela mídia – modelos, artistas, atletas, ricos - não falam. São fotografados e expostos excessivamente, mas nada se sabe do que pensam, em que acreditam, que valores abraçam ou que visão de mundo têm. São seres belos, porém silenciados. Se abrirem a boca, o balão desinfla, o encanto desaparece, a carruagem vira abóbora. 
          Não é fácil o verbo se fazer carne. Graças à multimídia, o verbo se faz caro e raro. É virtualizado para ser esvaziado de significado. Assim, não nos sentimos desafiados. Na imagem, a catástrofe é épica; na minha esquina, trágica. E ao contemplar o épico me iludo de que vivo em uma ilha imune à dor e ao sofrimento. E suporto a reclusão do silêncio temendo que a minha palavra se faça carne, ou seja, revele quem realmente sou - este ser frágil, carente, que ainda não descobriu a diferença entre prazer, alegria e felicidade.
          Por isso, costumam ser complicadas as relações familiares e de grupos que compartilham o mesmo espaço virtual, como toda relação confinada em um mesmo espaço. Não se desfila dentro de casa. No cotidiano, a imagem é atropelada pelas emoções. É o que Buñuel desvela no filme “O discreto charme da burguesia”. No espaço doméstico emerge o nosso lado avesso – aquela pessoa que realmente somos, sem maquiagens de bens, funções e adornos. 
          Para conviver fora de casa, vestimos a armadura. Vamos para a guerra, para o reino da competição e do sucesso a qualquer preço. Não podemos, portanto, mostrar a cara. Protegem-nos a parafernália eletrônica e o diálogo virtual. Somos o que não aparentamos e aparentamos o que não somos. Eis a pós-verdade, o paradoxo que a pós-modernidade nos impõe.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros. 
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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

DO NÃO-SER AO SER: UM CAMINHO DE AMOR


Hoje temos a alegria de receber um novo colaborador para o PortaVoz. Que ele seja muito bem - vindo. O Porta Voz está muito feliz com a sua vinda.


Por Kinno Cerqueira

Na peça A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, faz-se ouvir uma voz que traduz a angústia que habita o mais profundo da experiência humana: “Ser ou não ser, eis a questão...”. Esta questão posta por Sheakespeare parece ter estado bem presente na tradição geradora da literatura joanina, em especial da Primeira Epístola de João.
O leitor atento logo perceberá que esta epístola fala de dois tipos de existências: “a existência sem amor” e “a existência no amor”.
A existência sem amor designa o humano fascinado pela própria imagem, incandescido por seu próprio brilho, ensurdecido pela vibração da sua própria voz, enfim, preso no claustro de seu egoísmo. Seu contrário é a existência no amor, a qual descreve o ser humano que, por meio do amor, faz a experiência de libertação de si mesmo, tornando-se capaz de sair de si para encontrar-se com o outro e no outro.
A existência no amor é iluminativa, porque desensombra que o sentido da vida reside num movimento “para-além-mim”, que permite aprofundar a identidade do meu “eu” no encontro com um outro que, justamente por ser diferente de mim, faz-me ser mais plenamente humano (1 Jo 2,10). A caminhada do nosso eu para um outro constitui a dilatação interior que nos possibilita acolher o Amor, que é Deus mesmo (1 Jo 4,8).
A existência sem amor é solitária, sombria, tenebrosa. A existência sem amor é a fonte geradora de preconceitos, pois os preconceitos resultam do egoísmo que me faz querer que todas as pessoas sejam iguais a mim. O não-amor (que é o egoísmo) se revela no fechamento, na indisposição para o outro, na exarcebação do medo de que a singularidade do outro questione a absolutidade do meu eu.
No amor não existe medo; antes, o verdadeiro amor lança fora o medo... (1 Jo 4,18). A liberdade do amor não conhece trincheiras, pois nada é tão forte que não seja tão fraco diante do amor.
A esta altura, penso que não seria demasiada imponderação  redizer a afirmação de Sheakespere em linguagem joanina: “Amar ou não amar, eis a questão...”.

Kinno Cerqueira é pastor batista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) - na área de estudos bíblicos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

NA LUTA PELA SAÚDE O DIA DOS/DAS ENFERMOS/AS




Por Marcelo Barros

Embora a, cada ano, a ONU consagre o 07 de abril, como “dia mundial da saúde”, já desde os anos 90, é no 11 de fevereiro, festa da Virgem de Lourdes, que a Igreja Católica comemora o “Dia mundial do enfermo”. Não é ruim que haja duas datas anuais em que possamos recordar que saúde não é luxo nem artigo de comércio. É direito humano universal e necessidade de primeira categoria. Em um mundo no qual mais de um bilhão de pessoas sofre de extrema pobreza, agravada desde o início deste século XXI, a fome se torna epidemia e a saúde se transforma em algo quase inalcançável.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde como “o estado de completo bem-estar físico, psíquico, mental e social”. De acordo com essa compreensão, a saúde consiste não apenas em não estar doente, mas em alcançar um equilíbrio de vida sadia. As religiões antigas chamavam isso de salvação, no sentido de plenitude da vida e da graça divina em nossas vidas. A diferença entre uma pessoa santa e uma pessoa sana (sadia) é apenas um t. Isso não liga doença e pecado, culpa ou erro pessoal. Recorda que saúde plena é a realização total da vida. A tradição afro-brasileira denomina esta energia de Axé.

Se se aplicar rigidamente a definição da OMS,  ninguém pode-se considerar com plena saúde. Todos estamos continuamente na luta para vencer alguma fragilidade do corpo e do espírito que atenta contra o que seria a saúde profunda. Somos todos/as mais ou menos doentes. A saúde é um ideal a ser buscado cada dia.

No mundo moderno, os Estados assumiram que a saúde e sua proteção é direito humano. A sociedade tem obrigação de zelar pelo bem estar físico e psíquico de seus membros. Infelizmente, os governos de ideologia neoliberal decidiram diminuir ao máximo os encargos do Estado. O Banco Mundial defende que os investimentos na saúde têm dois tipos de serviço: os competitivos, passiveis de financiamento (por exemplo, campanhas de vacinação) e os discricionários, oferecidos à sociedade, de acordo com a capacidade de aquisição das pessoas. Isso significa que o cuidado com saúde tem de ser comprado. De fato, na maior parte dos países, como no Brasil atual, se multiplicam os planos privados. Vende-se saúde, como se fosse Coca-Cola.

A Constituição Brasileira estabelece que “saúde é direito de todos e dever do Estado”. Depois de uma longa luta dos movimentos populares, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), no início da década de 90, foi uma grande conquista da sociedade brasileira. Poucos anos depois, o governo de Fernando Henrique Cardoso aprovou um plano de terceirização da saúde que só não destruiu totalmente o SUS, porque os movimentos sociais e comunidades lutaram muito para denunciá-lo e para garantir as conquistas da Constituição. A partir daí, em muitos Estados, os governos entregam a administração de hospitais públicos e até do Sistema de Saúde a organizações privadas, denominadas de organizações sociais. Estas recebem hospitais e equipamentos públicos. O Estado investe e gasta, mas é o setor privado que administra e lucra. Mesmo neste sistema iníquo, veem-se sinais e testemunhos de generosidade humana, amor gratuito e doação por parte de médicos/as, enfermeiros/as e agentes de saúde. Entretanto, é claro que o sistema privado só cuida da saúde se tem lucros e benefícios, pois essa é a sua natureza.  Por isso, é importante que organizações da sociedade civil e de Igrejas se esforcem para chamar a atenção de todos para o cuidado com as pessoas doentes.

Neste 11 de fevereiro de 2019, a Igreja Católica celebra o XXVII Dia mundial do Doente que será celebrado de modo especial em Calcutá na Índia. Para essa celebração, por conhecer essa realidade de um mundo que tende a transformar tudo, até a saúde, em mercadoria  o papa Francisco propôs o tema evangélico “Recebestes de graça, dai de graça” (Mt 10, 8).

Na carta publicada pelo papa para esse dia, o papa insiste em denunciar “a cultura do descarte e da indiferença”. Para contrabalançar essa realidade, pede que se coloque “a generosidade gratuita como paradigma capaz de desafiar o individualismo e a fragmentação social dos nossos dias e para promover novos vínculos e formas de cooperação humana”. Escreve ainda: “O cuidado dos doentes precisa de profissionalismo e ternura, assim como de gestos gratuitos, imediatos e simples, como uma carícia, pelos quais fazemos sentir ao outro que nos é «querido».

No Brasil, atualmente, parece que muita gente prefere escolher o ódio e a violência como caminhos sociais e políticos. Certamente, isso adoece. O papa tem razão ao lembrar: Só o amor cura e dá saúde.

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 44 livros publicados, dos quais  “O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede da Paz e Loyola. Email: irmarcelobarros@uol.com.br

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

CADÊ A CULTURA POLÍTICA?




Frei Betto

      Cadê o novo? Cadê a moralidade? Dá vontade de fazer eco a Stanislaw Ponte Preta: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!”

      De nada adianta o desalento. É entregar o ouro ao bandido. Desopilar o fígado nas redes digitais é acender fósforo para conferir se há gasolina no tanque...

      A questão é mais profunda: não conseguimos criar no Brasil uma cultura política. A tradição patrimonialista, o mandonismo, o nepotismo, tudo isso esgarça o tecido de nossas instituições democráticas. A maioria se elege ou ocupa cargos públicos de olho nos proveitos pessoais e corporativos. Poucos têm princípios éticos e objetivos claros de serviço ao bem comum. Bastou aparecer a primeira boquinha de uma viagem à China e lá se foi, alvoroçado, um bando de deputados felizes com a mordomia.

      A estrutura do Estado é vista como uma grande vaca, na qual cada um busca a teta mais gorda para a sua boca. O discurso da urgente contenção de gastos é como o sermão do padre que, ao celebrar missa para os alcoólicos anônimos, enchia seu cálice de vinho. 

      “Façam o que digo e não o que faço”. São sempre os outros que devem apertar o cinto em nome da salvação nacional. Nunca os políticos, os magistrados e os militares. “Nada é o bastante para quem considera pouco o suficiente”, já alertava Epicuro, no século IV a.C. Na apertada balsa que pretende conduzir a nação a um futuro melhor, atirem-se ao mar os sem mandato, os sem toga e os sem farda. Alguém deve pagar a conta. E ela sobra, invariavelmente, para os mais pobres.

      Por que, no Brasil, soa como ofensa falar em imposto progressivo? Nessa descultura da boca pra fora, sobejam elogios à Noruega, Dinamarca e Suécia, onde vigora uma cultura política de fortes raízes. Mas aqui ninguém está disposto a ceder um grão de mordomia. O trio (mandato, toga e farda) do privilégio (termo que deriva de ‘lei privada’, que vale para uns e não para todos) não abre mão do auxílio-moradia, do plano de saúde especial, de carros e viagens aéreas pagas pelo contribuinte, férias prolongadas, seguranças etc. Essa gente nunca leu Platão e Aristóteles, Montesquieu e Rousseau, Habermas e Bobbio, e aprecia Gandhi e Mandela apenas como retratos na parede.

      E cadê a oposição? Dizem que a esquerda (se é que ainda existe) só se une na cadeia... De fato, o caciquismo impede as forças da oposição de terem uma estratégia e um programa comuns. As críticas à situação são pontuais. E quase sempre emocionais, de pretender desconstruir o adversário, não por argumentos convincentes, e sim pela ridicularização e a galhofa. 

      Qual a proposta alternativa da oposição à reforma da Previdência? E à retomada do crescimento, combate ao desemprego e melhoria da saúde e da educação? Cadê o trabalho de base, os vínculos orgânicos com as classes populares, a alfabetização política?

      Apesar de tudo, não nos resta outra via fora da política. Pode-se odiá-la, repudiá-la ou ficar indiferente a ela. Mas é ela que determina a nossa qualidade de vida, como trabalho, moradia, alimentação e saúde. Quem não gosta de política é governado por quem gosta. E tudo que os maus políticos desejam é que fiquemos alheios à política. Assim, damos carta de alforria aos corruptos, nepotistas e similares.

      Mas como criar uma cultura política se a Escola sem Partido pretende proibir o tema nas salas de aula? Nossa incultura política é tão rasteira que, em vez de o Estado cumprir a sua função constitucional de dar segurança à nação, ele libera a posse de armas. E há quem esteja de acordo com o “cada um que se defenda!” E seja o que Deus não quer...

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.


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