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quinta-feira, 28 de junho de 2018

SUICÍDIO




Por Frei Betto

       Os recentes suicídios da estilista Kate Spade e do chef Anthony Bourdain, somados ao de alunos de colégios de classe alta em São Paulo, exigem reflexão.

       Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde, dados de 2015) o suicídio mata mais jovens entre 15 e 29 anos que o HIV. Fica atrás apenas dos acidentes de trânsito.

       Nos EUA, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão do governo, admite aumento de 30% nos suicídios desde 1999, a maioria por armas de fogo. No Brasil, o índice é de 6,9 casos por cada 100 mil habitantes.

       São muitas as causas: perda de entes queridos (por morte ou separação), problemas financeiros ou legais, abuso de substâncias químicas (drogas, bebidas, medicamentos), declínio da saúde física ou mental etc. Entre os jovens, perda da autoestima.
       Nossas famílias e escolas tratam o tema como tabu. Calam-se sobre o que precisa ser debatido: sexo, falta de afeto, dor, separação, fracasso e morte.

       Nessa sociedade neoliberal que enfatiza como valores supremos riqueza, poder, fama e beleza, é indispensável a educação fomentar a consciência crítica perante tal proposta consumista/hedonista e instruir os jovens a lidar com perdas e conflitos emocionais. E se as coisas derem errado em suas vidas, o que fazer?

       O suicida é um ator que entra em cena quando cai a cortina do palco. Ele nos interpela. Joga sobre nós o peso da culpa. Por que não fomos capazes de salvá-lo? Deixamos de amá-lo o suficiente? Há várias formas de suicídio e a pior nem sempre é a que faz cessar a vida como fenômeno biológico.

       A Bíblia menciona raros casos de suicídios, como Abimelec (Juízes 9,54), Saul (1 Samuel 31, 4), Zimri (1 Reis 16,18) e Judas (Mateus 27,5). A Igreja primitiva silenciou diante do fato, embora eminentes teólogos, como Eusébio de Cesareia, João Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho, tenham aconselhado encará-lo com misericórdia.

       No século VI, a Igreja passou a negar funerais religiosos aos suicidas. Pouco mais de um século depois, eles foram excomungados. Isso mudou com o novo Catecismo, aprovado pelo papa João Paulo II, em 1983. Embora cometam um atentado ao maior dom de Deus, a vida, deve-se acolher com misericórdia os suicidas induzidos por “distúrbios psíquicos graves, angústia ou o medo grave da provação, do sofrimento ou da tortura”, fatores que lhes diminuem a responsabilidade. E acrescenta: “Não se deve desesperar da salvação eterna das pessoas que se mataram. Deus pode, por muitos caminhos que só Ele conhece, dar-lhes ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida” (2283 – Catecismo da Igreja Católica).

        Meu confrade frei Tito de Alencar Lima foi levado ao suicídio, aos 28 anos, devido às torturas sofridas sob a ditadura militar, conforme retrato em Batismo de sangue (Rocco), obra levada ao cinema por Helvécio Ratton.

       Por ocasião do retorno de suas cinzas ao Brasil, em solene celebração na catedral da Sé, em São Paulo, o cardeal Paulo Evaristo Arns afirmou na homilia: “Frei Tito não se matou. Buscou do outro lado da vida a unidade perdida deste lado.”

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

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terça-feira, 26 de junho de 2018

SOMOS TODOS MIGRANTES




Por Marcelo Barros

Em torno ao 20 de junho, que a ONU consagra como "dia mundial dos refugiados", a Pastoral dos Migrantes organiza no Brasil a cada ano a Semana Nacional dos Migrantes. Marcada por vários eventos, isso ocorreu na semana passada e teve como tema: "A vida é feita de encontros". O lema dizia: "de braços abertos, sem medo de acolher".
Sem dúvida, cada vez é mais necessária essa reflexão nas diversas regiões do Brasil. Em Roraima, a cada dia aumenta a quantidade de migrantes venezuelanos que escapam da guerra econômica, movida pelos comerciantes de classe média e pela elite contra o governo. No Acre, Rondônia e São Paulo, são muitos os haitianos, fugidos da fome e da violência social em seu país. Por todo o Brasil, africanos e vítimas das guerras no Oriente Médio tentam a vida em meio a muitas dificuldades. Desde 2016, os próprios brasileiros, sem sair do seu país, se transformaram pouco a pouco em um povo de empobrecidos. Somos todos vítimas de golpes econômicos e políticos, que fazem parte da chamada "guerra de baixa intensidade",  que o império desencadeia contra os países que tentaram se libertar.
No mundo inteiro são quase 200 milhões de migrantes e refugiados. Para a ONU, refugiados são as pessoas que fogem de guerras ou de perseguições e são reconhecidas como necessitadas de proteção internacional. Os refugiados têm estatuto social reconhecido. São protegidos por leis internacionais, que embora nem sempre se cumprem, ainda vigoram. Os migrantes não são reconhecidos legalmente. Cada país tem legislação própria e age como quiser.
Nesses dias, na costa da Itália, os governos da Itália e da ilha de Malta se recusaram a deixar encostar em seus portos o navio Aquarius que trazia 629 migrantes, entre os quais sete mulheres grávidas e mais de cem menores desacompanhados, todos resgatados do mar na costa da Líbia. Alguns passageiros mais corajosos queriam se arriscar em nadar até a costa. Pescadores ou habitantes da aldeia italiana que os ajudassem seriam considerados como fora da lei e poderiam ser presos. Depois que o navio ficou parado durante dias no mar sem ter aonde aportar, o novo governo espanhol decidiu fazer o gesto humanitário de salvar aquelas vidas. Várias cidades espanholas se dispuseram a receber uma quantidade determinada daqueles náufragos de um mundo que afunda.
Em todas as tradições espirituais, acolher quem é migrante ou estrangeiro é considerado uma ação espiritual que agrada a Deus. Na Bíblia, a migração é central. Conforme a tradição bíblica, o patriarca Abraão era um migrante que partiu de Ur na Caldeia em busca de uma terra nova. Moisés era migrante, quando conduziu o povo de escravos para a libertação. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo exerceu a sua missão de fundar comunidades e anunciar a boa notícia do reino divino como migrante. Os primeiros cristãos se diziam peregrinos e residentes estrangeiros nesse mundo.
Na época de Paulo, também Roma, em plena expansão imperial, tentou defender-se dos "estrangeiros". O livro dos Atos dos Apóstolos menciona o decreto do imperador Cláudio, que estabelecia a expulsão dos judeus da Urbe (cf. Atos 18,2). Pelo fato que aqueles estrangeiros se tornavam cada vez mais numerosos e reivindicaram direitos civis, Roma decidiu expulsá-los. Mas o curso dos eventos é tortuoso. Depois de poucos anos, um judeu - precisamente Paulo - desembarca na capital do Império. Por dois anos, Paulo se estabelece em Roma. Mora em quarto alugado. E justamente naquele pequeno local – que pertencia talvez ao que, hoje, chamaríamos a prefeitura de Roma - Paulo "evangelizava" (cf. At 28,30).
Atualmente, vários países da Europa recebem os migrantes colocando-os presos e isolados em campos de concentração. Mesmo muitos cristãos se posicionam como contrários ao acolhimento. O papa Francisco tem repetido apelos fortes a favor dos migrantes. Apesar disso, nos países da Europa Ocidental, mais da metade dos católicos, inclusive padres e bispos, se pronunciam contra receber estrangeiros. 
Não é difícil saber que conclusões podemos extrair disso. Antes de tudo que o Cristianismo e outras tradições espirituais têm falhado em sua missão de testemunhar que Deus tem um projeto para o mundo e ser dele é entrar e participar desse projeto de solidariedade e acolhida para todos. Sem dúvida, a palavra fundamental é a de Jesus ao dizer: "Fui estrangeiro e vocês me acolheram". "O que vocês fizerem com um desses pequeninos em meu nome é a mim que fazem (Mt 25, 36 e 40).

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

PRANTO NA FRONTEIRA



 Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

            Que som é esse, triste, rouco, desesperado?  De onde vêm esse pranto, esses soluços, essa tristeza infinita?  Que palavras são essas, repetidas como mantras, incessantemente, tristemente, obstinadamente?  O que dizem, a quem chamam, de que bocas saem?  São dezenas, centenas, milhares de crianças.  Vêm de Honduras, Guatemala, El Salvador ou qualquer outra parte da América Central ou de outro canto do continente.  Choram desconsoladamente porque foram separadas de seus pais e não há nada que possa consolar uma criança que se sente sozinha em um mundo hostil e não encontra a mãe ou o pai para protegê-la.  Esses pequenos chamam, uma e outra vez, insistentemente, desesperadamente: “Papai! Mamãe!”
            A política anti-migratória dos Estados Unidos endureceu ainda mais.  O presidente faz constantes e bombásticas declarações, alegando que não pode transformar o país em um campo de refugiados, que todo adulto que entrar ilegalmente em solo americano será considerado criminoso ou delinquente, portanto passível de prisão e deportação. Muitos chegam com os filhos menores.  E como estes não podem ser encarcerados, são separados dos pais. 
            Entre abril e junho mais de duas mil crianças centro-americanas foram separadas dos pais quando suas famílias tentaram entrar no país do norte passando fronteiras oficiais.  Além destes, há um número elevado de pessoas que chegam aos EUA por vias não oficiais. Se descobertos pela polícia de fronteiras, passam pelo mesmo processo de separação e deportação. Na verdade, tal como foi feito com os jovens “dreamers” (sonhadores) que chegaram ao país na infância e ali cresceram, o governo agora faz pressão sobre o Congresso com a dramática separação de famílias para levar avante sua reforma migratória mais restritiva.  
            A lei aprovada em 2008 e que visava a conter o tráfico de crianças determina que os menores imigrantes que chegam sozinhos ao país permaneçam o mínimo tempo possível nos centros de detenção e sejam rapidamente encaminhados a uma família de acolhida.  Proíbe igualmente a deportação imediata de menores sem documentos. E limita a menos de um mês o tempo que uma mãe pode permanecer com seu filho menor em um centro de detenção.  
            Ora, se as famílias forem separadas já não há essa restrição de tempo.  A prisão pode estender-se e a deportação acontecer sem restrição de qualquer espécie devido à presença de uma criança.  Por sua vez, as crianças que chegam sozinhas ou que são separadas dos pais têm um limite de tempo para permanecer em um centro de detenção e devem ser encaminhadas o mais rápido possível a uma família de adoção ou a algum parente residente nos EUA.  Sucede, porém, que muitas vezes esses familiares não respondem ao chamado telefônico e não resgatam a criança.  E isso pela simples razão de que têm medo de que, ao fazê-lo, suas vidas se compliquem, a polícia os deporte por serem indocumentados ou ainda que a documentação pela qual esperam tão ansiosamente lhes seja negada. 
            As crianças, sozinhas e com muito medo são, então, geralmente postas em salas com grade, agasalhadas com cobertores metálicos.  E aí choram a ausência de seus pais, chamando por eles.  São pequenos de 4, 5 ou 6 anos, para quem a referência maior são os pais e a quem a solidão em que se encontram literalmente desespera. 
            A situação desses menores comoveu o mundo inteiro ao serem veiculadas imagens e áudios onde as crianças aparecem atrás de grades e podem ser ouvidas chamando pelos pais em meio a um pranto convulsivo. Protestos se fizeram ouvir não apenas das organizações defensoras de direitos humanos.  A primeira dama dos EUA, Melania Trump, veio a público declarar-se contra a separação das crianças de seus pais.  A ex-primeira dama Laura Bush protestou igualmente com veemência.  A Associação Americana de Pediatras declarou que a prática de separar crianças  de seus pais pode causar-lhes dano irreparável.
            Nada parece comover ou demover a alta administração do governo estadunidense, que cita inclusive a Sagrada Escritura para justificar sua posição. O Secretário de Justiça cita a Bíblia, na Carta aos Romanos, capítulo 13, para justificar a política migratória de “tolerância zero”: “Há que obedecer as leis do governo, porque Deus ordenou o governo para seus propósitos. “ 
            Esquece o secretário que o mesmo Paulo de Tarso, autor do versículo citado, convoca à prática do amor, que supera toda lei.  Assim fazendo, segue seu Mestre, Jesus de Nazaré, que foi sempre livre diante da Lei quando estava em jogo o bem das pessoas. Se as pessoas em questão são crianças menores de idade e em situação de extrema vulnerabilidade, com mais razão ainda.
            Nas fronteiras, ecoa o pranto dos milhares de menores indefesos, tornados órfãos por decreto do governo do país mais rico do mundo. Parece esquecido nessa política migratória radicalmente restritiva o fato de que esse país conseguiu a supremacia econômica e o poder de que hoje desfruta em boa parte devido ao trabalho dos imigrantes. O lamento das crianças pode não ser atendido pelos altos escalões do governo estadunidense, mas certamente chega aos ouvidos e ao coração de Deus. 

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de  “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc), entre outros livros.
 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>


sábado, 23 de junho de 2018

O PESO KÁRMICO DA HISTÓRIA DO BRASIL





por Leonardo Boff

A amplitude da crise brasileira é de tal gravidade que nos faltam categorias para elucidá-la. Tentando ir além das clássicas abordagens da sociologia crítica ou da história, tenho-me valido da capacidade elucidativa das categorias psicanalíticas da “sombra”e da “luz” generalizadas como constantes antropológicas, pessoais e coletivas. Ensaiei uma compreensão possível que nos vêm da teoria do caos, capítulo importante da nova cosmologia, pois deste caos, em situação de altíssima complexidade e jogo de relações, irrompeu a vida que conhecemos, inclusive a nossa. Esta mostrou-se capaz de identificar aquela Energia Poderosa e Amorosa que tudo sustenta, o Princípio Gerador de todos os Seres e abrir-se a Ele em veneração e respeito.
Perguto-me que outra categoria estaria no repositório da sabedoria humana que nos poderia trazer alguma luz nas trevas nas quais estamos todos mergulhados. Foi então que me lembrei de um diálogo instigante entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda, eminente filósofo japonês (cf. Elige la vida, Emecé. B.Aires 2005) que durou vários dias em Londres. Ambos creem na realidade do karma, seja pessoal, seja coletivo. Prescindindo das várias interpretações dadas a ele, me parecia ter encontrado aqui aqui uma categoria da mais alta ancestralidade, manejada pelo budismo, hinduismo, jainismo e também pelo espiritismo para explicar fenômenos pessoais e coletivos.
O karma é um termo sânscrito originalmente significando força e movimento, concentrado na palavra “ação” que provocava sua correspondente “re-ação”. Este aspecto coletivo pareceu-me importante, por que, não conheço (posso estar equivocado) no ocidente nenhuma categoria conceptual que dê conta de um sentido de devir histórico de toda uma comunidade e de suas instituições nas suas dimensões positivas e negativas. Talvez, devido ao arraigado individualismo, típico do Ocidente, não tenhamos tido as condições de projetarmos um conceito suficientemente abrangente.
Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa mas conota todo o ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más que são feitas, vale dizer, os “debitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista, carrega esta conta por mais renascimentos possa ter, até zerar a conta negativa.
Toynbee dá-lhe outra versão que me parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco nossa história. A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo. Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.
Não se requer a hipótese dos muitos renascimentos porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo (p.384). As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica atua na história, marcando os fatos benéficos ou maléficos. C.G.Jung em sua psicologia arquetípica notara, de alguma forma, tal fato.
Apliquemos esta lei kármica à nossa situação. Não sera difícil reconhecer que somos portadores de um pesadíssimo karma, em grande escala, derivado do genocídio indígena, da super-exploração da força do trabalho escravo, das injustiças perpretadas contra grande parte da população, negra e mestiça, jogada na periferia, com famílias destruídas e corroídas pela fome e pelas doenças. A via-sacra de sofrimento desses nossos irmãos e irmãs tem mais estações do que aquela do Filho do Homem quando viveu e padeceu entre nós. Excusado é citar outras maldades.
Tanto Toynbee quanto Ikeda concordam nisso:”a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, através de uma revolução espiritual no coração e na mente(p.159), na linha da justiça compensatória e de políticas sanadoras com instituições justas. Sem esta justiça minima a carga kármica não se desfará. Mas ela sozinha não é suficiente. Faz-se mister o amor, a solidariedade a compaixão e uma profunda humanidade pra com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo “é a última realidade”(p.387). Uma sociedade incapaz de efetivamente amar e de ser menos malvada, jamais desconstruirá uma história tão marcada pelo karma. Eis o desafio que a atual crise nos suscita.
Não apregoaram outra coisa os mestres da humanidade, como Jesus, São Francisco, Dalai Lama, Gandhi, Luther King Jr e o Papa Francisco? Só o karma do bem redime a realidade da força kármica do mal.
E se o Brasil não fizer essa reversão kármica permanecerá de crise em crise, destruindo seu próprio futuro.
Leonardo Boff escreveu O destino do homem e do mundo, 12. ed., Vozes 2012.


sexta-feira, 22 de junho de 2018

OS FUROS DA LAVA JATO



Frei Betto

      A corrupção é inerente à história humana. Até no grupo de apóstolos escolhidos por Jesus havia um corrupto: Judas Iscariotes. E quantos de nós podem dizer com sinceridade que nunca furtaram uma manta de avião, sonegaram o imposto de renda, embolsaram o troco excessivo entregue por engano pela caixa do supermercado? 
      A corrupção decorre da impunidade e da imunidade. Impunidade de empreiteiras, empresas, frigoríficos e bancos que, graças ao caixa dois, tinham (e muitos ainda têm) em mãos juízes, políticos e fiscais. E imunidade assegurada por essa aberração constitucional chamada foro privilegiado, que derruba o princípio angular do direito e legitima a verdade de que nem todos são iguais perante a lei. 
      Agora, surgiu uma pedra no meio do caminho de corruptos e corruptores: a Lava Jato. Em si, necessária e urgente. É a primeira vez na história do Brasil que políticos graduados e donos de empresas são encarcerados e obrigados a devolver aos cofres públicos parte do que roubaram. 
      Mas há lisura na Lava Jato? Infelizmente os fatos demonstram que não. Promotores buscam vaidosamente a luz dos holofotes; prisões são feitas antes da devida investigação e solidez de provas; frequentes vazamentos jamais são apurados e os responsáveis punidos; e as informações contrabandeadas dos autos para a mídia são preconceituosamente seletivas, focando uns partidos e poupando outros...
      No tsunami de corrupção que assola o Brasil, a Lava Jato constitui uma exceção. Onde estão os criminosos descobertos pela Operação Zelotes? Todos soltos. Onde os responsáveis pela catástrofe provocada pela Samarco, em Minas? Todos em liberdade. E as maracutaias do metrô de São Paulo? Debaixo do tapete.
      O elitismo é um carrapato que suga privilégios da Justiça. Quanto tempo levará o STF para condenar os culpados e absolver os inocentes? Até hoje o STF não levou nenhum político com mandato à cadeia. E no passo de tartaruga que caracteriza a nossa suprema corte, pode ser que muitos crimes prescrevam. Além disso, a polícia manda algemar, a Justiça manda ao Gilmar…
      Uma pergunta que não quer calar: como toda essa montanha de dinheiro roubado pelos réus da Lava Jato transitou do Brasil ao exterior? Levada em mala de turista? A nado? Enfiada em tubos de pasta de dente? 
      Se o Banco Central tem olhos para qualquer quantia acima de 10 mil reais movimentada entre bancos, como justificar a cegueira diante de vultosas quantias da corrupção?
      Não basta espalhar veneno pela casa para acabar com os ratos. Do mesmo modo, enquanto as instituições brasileiras não passarem por profundas reformas, como erradicar o foro privilegiado e divulgar na internet todos os atos públicos, dos salários dos politicos às licitações, os ratos continuarão à espreita, dispostos a aproveitar as múltiplas brechas hoje existentes.
      O moralismo causa indignação. Mas não inibe a corrupção. 

Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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terça-feira, 19 de junho de 2018

FESTAS JUNINAS E PROFECIA





Por Marcelo Barros

Por todo o Nordeste, principalmente no interior, o mês de junho é marcado pelas festas juninas. No entanto, em todas as regiões do Brasil, a festa de São João Batista ultrapassa os limites da celebração religiosa para se tornar festejos da natureza, com fogueiras, fogos de artifício e danças características da época. Na cordilheira dos Andes, no solstício do inverno, ou seja, por volta do 21 de junho, a festa do Inti Rami, o renascimento do Sol, manifesta a vitalidade das culturas indígenas e a união de diversos povos originários em defesa da natureza ameaçada.

As festas juninas pedem organização, ensaios e disciplina. Muitas de suas brincadeiras, como o casamento caipira e a quadrilha, envolvem críticas à sociedade desigual em que vivemos. Figuras como juiz e padre são ridicularizadas por seu apego ao dinheiro e às aparências sociais. Esses costumes unem o povo em expressões de igualdade e liberdade, que, mesmo de modo espontâneo, podem ser sinais antecipadores da festa da liberdade social e política que o Brasil precisa.

No Brasil do Catolicismo popular, mesmo sem saber, as pessoas que vivem as festas juninas cumprem a profecia que, segundo o evangelho,  Zacarias, pai de João Batista, recebeu do anjo a respeito do nascimento do seu filho: "Por seu nascimento, muitos se alegrarão".

Na época de Jesus, há tempos, o povo esperava um profeta que viesse anunciar um tempo novo de justiça e de graça divina. De acordo com o evangelho, o nascimento de João Batista revelou que esse tempo novo teve sinais muito claros. Isabel, uma mulher velha e estéril, engravidou e deu a luz. O pai Zacarias que tinha ficado mudo, assim que o menino nasceu, se pôs a falar e a cantar a bondade divina. Esses fatos maravilhosos provocaram em todos alegria porque serviram como sinais de que, em todos os tempos, Deus é sempre capaz de tornar fecundo o útero estéril das sociedades humanas e não apenas das pessoas. Isso significa que o amor divino pode renovar o que, em nosso modo de ser e nas nossas vidas, ainda é envelhecido e estéril. Ele nos faz superar a mudez e a apatia para proclamar o seu projeto de libertação.

Atualmente, no Brasil, em meio à crise social e política que vivemos, não deixa de ser profecia de esperança e de resistência ver as pessoas superarem os muitos e justificados motivos de tristeza e colocarem suas melhores energias na festa que, nesses dias, organizam e vivem de forma tão comunitária e criativa.

Quem tem fé aprende a valorizar esses costumes populares e pode neles vislumbrar sinais de um tempo novo. Conforme os evangelhos, João Batista propôs a todos uma renovação de vida baseada na justiça e na relação com a Terra e as águas. O seu batismo era um rito inspirado na cultura e na religião popular do seu tempo e significava uma ruptura com uma sociedade injusta e desigual, legitimada por uma religião que tinha se tornado, quase somente cultual e baseada em normas legalistas. João Batista propõe uma espiritualidade não apenas baseada no culto e sim na Ética e na pratica da solidariedade (Lucas 3).

Ao ser batizado por João no rio Jordão, Jesus se revelou discípulo de João profeta e começou sua missão profética.  Assim também, podemos esperar que as pessoas que participam dos festejos que lembram São João, homens e mulheres de várias Igrejas cristãs, assumam a missão de profetas e profetizas de Deus que nos pede para construirmos uma sociedade irmanada em uma humanidade renovada e renovadora.
 Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas", Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

AQUARIUS



Por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Termômetro da crise de indiferentismo que assola nossa sociedade, a questão migratória continua a mostrar-se um sintoma terrível e de alta negatividade. O barco Aquarius, que transporta mais de 600 migrantes – entre eles sete mulheres grávidas e mais de cem menores desacompanhados – resgatados da costa líbia, permaneceu por vários dias parado no meio do mar. Esperava poder atracar em algum porto italiano ou na ilha mediterrânea de Malta.  Porém, ambos os países recusaram-se a abrir seus portos para acolhê-lo.  

O ministro do interior da Itália, Matteo Salvini, tuitou uma declaração seca e cortante: "Salvar vidas é um dever. Transformar a Itália em um enorme campo de refugiados, não. A Itália não vai mais ceder e obedecer. Desta vez, HÁ ALGUÉM QUE DIZ NÃO". Enquanto isso, os migrantes aguardavam, o sol queimava e as provisões escasseavam.  E o ministro seguia convicto de que naquela situação, acolher os migrantes do Aquarius não equivalia a salvar vidas. 

O exército de Malta não abriu os portos para o Aquarius, mas levou a bordo provisões para 24 horas.  Foi quando brilhou, como luz de esperança, a decisão do recém-eleito presidente da Espanha, Pedro Sánchez.  A Espanha acolheria o barco para “evitar uma tragédia humanitária” e abriria o porto de Valencia. 

Acompanhando a decisão de Pedro Sánchez, várias cidades e regiões do país se comprometeram a receber um determinado número de passageiros do Aquarius: o país basco, a cidade de Madrid, a região de Baleares, entre outras. Barcelona havia oferecido seu porto antes do pronunciamento do presidente, que acabou por escolher Valencia para o desembarque dos refugiados. 

Diante de uma Europa que parece criar um crescente bloqueio antimigrantes e uma mentalidade cada vez mais hostil ao acolhimento deles, a Espanha aparece como exceção de solidariedade e humanidade.  Mesmo nos tempos mais agudos da crise migratória, a política espanhola evitou voltar as costas aos refugiados e transformá-los em bodes expiatórios.  E o recém empossado presidente marca sem dúvida um ponto político e diplomático adotando uma posição de acolhimento diante do fechamento de seus dois vizinhos. 

Apesar dos insistentes apelos do Papa Francisco em favor dos migrantes, nem mesmo os católicos parecem sensibilizar-se para a grande tragédia que representa a rejeição dessa imensa massa de pessoas que fogem da violência, da fome, da morte, enfim em seus países de origem.

Na França, recente pesquisa feita pela revista L´Express mostrou que, entre os católicos ouvidos, menos da metade se declarou aberta à acolhida dos migrantes. E mesmo os que são mais lúcidos e positivos sobre essa questão revelam um alto nível de pessimismo em relação ao sucesso da integração dos estrangeiros que batem às portas de seu país.  A maioria crê que eles não conseguirão integrar-se.

Trata-se realmente de uma tragédia, mas de dupla dimensão.  Por um lado, a tragédia real dos migrantes que atravessam longuíssimas distâncias, enfrentam um sem número de dificuldades e perigos em busca de uma vida com um mínimo de decência para si e suas famílias.  Tantos encontraram a morte enquanto buscavam a vida.  

Não menos grave, porém, é outra tragédia, de igual senão maior peso. Trata-se da incapacidade crescente que se percebe nas sociedades ocidentais de abrir espaço para a hospitalidade e o acolhimento do outro que precisa de ajuda.  Rejeitar e mandar de volta pessoas que saíram de suas pátrias porque não têm outra opção para continuarem vivas é algo muito grave.  

Parece que o migrante é alguém que, por não ser cidadão do lugar onde procura a chance de uma nova vida, não é plenamente humano. A ética, os direitos humanos e todas as instâncias que regem o funcionamento de uma sociedade reconhecem ao estrangeiro e ao migrante os mesmos direitos permitidos a todo ser humano.  No entanto, por interesses econômicos e uma malsucedida política de fronteiras, os refugiados são cada vez mais considerados por muitos uma ameaça aos interesses dos países onde desejam se instalar. 

O “sintoma” do estrangeiro sublinha os limites dos estados-nação e a consciência política que os configura.  Interiorizamos essas limitações e tendemos a reagir com a convicção de que estrangeiros e migrantes não gozam dos mesmos direitos que nós. Porém, urge tomar consciência de que a dignidade humana pertence aos seres humanos, quaisquer que eles sejam, independentemente de seu reconhecimento pela lei, ou da posse de papéis que atestam sua cidadania.

Enquanto o Aquarius e seus passageiros distribuídos em embarcações auxiliares singram rumo à Espanha, esta grave questão se levanta sempre com mais força.  Está em jogo não a nossa cidadania, mas a nossa identidade de seres humanos. 


 Maria Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora deTestemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.

 Copyright 2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>

sexta-feira, 8 de junho de 2018

A CRISE BRASILEIRA PARTE DA CRISE GLOBAL


por Leonardo Boff

Não se pode analisar o Brasil só a partir do Brasil. Nenhum país está fora das conexões internacionais, nem a fechada Coréia Norte, que a planetização inevitavelmente criou. Ademais nosso país é a sexta economia do mundo, coisa que desperta a cobiça das grande corporações que querem vir para cá, não para ajudar no nosso desenvolvimento com inclusão, mas para poder acumular mais e mais, dada a extensão de nosso mercado interno e da superabundância de commodities e de bens e serviços naturais, cada vez mais necessários para sustentar o consumismo dos países opulentos.

Três nomes devem ser lembrados, pois configuraram o quadro atual da economia e da política mundial. O primeiro é sem dúvida Karl Polaniy que já em 1944 notou “A grande Transformação” que ocorria no mundo. De uma economia de mercado estávamos passando para uma sociedade de mercado. Vale dizer, tudo é comercializável, até as coisas mais sagradas. Com tudo podemos lucrar, coisa que Marx em sua Miséria da Filosofia chamou de a grande corrupção e de a venalidade geral. Até órgãos humanos, a verdade, a consciência, o saber se transformaram em meios de ganho. Tudo é feito na lógica do capital que é a concorrência e não a solidariedade, o que faz as socedades se esgarçarem em lutas ferrenhas entre as empresas.

Outros dois nomes cabem ser citados: Margareth Tachter e Ronald Reagan. Como consequência da erosão do socialismo real, entrou, vitorioso, o capitalismo agora sem peias, impostas antes pela contenção feita pelo modo de produção socialista. Agora o capitalismo pôde viver tranquilo sua lógica individualista, acumuladora e consumista. Tatscher era consequente ao afirmar que a sociedade não existe. Existem indivíduos que lutam por si contra todos. Reagan sustentou a total liberdade do mercado, a diminuição do Estado e o processo de privatização dos bens nacionais. Era o triunfo do neoliberalismo. Antes com o liberalismo, para usar uma metáfora, a mesa estava posta. Os endinheirados ocupavam os primeiros lugares e se serviam à tripa forra. Os demais encontravam seu lugar em alguma canto da mesa. Mas estavam à mesa. Com o neoliberalismo a mesa está posta. Mas somente podem participar quem tem condições de pagar. Os demais disputam os lugares ao pé da mesa com os cães, comendo restos.

Esta política neoliberal implantada no mundo inteiro, deu livre curso às grandes corporações de poderem acumular o mais que podem. O lema de Wall Street era e continua sendo:greed is good (a ganância é boa). Tal vontade de acumulação fez com que um pequeno número de pessoas controlassem grande parte da riqueza mundial, gestando um mar de pobres, miseráveis e famelicos. Como a cultura do capital não conhece a compaixão nem a solidariedade e somente a competição e a supremacia do mais forte, criou-se um mundo com um nível de barbárie raramente alcançado na história.

Do meu ponto de vista, o capitalismo como modo de produção e sua ideologia política o neoliberalismo atingiram o seu fim, num duplo sentido. Lograram seu fim, vale dizer, alcançaram o seu fim-objetivo: a suprema acumulação. E o seu fim como término e desaparecimento. Não porque o queiramos, mas porque a Terra limitada em bens e serviços, grande parte não renováveis, não aguenta um projeto ilimitado rumo ao infinito do futuro. A Terra mesma tornará esse projeto impossível. Ou ele muda de modo de produção e de consumo ou será condenado a desaparecer. Como não possui um sentido de pertença e trata a natureza como mera coisa a ser explorada incontrolavelmente, seguirá um caminho sem retorno, pondo em risco o sistema-vida e a própria Casa Comum que poderá se tornar inabitável.

Ora, no transfundo teórico de nossos neoliberais brasileiros, os que deram o golpe e elaboraram “A Ponte para o Futuro” (para o fracasso) vem imbuídos, sem o mínimo de consciência e de crítica, desse sonho mau neoliberal. Querem um Brasil só para eles, ou uma provincia secundária, agregada e dependente do grande Império do Capital. Eis a nossa ruína e a nossa desgraça. Eles prolongam a dependência e a logica colonial.

Um país que mal e mal estava dando os primeiros passoa rumo a sua refundação, sobre outras bases, valores e princípios, com os olhos abertos e as mãos operosas em políticas de desenvolvimento humano com inclusão social foi desvergonhadamente abortado. Aqui reside a nossa verdadeira crise que perpassa todas as instâncias.

Mas o que deve ser tem força. Ainda assim cremos e esperamos que superaremos essa travessia dolorossísima para as grandes maiorias, em fim, para todos. Iremos ainda brilhar. Cantou o poeta em tempos sombrios como o nosso: “faz escuro mas eu canto”. Eu imitando-o digo:”em meio às incertezas, ainda sonhamos e esse sonho é bom e antecipa uma realidade benfazeja”.

Leonardo Boff é filósofo e teologo e escreveu:Brasi: concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

VISITA A LULA


 Por Frei Betto

               Fiquei ontem das 16h às 17h15 com o ex-presidente Lula na cela que ele ocupa na Superintendência da Policia Federal, em Curitiba. O recinto de 5 metros quadrados abriga a cama junto à janela, uma mesa no centro, esteira para exercícios físicos a um canto e o armário colado à divisória entre a cela e o banheiro. Na parede, uma única foto – ele com filhos, netos e bisneta.

               Encontrei-o vestido com um conjunto de moleton azul, muito animado, mais magro e bem penteado. Sobretudo, bem informado. Dispõe de TV aberta, pela qual acompanha o noticiário e se entretém com filmes. Prefere a TV Aparecida, devido à programação de música sertaneja e pela qual assiste diariamente à missa das 18h.

               Recebe todas as manhãs um clipping de notícias de jornais, blogs e agências internacionais, o que o ocupa na hora do café. Tem direito a duas horas diárias de banho de sol.

               Riu muito quando comentei que figurou como fake news que ele sofreu síndrome de abstenção alcoólica nos primeiros dias de prisão. Já na época das caravanas ele se privou de álcool para não prejudicar a voz. 

               Há uma relação respeitosa entre ele e os agentes penitenciários, sem, contudo, qualquer aproximação amigável. Dois deles permanecem de plantão do lado de fora da cela, e tivemos que bater na porta para que viessem abri-la para eu sair. 

               Lula reafirmou que não pensa em retirar sua candidatura a presidente nem apoiar nenhum dos concorrentes, embora confesse sua admiração por Guilherme Boulos, do PSOL. “Como me retirar de uma disputa eleitoral se as pesquisas comprovam que, sozinho, tenho mais votos que a soma de todos os concorrentes?”

                Admite não entender por que está preso em Curitiba se a peça da acusação – o triplex do Guarujá – fica em São Paulo... 

               Considera que a elite brasileira, que tanto o bajulou durante os 13 anos de governo do PT, hoje se posiciona contra por estar interessada na venda do Estado brasileiro e indignada com a ascensão social da maioria pobre graças às políticas de inclusão adotadas no período em que ele e Dilma governaram.

               Segundo ele, um novo golpe estaria sendo armado com a adoção do parlamentarismo via STF, sem consulta plebiscitária como prevê a Constituição.

               Disse não estar preocupado com a questão jurídica, e aguarda sereno o julgamento do mérito dos processos nos quais figura como réu. Tem plena consciência de que o caráter político das acusações que o levaram à prisão pesa muito mais. 

               Hoje, a mídia o mostrará de terno e gravata ao depor por videoconferência em processo que envolve Sérgio Cabral e as Olimpíadas do Rio. 

               Antes de me despedir, rezamos juntos a Oração do Espírito Santo.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.
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